A última garantia. Por Bruna Della Torre 

Vamos depositar as esperanças em Lula e lutar para que ele vença as eleições no primeiro turno. Mas devemos cobrar do próximo governo que crie as condições para que as armas se tornem uma mercadoria prescrita e indesejável e a “escala F”, um modelo ultrapassado e sem utilidade para pensar o país.

Em A Terra é Redonda

Em seu mais recente livro, Scorched Earth, Jonathan Crary comenta que, com a ascensão da extrema-direita nos Estados Unidos, a mercadoria mais cobiçada do mercado passou a ser a arma de fogo. Lembro-me que quando participei de algumas ações do movimento “vira-voto” em São Paulo em 2018, além da famigerada “mamadeira de piroca”, a questão da liberalização das armas era um dos pontos que mais aparecia nas discussões com as pessoas na rua, tanto em bairros de classe média, quanto em bairros mais populares. Era difícil argumentar. Diversas pessoas, mas principalmente homens jovens, diziam apoiar Jair Bolsonaro devido a essa pauta. Eu, então, perguntava: “mas quanto custa uma arma?”. As pessoas respondiam “5 mil reais, 10 mil reais, muito caro”. E eu replicava: “você que é a favor dessa pauta, conseguiria comprar uma arma?”. A maior parte das pessoas respondia que “não”. Mesmo assim, quando inquiridas pela razão de sua escolha, hesitavam. Uma outra tática que eu e outros colegas adotamos foi a seguinte: perguntávamos para os homens que defendiam o armamento da população se eles já haviam tido uma briga feia com alguma companheira alguma vez; todos respondiam que sim. Então, perguntávamos: “e se, nessa ocasião, você tivesse uma arma em casa?” E, mais uma vez, a maioria respondia: “é, ainda bem que não tinha”. Desde então, permaneci me perguntando como pessoas que não conseguem possuir essa mercadoria (e, ao menos num nível consciente, sequer a desejam realmente) insistiam em apresentar essa pauta como a principal razão de sua escolha eleitoral.

Depois de 4 anos de governo Bolsonaro, os CACs (caçadores, colecionadores e atiradores) já superam o total de PMs e de integrantes das Forças Armadas. Conforme noticiou a Folha de São Paulo em 31 de agosto de 2022, há um milhão de caçadores e atiradores armados no Brasil de acordo com números oficiais. Visto isoladamente, o montante é grande e ameaçador. Mas um milhão de pessoas em 215 milhões é aproximadamente meio por cento da população. Ou seja, uma absoluta minoria. Perigosa, sem dúvida, mas que não representa nem de longe a vontade da maior parte do país. Ainda assim, esse continua a ser um aspecto extremamente presente e central na campanha de Bolsonaro.

A arma é seu logo principal. O jingle de sua campanha, no ritmo de funk, é acompanhado em vídeos no Tik Tok, no Instagram e em outras redes por uma coreografia composta por um gesto que apresenta o número do candidato, seguido do ato de “fazer a arminha”. O emoticon que o representa nas redes é a mão com o indicador e o polegar na perpendicular e há uma profusão de vídeos de Eduardo Bolsonaro e inúmeros outros apoiadores e apoiadoras defendendo os CACs e o armamento da população. Seus lemas, infelizmente, já estamos cansados de ouvir: “um povo armado não é escravizado” e “não é sobre armas, é sobre liberdade”. O governo Bolsonaro – para além das relações espúrias com as milícias – tem uma forte ligação com o lobby das armas. A esta altura, já está mais do que evidente que Bolsonaro deseja armar a população para criar um caos no país caso não seja eleito, como fez Donald Trump. Isso explica por que a arma é um elemento tão central de sua propaganda, mas não explica por que ela tem tanta ressonância no corpo social.

Edward Bernays, sobrinho de Sigmund Freud, e um dos grandes mestres da propaganda, dizia que, se quisermos vender um piano, não devemos anunciar as maravilhas técnicas da marca do instrumento musical que desejamos colocar no mercado. Precisamos, ao invés disso, fazer a propaganda da ideia de que possuir um “quarto musical” em sua casa é algo chique, elegante e inteligente e anunciar esse recinto de forma que fique subentendido que nele cabe um piano. Foi pensando assim que Bernays tornou a indústria do tabaco uma das mais poderosas e letais do mundo. Olhando dessa forma para a propaganda de Bolsonaro, é possível, então, perguntar: o que ele vende quando anuncia armas e o armamento da população para além do público-alvo minoritário consumidor de armas?

Jonathan Crary dá um palpite interessante no livro que citei. Por não se desgastar e quase nunca precisar de reparos, diz ele, a arma se apresenta como o inverso de uma cultura material vazia que só produz impotência e decepção. Ela é um consolo diante de objetos descartáveis e relações partidas. No entanto, mais importante do que isso, segundo Crary, é que a arma, em sua letalidade, é uma espécie de última garantia de uma “sociedade de iguais”. É isso que vende a propaganda bolsonarista. Seu solo social é, por um lado, o punitivismo acentuado de nossa “escala F” verde e amarela. O Brasil é um dos campeões no encarceramento da população negra no mundo (e não foram apenas os governos de direita e de centro que contribuíram para essa estatística). De acordo com a pesquisa Datafolha publicada em 14 de janeiro de 2019, 84% da população brasileira é a favor da diminuição da maioridade penal. Ou seja, o problema da violência é multiforme no Brasil, ele atravessa as classes sociais. As classes baixas sofrem a violência genocida do Estado, mas também se ressentem da violência urbana. Quem trabalha e ganha pouco quer ver punido aquele que roubou as mercadorias que comprou com tantos esforços e à custa de tantas humilhações (muitas vezes também um instrumento de trabalho ou um produto que ainda está pagando em prestações). As classes médias e altas se fecham, quando podem, nos enclaves condominiais e querem, em sua maioria, ver preso e morto qualquer um que ameace a sua segurança. Nesse sentido, a “arma” é o objeto que incorpora a ideia de que, nesse mundo, “vence o mais forte”, uma ideia que não deixa de ser verdadeira sob o capitalismo, especialmente sob o capitalismo periférico assolado pela precariedade generalizada. Nesse tipo de sociedade, ninguém quer estar na ponta mais fraca da corda e esse sentimento de insegurança é potente o suficiente para que haja uma identificação com o lado vencedor. Por outro lado, a arma é a garantia de poder ser ouvido. Um poder que está ao alcance da mão. Ainda que a maioria dos eleitores de Bolsonaro não comprem uma arma, é compreensível que essa ideia possua apelo numa sociedade na qual direitos são privilégios de poucos. A arma de fogo é a mercadoria ideal num mundo no qual não há nenhuma outra garantia além da força bruta. A liberdade advogada por Bolsonaro é a liberdade de quem domina. O presidente prepara seus seguidores para uma guerra que ele mesmo inventou. Mas as razões pelas quais seu discurso atingiu de forma tão poderosa pelo menos um terço da população são anteriores a ele.

Vamos depositar as esperanças em Lula e lutar para que ele vença as eleições no primeiro turno. Mas devemos cobrar do próximo governo que crie as condições para que as armas se tornem uma mercadoria prescrita e indesejável e a “escala F”, um modelo ultrapassado e sem utilidade para pensar o país.

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Bruna Della Torre é pesquisadora do Centro Käte Hamburger para estudos apocalípticos e pós-apocalípticos da Universidade de Heidelberg e pós-doutoranda no Departamento de Sociologia da Unicamp (bolsista Fapesp), onde estuda teoria crítica, indústria cultural e agitação fascista no Brasil. Editora executiva da revista Crítica Marxista, pesquisadora associada ao Laboratório de Estudos de Teoria e Mudança Social (Labemus) e membra da coletiva Marxismo Feminista. Realizou pós-doutorado no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, doutorado em Sociologia, ambos com apoio da Capes, e mestrado em Antropologia com apoio da Fapesp, todos na Universidade de São Paulo. Durante o doutorado, foi pesquisadora visitante na universidade Goethe, na Alemanha, com apoio do DAAD, e na universidade Duke, nos Estados Unidos, com apoio da Capes. Durante o pós-doutorado, realizou um estágio de pesquisa na universidade Humboldt e no arquivo Walter Benjamin/Theodor W. Adorno na Akademie der Künste em Berlim com apoio do DAAD. Escreve para o Blog da Boitempo mensalmente.

Foto: José Cruz/Agência Brasil

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