A Pública mapeou casos de violência relacionados às eleições desde o início da campanha, em 16 de agosto, até o 1° turno
Por Anna Beatriz Anjos, Caio de Freitas Paes, Clarissa Levy, Giulia Afiune, José Cícero, Júlia Rohden, Laura Scofield, Mariama Correia, Matheus Santino, Nathallia Fonseca, Rafael Oliveira, Yolanda Pires, Agência Pública
Entre o começo da campanha, em 16 de agosto, e o fim do primeiro turno, no último domingo, 2 de outubro, ocorreram ao menos 148 casos de violência eleitoral, mostra levantamento exclusivo realizado pela Agência Pública. É uma média de 3 ataques contra eleitores, candidatos, jornalistas e trabalhadores de institutos de pesquisa por dia.
Chama a atenção a violência dos ataques e a forte presença de armas de fogo. Ao menos 6 pessoas foram assassinadas por motivos políticos durante a campanha, que teve também outros 9 atentados ou tentativas de assassinato – o dado exclui a morte do petista Marcelo Arruda, no Paraná, por ter ocorrido antes de 16 agosto.
Dos 148 casos mapeados, 25 envolveram armas de fogo (17% do total) e 4 ataques foram feitos com facas ou objetos cortantes, sendo que 3 das pessoas assassinadas foram esfaqueadas. Quase metade dos casos – 73 – envolveram violência física. Casos de violência psicológica ou moral, ou seja, ofensas e ameaças, totalizaram 99. Em 29 casos houve violência patrimonial, como ataques a carros ou comitês de campanha, por exemplo.
Mais de 50% dos casos de violência foram motivados por discordância política entre vítima e agressor. Em 36% das situações, o ataque foi cometido por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL). Em 8%, os agressores eram apoiadores de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Já em 61% dos casos não foi possível identificar os agressores e não há registros de casos de ataques envolvendo apoiadores de Simone Tebet (MDB) e Ciro Gomes (PDT).
A violência eleitoral se fez presente em todas as regiões do Brasil, mas o Sudeste concentrou o maior número de ocorrências, 45% do total. Somente em São Paulo, maior colégio eleitoral do país, aconteceram 21% dos casos. O volume pode estar relacionado tanto à dimensão populacional – a capital paulista é a cidade mais populosa do Brasil –, quanto à concentração de veículos de mídia na região, o que pode impactar o monitoramento, em parte baseado no levantamento de notícias sobre as ocorrências.
Há ainda 54 ataques direcionados a políticos ou candidatos, 32 ataques a pesquisadores de institutos de pesquisas, 10 ataques a jornalistas e 2 contra agentes públicos, por exemplo mesários.
Neste levantamento, consideramos apenas ataques presenciais, excluindo ataques por telefone, por email e pelas redes sociais. Como fizemos em 2018 e 2020, continuaremos monitorando os casos de violência eleitoral até o segundo turno. Se você presenciar algum caso, conte para nós neste questionário, mande um WhatsApp para (11) 98886-9401 ou envie email para [email protected].
“Homicídio comum” motivado por uma discussão sobre política
Benedito Cardoso dos Santos, apoiador do ex-presidente Lula, foi assassinado com mais de 70 golpes de faca e machado pelo bolsonarista Rafael Silva de Oliveira em Confresa (MT), no dia 7 de setembro. Benedito é uma das vítimas dos 6 casos de assassinato relacionados à violência eleitoral mapeados pela Pública.
Os dois colegas de trabalho estavam no Sítio Cabeceira, na zona rural da cidade, quando iniciaram uma discussão sobre política que resultou na morte de Santos. Contudo, o delegado responsável pelo caso, Victor Donizete de Oliveira Pereira, da Polícia Civil do Mato Grosso, negou que se trate de um crime político. O episódio, segundo ele, tratou-se de “um crime de homicídio comum” que foi motivado por uma discussão sobre política. Rafael foi preso no dia seguinte ao assassinato, após denúncia de uma testemunha que trabalhava em uma propriedade próxima ao local do crime, que encontrou o corpo da vítima já sem vida e acionou a polícia militar. Em depoimento citado no inquérito, o bolsonarista confessou ter matado Benedito por discordância política.
Outra vítima fatal foi o apoiador de Jair Bolsonaro (PL) Hildor Henker, de 34 anos, assassinado na tarde de 24 de setembro em Rio do Sul (SC) por um homem que seria apoiador do Partido dos Trabalhadores (PT). Ambos eram amigos e o homicídio ocorreu do lado de fora de um bar, onde eles estariam bebendo e teriam iniciado uma discussão. O homem não identificado teria dado um tapa no rosto de Henker, que reagiu agarrando-o pelo pescoço, de acordo com testemunhas. Segundo a polícia, o suspeito teria usado um canivete, que atingiu uma artéria na perna da vítima. Henker chegou a ser encaminhado ao hospital, mas não resistiu. O suspeito fugiu, mas posteriormente se apresentou à polícia e está respondendo em liberdade.
O caso segue sendo investigado e a Polícia Civil trabalha com a hipótese de que o crime tenha se dado após discussão por conta de política, mas outras possibilidades, como desavenças familiares, também não estão descartadas, a despeito dos dois homens não serem parentes. Em publicação em seu Facebook, uma irmã da vítima afirmou que havia sido “um homicídio por causa de política”. A família não quis se pronunciar.
Ataques às urnas e a mesários
No domingo passado, dia da votação do primeiro turno, foram registrados 11 casos de violência eleitoral, entre eles três ataques às urnas eletrônicas.
Em Goiânia (GO), um homem usou um pedaço de madeira para quebrar a urna logo após votar. A ação foi registrada em vídeo e o homem foi preso pela Polícia Militar e conduzido para a Polícia Federal. Os votos computados não foram perdidos e a urna foi substituída.
Em Campo Grande (MS), um homem posteriormente identificado como Gabriel Scherer da Costa, de 22 anos, despejou cola em várias teclas da urna eletrônica. O delito foi percebido pelo eleitor seguinte, que informou o caso. Costa foi identificado e preso pela Polícia Federal em casa. Seu advogado alegou ‘transtornos psiquiátricos’. A urna foi substituída.
Já em Jundiaí (SP), um eleitor ainda não identificado também usou cola para inviabilizar o uso da tecla 3 da urna. O caso está sendo investigado.
Em Belo Horizonte (MG), uma mesária e o presidente de uma seção eleitoral foram ofendidos por um eleitor que se irritou com a solicitação para que deixasse o celular em cima da mesa na hora de votar, conforme determinado pela Justiça Eleitoral.
Segundo relato enviado à Pública via questionário de investigação participativa por Júlia Moreira, a outra mesária da seção, o homem estava com uma camisa da seleção brasileira e teria justificado que a “cola” com os números para a votação estava no celular.
Ele recebeu papel e caneta para anotar os dados, mas se recusou a entregar o celular, chamando o presidente da seção de “babaca” e “idiota”. O homem só aceitou ceder o aparelho após uma das mesárias sair da sala para buscar um fiscal ou policial, jogando o celular em uma cadeira em meio a gritos. Na hora de votar, ele teria ainda chutado a cadeira que fica na urna.
Moreira contou que essa foi a quinta eleição consecutiva em que foi mesária, mas que nunca havia presenciado uma situação como aquela. Ela diz enxergar o ocorrido como resultado de quatro anos de um governo que valida e até mesmo estimula a violência. “Essa violência vem acompanhada de desinformação acerca da credibilidade do sistema eleitoral brasileiro. Isso é muito preocupante, pois o clima de desconfiança, as tentativas de burlar as regras que são impostas e o desacato às pessoas que trabalham como mesários no dia das eleições são tentativas de deslegitimar todo o processo eleitoral, bem como seu resultado”, diz.
Mulheres foram vítimas em 58 casos
A violência política contra mulheres aparece em 58 dos casos mapeados desde o início da campanha. Os agressores foram predominantemente homens – em 110 casos (74% do total), pelo menos um agressor era do sexo masculino. Registramos ainda três casos de violência sexual durante as eleições.
Um dos casos envolveu a deputada estadual em São Paulo Isa Penna, que concorreu ao cargo de deputada federal pelo PCdoB, mas não se elegeu. Penna prestou queixa por agressão verbal e assédio durante uma caminhada eleitoral em Botucatu (SP) no dia 24 de setembro.
Segundo ela, um homem teria se aproximado, pegado em sua cintura, tirado uma foto e dito “você é uma vadia, você é doida, aquilo com o Cury nunca aconteceu”, em referência ao episódio em que a parlamentar foi assediada pelo deputado Fernando Cury (sem partido) durante sessão da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). Acusado de assédio, o homem foi preso e autuado em flagrante por importunação sexual.
Em outro caso, no dia 28 de setembro, a assistente social e candidata a deputada federal pelo PT Luciana Novaes, de 39 anos, que é tetraplégica, sofreu assédio sexual enquanto panfletava em uma rua no centro de Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Em entrevista à Agência Pública, a candidata contou que um homem desconhecido a abordou e perguntou: “Você antes de ficar assim aloprava na faculdade né?”. Ela respondeu que não. O homem, então, se posicionou atrás da candidata, encostou nela sem seu consentimento, e insistiu para tomar uma cerveja com ela. A irmã de Luciana intercedeu, pedindo para o homem ir embora, mas ele se negou. Três apoiadores o afastaram e tentaram controlar a situação, quando o homem se exaltou. O assédio seguiu até que ele, em tom ameaçador, disse que ia embora por alguns minutos, mas iria voltar “só por terem impedido de falar comigo”, relata a candidata.
Luciana descreveu o momento como “devastador”. “Me senti violada. Fiquei muito triste por estarmos vivendo nesse momento perigoso, a ponto disso acontecer tantas vezes nas candidaturas do lado progressista”, afirmou.
Em outro caso de violência contra mulher registrado no levantamento, uma grávida perdeu o bebê durante uma confusão em uma caminhada eleitoral em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, no dia 26 de setembro. Segundo o portal G1, o candidato a deputado estadual Danielzinho (PSDB) e a candidata a deputada federal Sula do Carmo (Avante) afirmaram que um grupo atacou apoiadores deles durante a caminhada. Um vídeo mostra homens fazendo ameaças com revólveres. Danielzinho e Sula do Carmo acusam apoiadores dos candidatos Daniella do Waguinho e Márcio Canella, do União Brasil, pelas agressões. Daniella foi a deputada federal mais votada do Rio de Janeiro.
Coordenadora do Grupo de Trabalho Prevenção e Combate à Violência Política de Gênero da Procuradoria-Geral da República (PGR), a procuradora Renata Branquinho, que acompanha a violência política de gênero na eleição, diz que não é possível saber se houve um aumento de casos de assédio sexual, mas que há sim um maior engajamento das mulheres para denunciar esses casos “Essas ocorrências são parte de uma cultura machista que reverbera na política”, afirma.
Ataques racistas
Entre os ataques violentos, há ainda 11 casos de teor racista. Candidato a deputado federal pelo PSB na Bahia, Damazio dos Santos, sofreu ataques seguidos durante a campanha. No dia 11 de setembro, um motoqueiro o abordou com ofensas racistas. No dia 20, a casa dele, em Feira de Santana (BA), foi pichada com a frase “volta para a senzala”.
A foto do candidato ao lado do muro pichado, publicada no Instagram por ele e no Twitter por um apoiador, foi vista e compartilhada por milhares de pessoas naquele dia. “É uma insatisfação, quando não a mim mesmo, à minha entrada na política”, disse Damazio à Pública.
O candidato registrou um boletim de ocorrência por injúria racial. “Tinha muito receio de prestar essa queixa, justamente porque não sabia como ia ser”, disse à reportagem. Damazio não recebeu o número de votos mínimo para se eleger, mas entrou como suplente de deputado federal.
No dia da votação, um homem foi preso em flagrante por um ato racista em Salvador (BA). Ele teria chamado uma mesária de “negra incompetente”. O homem também teria dito que, se ele fosse negro, gay ou “índio”, já teria conseguido votar. A Polícia Militar de Salvador conduziu o acusado, vítimas e testemunhas para prestar esclarecimentos.
Um dos casos envolveu ainda um candidato a governador. Sílvio Mendes (União Brasil), que se candidatou ao governo do Piauí, foi questionado pela jornalista Katya Dangeles sobre quais seriam seus projetos para mulheres e minorias. O candidato respondeu: “Eu te conheço há tantos anos, desde o Diário do Povo, eu imagino quantas discriminações você já sofreu. Você que é quase negra na pele, mas você é uma pessoa inteligente, teve a oportunidade que a maioria não teve, e aproveitou”.
Na sequência, o candidato publicou em seu perfil no Twitter um pedido de desculpas e divulgou uma nota reconhecendo o erro.
Bolsonaristas X petistas
Em mais de um terço dos casos os agressores eram apoiadores de Bolsonaro. Outros 8% envolvem apoiadores de Lula. No dia 25 de setembro, uma mulher negra que trabalhava como auxiliar de cozinha em um restaurante de João Pessoa (PB) usava uma blusa com a imagem de Lula. Ela observava uma carreata a favor de Bolsonaro quando foi surpreendida por um apoiador do presidente que tentou agredi-la.
“Ele queria rasgar minha camisa dizendo que eu estava provocando, mas eu não estava provocando. Ele queria vir para cima de mim, pegou no meu braço querendo rasgar minha roupa, aí eu peguei no pescoço dele dizendo que ele não iria rasgar minha roupa porque eu tinha o direito de vestir a roupa que eu quisesse”, disse a vítima em entrevista ao Brasil de Fato. Um vídeo mostra o homem dizendo “eu mato você” e sendo afastado por funcionários do local. De acordo com o site, a vítima não prestou queixa e o agressor não foi identificado.
Há também casos de agressões mútuas entre apoiadores de Lula e de Bolsonaro. No dia 2 de outubro, grupos de apoiadores do ex-presidente e do presidente travaram uma espécie de batalha campal na praça Comandante Xavier de Brito, na Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro. O tumulto foi registrado por testemunhas e divulgado nas mídias sociais.
No material, consultado pela Agência Pública, se vê mais de uma dezena de apoiadores de Bolsonaro. Alguns deles chegam a recolher materiais de entulho de uma caçamba para atacar um grupo de apoiadores de Lula. A batalha era travada à distância, até mesmo com o uso de rojões e fogos de artifício, atirados na direção dos opositores.
Conforme relatado por veículos como O Globo e Poder360, policiais do 6º Batalhão de Polícia Militar do Rio de Janeiro teriam sido chamados ao local para restabelecer a ordem, mas o conflito já teria cessado quando as equipes da PM chegaram.
Violência contra trabalhadores de institutos de pesquisa
Trabalhadores de institutos de pesquisa, como Datafolha, Ipec e Quaest, foram vítimas em 32 casos, 22% do total. Um dos casos foi testemunhado por um publicitário que foi abordado por um pesquisador do Instituto Datafolha no dia 27 de setembro, perto de sua casa no Jardim Botânico, na zona sul do Rio de Janeiro. Ele conta que, durante a entrevista, um homem, que se indignou por não ser entrevistado, começou a filmá-los.
“Ele dizia que os institutos [de pesquisa] só entrevistavam os eleitores do Lula, me mostrando como exemplo. Foi extremamente constrangedor”, relata.
O pesquisador o repreendeu e falou que chamaria a polícia. O bolsonarista se afastou, mas voltou em seguida com dois PMs que patrulhavam o bairro. O funcionário do Datafolha, acompanhado do publicitário e de uma testemunha que presenciou tudo, foram conduzidos à 14ª Delegacia de Polícia do Leblon sob a acusação de ameaça contra o bolsonarista.
Após esperarem por quase duas horas na DP vazia, outra versão da história foi contada ao delegado. “O policial disse que o bolsonarista tinha uma denúncia contra a pesquisa (eleitoral), o delegado riu. Eu prontamente o corrigi, dizendo que tínhamos sido conduzidos até lá porque o bolsonarista estava acusando o entrevistador do Datafolha de tê-lo ameaçado ao dizer que chamaria a polícia”, relata o publicitário. O delegado então reprimiu o policial com uma “cara feia”, e mandou todos embora dali.
Coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o sociólogo David Marques explica que a violência na política não é uma novidade no Brasil. No entanto, o grande número de casos nesta eleição contribuíram para que 67,5% dos brasileiros afirmassem que sentem medo de ser agredidos por expor suas visões políticas, de acordo com pesquisa recente da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública com base em dados coletados pelo Datafolha. “O que é novidade nesse dado da pesquisa é que esse medo parece ter se disseminado por mais grupos sociais e mais camadas sociais, atingindo uma parcela majoritária da população brasileira, o que torna o cenário muito preocupante”, diz.
Para Marques, os últimos quatro anos com Jair Bolsonaro na presidência foram muito marcados por uma retórica política agressiva. “Lideranças de alguns grupos políticos têm apostado nessa retórica de agressividade, de produção de medo como um instrumento de luta política, e a pesquisa mostra que eles têm conseguido atingir os seus objetivos: a população está mais amedrontada”, afirma.