Analfabetos. Por Julio Pompeu

Na Terapia Política

Jodival é analfabeto de pai e mãe. De avô e avó também. Talvez nenhum de seus antepassados tenha se alfabetizado, seja em que língua for. Herdou deles só a cor da pele que ajuda a mantê-lo analfabeto de tudo, mas esperto como só quem aprende a apanhar da vida desde cedo sabe ser. Não sabe o que os rabiscos querem dizer, mas sabe muito bem entender o que lhe dizem. Principalmente quando o dito pela boca não é o mesmo que os olhos dizem. Jodival não escreve nem lê, mas pensa bem e muito. De bobo, não tem nada.

Luizinho fala, lê e escreve em inglês como poucos. Fala sem sotaque, que é o mesmo que falar com o sotaque dos gringos. Também se vira bem no francês. Prefere qualquer uma delas ao português, que também domina. Português é coisa brega. Dessa gentinha que ele despreza. Por infelicidade, vive aqui porque papai, o Doutor Luiz, ganha dinheiro aqui com o trabalho dessa gente que Luizinho só suporta. Mas sempre que pode vai para Miami. E pode quase sempre. Lá, compra, come e se diverte. Aqui, faz um ou outro job. Letrado em três línguas, não tem nada de interessante para dizer em nenhuma delas. Repete como um papagaio o que se diz por aí. É um bobo, mas não sabe disso. Assim como não sabe de muitas outras coisas, apesar de achar que sabe de tudo. Não é de ler, mas repete que o pessoal daqui é sem cultura. Não entende nada da cultura daqui. Nem da de lá. Sabe só de moda e tendências. Em inglês, de preferência.

Sandra é poetisa. Daquelas que conseguem rimar romã com travesseiro. Brinca com as palavras com a desenvoltura de uma criança manipulando seu brinquedo favorito. Escreve menos do que gostaria, porque precisa trabalhar longe. Nos dois ônibus da ida e volta não consegue ler nem escrever porque fica enjoada. Aproveita para ouvir podcast de literatura, poesia, filosofia ou qualquer outra coisa que lhe atice o espírito. No trabalho, ouve só os colegas e escreve o que lhe mandam. Sem poesia ou graça. Não tem muita conversa por lá, pela falta de alguém com quem compartilhar o encanto que sente. Se sente só. Isolada. Como uma ilha de afetividade num mar de sentimentos superficiais, ideias bobas e palavras esquisitas ditas de um jeito que deveria ser engraçado. Nem pensa em publicar o que escreve. Para que? Para quem?

Marta é pernambucana. E só por ser de lá, vira nordestina fora de lá. Insiste no sotaque onde quer que vá. Mas não importa o quanto expressa bem o que pensa, nem o quanto pensa bem, quando o sotaque é ouvido, quem não o tem já não a ouve do mesmo jeito. Às vezes nem ouve, como se ela nada tivesse a dizer. Tornar-se ouvidos analfabetos, que não entendem o que se diz com a musicalidade e os acentos pernambucanos. – Uma pena! – Pensa Marta já cansada dessa gente analfabeta.

Há tempos, os analfabetos não votavam. Mas só os analfabetos das letras. Os outros sempre puderam votar. Hoje, a coisa é mais democrática, para a infelicidade dos alfabetizados das letras que, mesmo sabendo ler, continuam analfabetos de todas as coisas do espírito que entregamos e recebemos com palavras ditas, cantadas e escritas.

Ilustração: Mihai Cauli  e Revisão: Celia Bartoni

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