O leilão buscou arrecadar dinheiro para armar produtores contra indígenas; a região é marcada por conflitos territoriais entre indígenas e fazendeiros
Por Adi Spezia, do Cimi
Prestes a completar dez anos do “Leilão da Resistência”, evento realizado por ruralistas em dezembro de 2013 para arrecadar dinheiro para armar produtores contra indígenas no Mato Grosso do Sul (MS), o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) suspendeu a sentença que mandava devolver aos fazendeiros o valor de pouco mais de R$ 800 mil reais apreendidos em conta judicial. A decisão do TRF-3 é da última sexta-feira, 23 de setembro.
Em junho deste ano, o juiz da 2ª Vara Federal de Campo Grande (MS), Yuri Guerzé Teixeira, havia anulado o referido leilão em função da comprovação da sua finalidade ilícita, mas determinou, por outro lado, a devolução dos recursos arrecadados aos financiadores, responsáveis pela doação de 674 cabeças de gado e das três mil sacas de cereais para o certame.
À época, diante da iminência do acontecimento do leilão, a Aty Guasu – Grande Assembleia Guarani e Kaiowá – e o Conselho do Povo Terena ingressaram com uma ação para impedir que o leilão ocorresse e obtiveram decisão liminar favorável. Por meio de decisão posterior, o leilão foi liberado, sob o acordo de que o valor arrecadado fosse depositado em juízo.
O impasse segue na justiça, agora com a decisão do TRF-3 que manteve a apreensão do valor arrecadado, revertendo a determinação de primeiro grau que havia liberado os valores, mesmo com a anulação do leilão. Esta foi uma importante vitória dos povos Terena e Guarani e Kaiowá.
“Agora, obtendo decisão favorável pelo desembargador federal, o TRF-3 ordenou que o dinheiro, no valor de quase R$ 1 milhão, permaneça em conta judicial até decisão final sobre o caso”, explica Anderson Santos, um dos advogados da Aty Guasu e Conselho do Povo Terena na ação, e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Mato Grosso do Sul.
No entendimento da Aty Guasu e do Conselho do Povo Terena, os fazendeiros doaram os recursos sabendo da finalidade ilícita do leilão. “Por isso mesmo, não se deve reaver os valores aos doadores. Recorremos da sentença por meio de recurso de apelação para reformar essa parte da decisão e para que os valores sejam declarados advindos de ilícito e assim sejam revertidos em benefício das comunidades”, destaca Anderson.
No Mato Grosso do Sul, as disputas fundiárias têm se arrastado por anos, agravando cada vez mais os conflitos envolvendo indígenas e fazendeiros. Devido à morosidade do Estado brasileiro em demarcar seus territórios de ocupação tradicional, os indígenas vivem um processo de retomada dos seus territórios.
Por outro lado, fazendeiros ameaçam adotar “medidas próprias” para resolver os conflitos, o que reforça a alegação dos povos de que “os fazendeiros estariam arrecadando fundos para levar a cabo as diversas ameaças contra os indígenas da região, por meio da compra de armamento e formação de grupos paramilitares”, listam os advogados dos indígenas.
Segundo Rafael Modesto, também advogado dos indígenas na ação, “a decisão do relator do caso no Tribunal reflete na compreensão de que a realização de leilão para arrecadar fundos para contratação de segurança privada tem uma finalidade ilícita. As implicações disso são, além da anulação do ato nocivo, o dever de indenizar as comunidades indígenas”.
Entenda o caso
Com ampla divulgação na mídia, no dia 7 de dezembro de 2013, foi realizado o “Leilão da Resistência”. O evento teria como objetivo arrecadar dinheiro para a contratação de seguranças armados – ou milícias, segundo os indígenas – e foi promovido pela Associação dos Criadores de Mato Grosso do Sul (Acrissul), Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul), com o apoio e presença de parlamentares vinculados à bancada ruralista no Congresso Nacional.
Sob a alegação de que os produtores estariam arrecadando fundos para “levar a cabo as diversas ameaças contra os indígenas da região, por meio da compra de armamento e formação de grupos paramilitares”, a Aty Guasu e o Conselho do Povo Terena ingressaram com uma ação para que o suposto leilão não fosse realizado.
Por entender que a ação colocaria em risco a segurança e a vida dos povos indígenas, e acolhendo uma ação impetrada pela Aty Guasu e Conselho do Povo Terena, a juíza Janete Lima Miguel, da 2ª Vara da Justiça Federal de Campo Grande (MS), determinou que o leilão não fosse realizado.
Na decisão, de 4 de dezembro do mesmo ano, a juíza argumentou que o leilão teria “o poder de incentivar a violência” e colidia “com os princípios constitucionais do direito à vida, à segurança e à integridade física”. E conclui ainda que “esse comportamento não pode ser considerado lícito, visto que pretendem substituir o Estado na solução do conflito existente entre a classe ruralista e os povos indígenas”.
Segundo nota do Cimi publicada à época, a “resposta ao impedimento judicial do ‘Leilão da Milícia’ veio com atentado e ameaças de morte”. O Cimi se pronunciou chamando a atenção da sociedade brasileira e cobrando providências do governo federal diante dos episódios que sucederam a decisão da juíza da 2ª Vara Federal.
Após a juíza barrar o leilão, ainda no dia 4, a Federação dos Trabalhadores em Educação de Mato Grosso do Sul e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), organizações que se solidarizaram ao pedido judicial dos indígenas de suspensão do leilão, tiveram suas lideranças ameaçadas de morte. Dois dias depois, no dia 6 de dezembro, a liderança Paulino Terena sofreu um atentado no município de Miranda, e seu carro foi incendiado.
Os movimentos sociais e indígenas do Mato Grosso do Sul pediram ao Ministério da Justiça e Segurança Pública que investigasse as ameaças, ainda naquele dia. Enquanto isso, os fazendeiros tentavam reverter a decisão judicial e realizar o leilão.
Às vésperas, na noite do dia 6 de dezembro, depois de ser acionada pelos organizadores do leilão, a 4ª Vara da Justiça Federal de Campo Grande (MS) liberou a realização do “Leilão da Resistência”.
Com a decisão, os indígenas recorreram ao TRF-3. Em caráter liminar, o desembargador Lionel Ferreira manteve o leilão, desde que três condicionantes impostas pela Justiça Federal de Mato Grosso do Sul fossem adotadas: dinheiro arrecadado com o leilão deveria ser depositado numa conta judicial e controlado pela Justiça, os valores e doadores deveriam ser discriminados e os recursos arrecadados só poderiam ser utilizados depois de a Justiça ouvir o Ministério Público Federal, a Aty Guasu e o Conselho do Povo Terena.
Na avaliação do Cimi, que acompanha o caso aos longos desses quase dez anos, o leilão somente não se estendeu para outros estados da federação em função de decisão judicial que bloqueou a utilização dos valores arrecadados para as finalidades almejadas pelos ruralistas, destaca Rafael Modesto.
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Ilustrador: Carlos Latuff, para o Cimi