A linguagem que separa Lula e Bolsonaro

Enquanto a retórica do atual presidente é abstrata e revela medos, a do petista é concreta e confiante. As linguagens mostram a diferença entre os dois projetos pelo país.

por Philipp Lichterbeck, em DW

No último domingo (24/09), estive na quadra da escola de samba Portela, no bairro carioca de Madureira. O prefeito do Rio, Eduardo Paes, havia convidado o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para fazer um comício a uma semana da eleição, o que, é claro, também deveria colocar em evidência o próprio Paes. Para o candidato presidencial do PT, foi como jogar em casa. As ruas ao redor da Portela estavam completamente vermelhas, e era quase impossível chegar até a quadra, que a certa altura acabou fechando as portas, por ter atingido lotação máxima.

Quem afirmava, como se lê muitas vezes nas redes bolsonaristas, que Lula não ousa estar no meio do povo e não mobiliza ninguém, recebeu uma lição. Após quatro anos de abstinência e medo da agressão dos bolsonaristas, brasileiros de esquerda e progressistas têm novamente coragem de mostrar publicamente suas cores e símbolos – e também agitar a bandeira nacional, porque não querem deixá-la para os extremistas de direita.

Quando Lula chegou, mostrou mais uma vez porque ele é capaz de mobilizar a gente como nenhum outro político da esquerda. Tem a ver com sua lendária ascensão de filho de uma mãe solteira pobre com oito filhos a chefe de Estado. Sua história lhe dá credibilidade. A isso se soma sua retórica simples, que sempre toca mais o coração do que a razão. Um terceiro fator é que muitos brasileiros se lembram com certa nostalgia dos anos 2000, quando o Brasil crescia economicamente, os salários subiam, e a pobreza caía.

Após várias semanas acompanhando a campanha eleitoral, identifiquei perfis de eleitores que também se confirmaram na Portela.

O eleitor típico de Bolsonaro é mais velho, de pele mais clara, do sexo masculino, mais rico e com maior nível de educação formal. Ele se sente ameaçado por “comunismo”, “ideologia de gênero” e “globalismo”. Coloquei os termos entre aspas porque são invenções de estrategistas de direita. Não há comunismo no Brasil (mesmo em 13 anos de PT, nenhuma empresa foi estatizada), não há ideologia de gênero, nem ideologia de globalização (se estiver errado, agradeceria se alguém me mostrasse os manifestos e princípios dessas ideologias). São termos que agrupam  os difusos medos de mudanças sociais. Muitos eleitores de Bolsonaro não conseguem lidar com esses medos – do feminismo, por exemplo –, que muitas vezes levam à agressão.

Os eleitores de Lula, por sua vez, são de pele mais escura, menos abastados, têm menor nível de educação formal e são mais jovens. Também é um eleitorado mais feminino. Isso também fica claro na Portela. E eles reagem a expressões completamente diferentes das dos apoiadores de Bolsonaro. São também duas linguagens diferentes que separam os seguidores de Lula e os bolsonaristas. Isso não apenas expressa duas formas diferentes de pensar, mas também duas formas de percepção, sentimento e prioridades.

Esta é provavelmente a maior diferença que caracteriza os eleitores de Bolsonaro: eles  podem se dar ao luxo de temer um “comunismo” imaginário. Já para os eleitores de Lula, o aspecto material é mais importante. Enquanto nos eventos de Bolsonaro há mais aplausos quando ele fala sobre Deus, os militares, a pátria e ele mesmo, o povo de Lula aplaude quando ele diz que as mães do Brasil querem alimentar bem seus filhos e vesti-los bem, querem mandá-los para a escola e a universidade. Ou quando ele apela ao orgulho nacional e diz que a Petrobras tem condições de extrair petróleo do pré-sal porque seu governo investiu em ciência e tecnologia e vai voltar a fazê-lo.

Lula é, na maioria das vezes, concreto; Bolsonaro costuma ser abstrato. Quando Lula diz que Bolsonaro viajou para o funeral da rainha, mas não dedicou uma única palavra de lamento pelas quase 700 mil mortes por covid-19 no Brasil, algumas pessoas na Portela vão às lágrimas. Bolsonaro sempre afirma em seus comícios: “Lamentamos todas as mortes”. Agora ele deveria contar uma história pessoal sobre o quanto se comoveu com a morte de um brasileiro específico – como faria Lula. Mas ele não tem nada a oferecer.

Bolsonaro discursa muito sobre Deus, os militares, a pátria e a família mas nunca preenche os conceitos com conteúdo. A retórica de Bolsonaro é fria, distante e desperta ressentimentos; a retórica de Lula é concreta, direta e desperta esperanças.

No evento com Lula na Portela, não foi um problema me identificar como jornalista estrangeiro e fazer perguntas, inclusive críticas, como sobre o Petrolão. Os participantes responderam com seriedade e sem agressão. Por outro lado, quem incluir a menor crítica ao “mito” numa pergunta, num evento com Bolsonaro – sobre os 51 imóveis que sua família pagou em dinheiro, por exemplo – tem que temer ser agredido verbalmente e até atacado fisicamente.

Ao caminhar para o trem após o evento na Portela, passou um carro, em que o motorista batia na porta como um louco e gritava para o povo de camiseta e bonés vermelhos: “Aqui é Bolsonaro. Acabou, acabou!” Já no próximo domingo poderá ser revelado para quem acabou.

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