Selo Fiocruz: diretor de “O índio cor de rosa” fala sobre premiações, Noel Nutels e questão indígena no Brasil

Por VideoSaúde Distribuidora (Icict/Fiocruz)

O índio cor de rosa contra a fera invisível: a peleja de Noel Nutels, documentário do acervo do Selo Fiocruz Vídeo (da VideoSaúde Distribuidora), será exibido neste final de semana (17 e 18/9) em Paris, numa das principais mostras de produções brasileiras no exterior: o festival  Brasil em Movimentos (BEM). Em entrevista para a VideoSaúde Distribuidora, o diretor Tiago de Carvalho fala sobre o filme, as premiações e debate a questão indígena no Brasil.

Confira:

VideoSaúde: Qual o impacto de receber esses prêmios e exibições para a promoção do debate sobre a questão indígena no Brasil? 

Tiago Carvalho: Nós esperamos que o filme possa atrair a atenção da sociedade para o agravamento daquilo que Noel Nutels chamou de ‘massacre histórico’ contra os povos indígenas. Está em curso um ataque brutal contra essas populações. A pandemia do novo coronavírus atinge as comunidades indígenas de maneira muito grave e a grilagem de terras, a mineração, o desmatamento, as queimadas se intensificam. São cada vez mais frequentes os casos de violência contra esses povos e contra a integridade dos seus territórios. Esperamos que o filme possa nos inspirar a coragem do Dr. Noel para enfrentarmos essa conjuntura terrível sem esmorecer.

VideoSaúde: Noel Nutels dizia que não era um estudioso do problema indígena, mas um profissional, um médico, que, por força da sua profissão e de um problema, atuou na área indígena por cerca de 20 anos. Qual inspiração Nutels nos traz hoje, quando a questão indígena é tão pungente?

Tiago Carvalho: O Dr. Noel, por suas ideias e seu trabalho incansável, inspira coragem para defender o direito à saúde e ao território dos povos indígenas e das comunidades tradicionais. Esses direitos são garantidos pela Constituição de 1988 e é preciso fazê-los valer. Há muita gente lutando por isso, lado a lado com esses povos.

VideoSaúde: Seu envolvimento com a questão da saúde e indígena não se resume a esse filme. Como surgiu a ideia do documentário sobre o médico sanitarista?

Tiago Carvalho: Eu conhecia um pouco da história do Noel porque sempre me interessei muito pelo momento histórico em que ele atuou, nesse contexto da ‘marcha para o oeste’. A ideia de fazer o documentário surgiu há alguns anos, quando houve a oportunidade de submeter o projeto ao edital anterior do Selo Fiocruz Vídeo, em 2016. Naquele momento, junto com o jornalista Pedro Schprejer, comecei a pesquisar de maneira mais aprofundada sua biografia, seu cinema, o contexto em que atuou. De lá para cá, muito por causa das conversas e do trabalho junto com a Maria Flor Brazil, produtora executiva do filme, a ideia amadureceu e felizmente foi premiada no edital de 2019.

VideoSaúde: Conte a história do título do filme e a dedicatória à Bertha no começo. 

Tiago Carvalho: O título O índio cor de rosa contra a fera invisível reúne duas referências: ‘Índio cor de rosa’ é o apelido carinhoso que amigos davam a Noel Nutels e foi o título do romance biográfico que o Orígenes Lessa escreveu. A ‘fera invisível’ vem do título de um folheto de cordel escrito por João José da Silva a pedido de Noel e que era cantado nas ações de combate à tuberculose realizadas pela equipe do Susa [Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas] no Nordeste, ‘A fera invisível ou o caso de uma trapezista que sofria do pulmão’. É como vimos o Noel: lutador inesperado, misturado com os índios, brigando contra a fera da cobiça e do desrespeito à vida – a mesma que anda hoje à solta arreganhando os dentes para nós. E dedicamos o filme à Bertha, filha de Noel Nutels, porque, antes de mais nada, ela é uma mulher extraordinária que nos premiou com sua amizade e generosidade. Sem a Bertha não haveria filme. Ela preservou a obra do pai, permitiu que pesquisássemos seu acervo e foi sempre uma grande incentivadora da produção.

VideoSaúde: Como foi o processo de pesquisa do material de arquivo?

Tiago Carvalho: A pesquisa do material de arquivo aconteceu em dois lugares diferentes. Um deles foi a Casa de Oswaldo Cruz, unidade da Fiocruz dedicada à história, ao patrimônio cultural e à divulgação das ciências e da saúde. Lá estava arquivada, com grande cuidado e organização, a maior parte dos filmes do Noel. E foi também lá que encontramos o depoimento dele à CPI do Índio gravado em 1968 pelo cineasta Hermano Penna, que naquela época preparava um filme sobre essa comissão parlamentar de inquérito e, muito generosamente, permitiu que usássemos essas gravações no documentário. Os filmes do Noel não eram os originais em película, mas foi extremamente importante a parceria com a Casa de Oswaldo Cruz para conhecermos a maior parte da obra cinematográfica dele.

Outro lugar importante de pesquisa de materiais de arquivo foi a casa da Bertha Nutels. Ela abriu conosco todos os baús, todas as pastas de fotografias, de documentos, de slides, nos permitiu ouvir centenas de fitas K7… Em um dos armários da casa da Bertha, encontramos quase toda a obra cinematográfica do Noel em película, inclusive filmes inéditos que fazem parte de ‘O índio cor de rosa contra a fera invisível’. Muita coisa estava perdida, impossível de restaurar. Mas havia muito material em perfeito estado. Digitalizamos tudo o que foi possível em 4K na Cinemateca do MAM, que também foi uma parceira fundamental no processo de produção do filme. Esperamos que esse material todo, em alta qualidade, possa estar em breve disponível para consulta na Casa de Oswaldo Cruz.

Com esse rico material em mãos, ainda precisávamos sonorizar os arquivos. Para isso foi fundamental o trabalho da pesquisadora Julia Franceschini, que é antropóloga. Ela nos ajudou a identificar cada um dos povos que aparecem nas imagens realizadas pelo Noel e contatar cineastas indígenas que pertencem a esses povos para pedir a eles que enviassem cantos e sons das aldeias para reconstruirmos esses ambientes sonoros de uma maneira respeitosa.

VideoSaúde: E a trilha sonora, tão poética e bela quanto as imagens, como foi o processo de composição?

Tiago Carvalho: A seleção das canções que formam a trilha foi umas das muitas contribuições preciosas do montador Cláudio Tammela. O Cláudio buscou temas de compositores que tivessem uma vinculação forte com a questão indígena e também refletissem sobre a identidade brasileira. É o caso da obra do Guilherme Vaz, que faleceu em 2018, um sujeito vinculado à música concreta, aliado e admirador dos povos indígenas e velho amigo do Cláudio. Além do Guilherme Vaz, temos Carlos Gomes, Tom Jobim, Villa Lobos, Valmir Roza, o Quinteto Armorial e os flautistas kuikuro, entre outros. Essas canções ajudaram definir a forma do filme, na montagem tão bonita do Cláudio.

VideoSaúde: O que as imagens do passado nos dizem hoje sobre a questão indígena?

Tiago Carvalho: Acho que o próprio Noel responde a essa pergunta no filme de uma maneira muito assertiva: ‘O índio vem tentando pacificar o civilizado há 500 anos e até hoje não conseguiu’.

VideoSaúde: Sobre a relação de Nutels com o audiovisual. Outros médicos sanitaristas também mantiveram essa relação como os pioneiros Oswaldo Cruz e Carlos Chagas. Que tipo de contribuições essa relação entre audiovisual e saúde pode trazer à sociedade?

Tiago Carvalho: O Noel produzia essas imagens e as projetava em situações como a CPI do Índio para dar mais concretude aos seus relatos, à sua defesa do direito do povo à saúde. Na CPI do Índio, ele projeta, por exemplo, o filme Pacáas Novos, que mostra a maneira como a perseguição dos brasileiros a esse grupo produziu uma epidemia de fome que matou muita gente. E projeta também um filme que mostra um kuarup [um ritual de homenagem aos mortos] no território do Xingu, enquanto fala sobre como a vida dos povos indígenas depende do direito ao território. É uma forma de refletir sobre a realidade e de sensibilizar as pessoas e mobilizá-las para atuar e transformar o mundo. Acho que essa é uma característica das produções do Selo Fiocruz Vídeo, do catálogo da VideoSaúde como um todo, e também das produções da Banda Filmes.

Noel Nutels, no centro, acompanhado pelos irmãos Villas-Bôas. Foto: Divulgação

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