Em Piraí (RJ), caminhos para um novo SUS

Ex-prefeito de município em que a Saúde Pública é vista como de excelência narra as transformações que permitiram o feito. Relato aponta: vontade política, mobilização social e disposição de inovar podem vencer desfinanciamento e abandono

Por Gabriela Leite, em Outra Saúde

Abre-se a possibilidade, com as eleições, de um novo governo em que os movimentos da saúde possam ter mais espaço para reivindicar transformações no SUS. Para isso, analisar o exemplo da cidade de Piraí, no Rio de Janeiro, pode ser inspirador. “O que fizemos foi aquilo que estava previsto na Constituição e na Lei Orgânica do SUS”, explicou Luiz Antonio Neves, que foi secretário de Saúde e prefeito da cidade, ao Outra Saúde.

Uma série de medidas tomadas na cidade desde a gestão de Luiz Antonio, no início dos anos 1990, transformou o atendimento em saúde na cidade de 29 mil habitantes, que fica na região de Volta Redonda (RJ). A avaliação dos habitantes sobre o sistema público, na cidade, era muito ruim. Piraí contava com apenas uma Santa Casa, mal financiada. O nível de morte materna era assustador.

A primeira decisão transformadora da prefeitura foi assumir a administração da Santa Casa e torná-la hospital público de fato, sem dupla porta de entrada. Piraí era recordista em cesarianas no estado do RJ. Com a nova gestão, foram contratados professores e obstetrizes para reverter a situação. Em alguns anos, a maternidade foi considerada Hospital Amigo da Criança – iniciativa da Unicef para incentivar rotinas adequadas à prática do aleitamento materno.

No momento anterior, explica Luiz Antonio, os médicos da Santa Casa eram pagos por produção – o que fazia, muitas vezes, com que recomendassem procedimentos desnecessários. Com a passagem do hospital para a prefeitura, determinou-se uma mudança de modelo de trabalho em que todos receberiam um salário fixo.

A cidade também recebeu, nos anos 1990, uma iniciativa que funcionou como um embrião da Estratégia de Saúde da Família. Em 1995 (sete anos antes da implementação da ESF nacional), Luiz Antonio participou de uma viagem a Cuba, promovida pelo Conselho de Secretarias Municipais de Saúde do RJ, para conhecer como funcionava o modelo de saúde da família no país. Ao voltar a Piraí, selecionou um bairro de mais vulnerabilidade social para ensaiar um programa de médico de família, com orientação de um doutor cubano.

A gestão de unidades de saúde, que na época estava nas mãos de médicos, passou às enfermeiras. Isso, além de dar autoridade às profissionais, fez aumentar o vínculo dos equipamentos com a população. Enfermeiras também foram incumbidas de fazer o pré-natal. “Em três ou quatro meses, as mulheres já preferiam ser consultadas com enfermeiras que com médicos”, contou.

Em sua gestão como prefeito, que durou entre 2013 e 2020, Luiz Antonio deu outro passo importante para o plano de carreira dos profissionais. Àquela altura, os trabalhadores eram contratados por intermédio da filantrópica Cruz Vermelha Brasileira. “Nesse primeiro ano de 2013, abrimos concurso para Agentes Comunitários de Saúde, e nos anos seguintes nós instituímos uma carreira da Saúde da Família. Fizemos concurso e terminamos com qualquer tipo de intermediação de mão-de-obra”, expõe. Hoje, Piraí tem 100% dos profissionais concursados.

Piraí também implementou projetos simples mais importantes para dar autonomia à população. Para garantir a qualidade de atendimento de obstetras que faziam atendimento particular, a Saúde elaborou uma cartilha orientando o que esperar da consulta, com os exames mínimos que devem ser feitos em um pré-natal. O mesmo foi feito em relação à vigilância sanitária, com orientações à população sobre como comprar alimentos de qualidade.

“A gente foi progressivamente conseguindo aumentar os recursos próprios em Saúde”, conta Luiz Antonio. Em“Ao mesmo tempo em que o prefeito trabalhava para melhorar a receita do município, nós trabalhamos para aumentar a fatia da saúde no município de Piraí. Essa fatia já é alta há muito tempo, em torno de 30% do orçamento”.

Mas o ex-prefeito admite que não foi fácil – e muitas vezes foi preciso escolher a Saúde a outras áreas também muito importantes. Piraí tem um PIB per capita entre os 10% mais altos do país, o que ajudou a possibilitar a mudança. Tendo em vista que o SUS nunca foi financiado como deveria para que pudesse cumprir seu projeto, Piraí dá exemplo das transformações que poderiam acontecer com um orçamento digno.

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