Estudo aponta que entre 2017 e 2020, 62 mil crianças de até 10 anos foram vítimas de estupro em todo o Brasil
Jaqueline Deister, Brasil de Fato
“Eu parei a moto numa esquina, tirei o capacete e olhei umas menininhas, três, quatro, bonitas, de 14, 15 anos, arrumadinhas num sábado numa comunidade. E vi que eram meio parecidas. Pintou um clima, voltei. ‘Posso entrar na sua casa?’ Entrei. Tinham umas 15, 20 meninas sábado de manhã se arrumando. Todas venezuelanas. E eu pergunto: meninas bonitinhas de 14, 15 anos se arrumando no sábado para que? Ganhar a vida”.
Esse é um trecho da fala do presidente da República e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) durante uma entrevista ao canal do YouTube Paparazzo Rubro-Negro no dia 14 de outubro. O tema da exploração e violência sexual de crianças e adolescentes tem um custo alto para a sociedade brasileira que não consegue garantir a proteção necessária para um desenvolvimento seguro de meninas e meninos durante a infância e adolescência.
De acordo com os dados do “Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil”, produzido pelo Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre 2017 e 2020, foram registrados 179.277 casos de estupro ou estupro de vulnerável com vítimas de até 19 anos – uma média de quase 45 mil casos por ano. Crianças de até 10 anos representam 62 mil das vítimas nesses quatro anos, ou seja, um terço do total.
A maioria das vítimas são meninas, que representam quase 80% dos casos. Na maior parte das vezes, elas têm entre 10 e 14 anos, sendo 13 anos a idade mais frequente.
Impacto
Diante deste cenário, falas de autoridades públicas que prezam pela espetacularização e erotização de um tema doloroso para muitas famílias, reforçam estereótipos e contribuem para o fortalecimento da cultura do estupro.
Na avaliação de profissionais da saúde que atuam no atendimento a vítimas de violência sexual e também de lideranças religiosas que zelam pela garantia do bem-estar de crianças e adolescentes, a declaração do presidente da República contribui para “sexualizar” os corpos de meninas, indo na contramão do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e dos próprios ensinamentos de Jesus Cristo que sempre colocaram as crianças em lugar de cuidado e proteção.
“Esse discurso de falar desse jeito, tão claramente, reforça muito a lógica de que as meninas negras e imigrantes se desenvolvem sexualmente mais rápido. É como se imputassem a elas uma malícia muito grande. E ele [ Bolsonaro] usa esse discurso ao falar delas, ‘estavam bonitinhas’, joga nas meninas uma projeção da malícia dele sobre os corpos delas. Isso tem sido brutal para quem acompanha casos de violência”, explica Cida Alves, psicóloga da Gerência de Vigilância das Violências e Acidentes da Secretaria Municipal de Goiânia.
Um pastor da Igreja Metodista que prefere não se identificar, avalia que o uso político-partidário afasta a população do debate sério realizado por universidades e organizações não governamentais (ONGs).
“Essas últimas falas de autoridades, ao meu ver, prejudicam muito mais do que ajudam, a gente precisa entender que a violência contra a criança é seríssima no Brasil. Não é com piada e brincadeiras, com alarmismo que vamos cuidar disso. Vamos cuidar disso com estudo sério. Temos várias ONGs que estudam a questão da violência [sexual] contra a criança há muitos anos, que têm propostas, metodologia, mas infelizmente virou um caso para eleição, político-partidária, é lamentável”, afirma o líder religioso e ex-integrante do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e dos Adolescentes.
Exploração x Abuso sexual
E qual a diferença entre a exploração sexual de crianças e adolescentes, citada pelo presidente, e abuso sexual contra o mesmo grupo? Alves, que também integra a Rede Não Bata, Eduque explicou ao Brasil de Fato que a principal distinção está no pagamento em dinheiro ou outro benefício.
“No caso da exploração, a criança sofre as violências sexuais, mas normalmente é interpretada no sentido de ter um ganho financeiro. Então, as crianças são usadas as vezes por familiares ou por redes de exploração que exploram elas sexualmente pra ter um ganho. Essa é uma situação muito crítica, muito difícil porque implica em rede de tráfico de pessoas, cárcere privado e todas as espécies do sofrimento tanto psicológicos, quanto físicos”, detalha a profissional que complementa:
“As violências sexuais acontecem porque uma pessoa ou mais buscam ter o ganho direto, o ganho sexual com o corpo da criança. Infelizmente, a maioria das crianças sofre violências sexuais por pessoas muito próximas que querem usar o corpo dela como uma fonte de prazer. As mais comuns são essas práticas que acontecem dentro de casa, nem sempre com penetração, normalmente, com manipulação. Inclusive, os adultos fazem de uma forma que não deixam marca nenhuma. A criança pode ser também vítima de violência por exposição de imagens”, conclui.
Acolher e Proteger
Diante de um cenário alarmante e que, na maioria das vezes, o agressor é um familiar ou alguém próximo à vítima, como a sociedade e, principalmente as comunidades religiosas, devem agir?
Para o pastor metodista, a igreja deve ter compromisso com os ensinamentos de Cristo e estar sempre ao lado da criança. “A igreja deve atuar acolhendo a criança que, porventura, tenha sofrido algum tipo de abuso e violência e também na denúncia no Conselho Tutelar, de maneira que essa situação não se repita e que esse ciclo de violência seja rompido. É muito importante acolher e apoiar a criança que é vítima, mas dependendo do caso, devemos denunciar para os órgãos competentes”, salienta o pastor que afirma ainda o cuidado que a igreja deve ter na seleção dos adultos que realizam atividades com as crianças na comunidade religiosa.
Por sua vez, Alves destaca que a religião tem um papel importante, principalmente no acolhimento da vítima, mas que os casos precisam de acompanhamento de profissionais da saúde. Segundo a psicóloga, estudos mostram que vítimas de violência sexual podem chegar a ter o mesmo nível de trauma de vítimas de guerra.
“Se a pessoa não é acompanhada, ela vai ter dificuldades a vida inteira. Porque mexe não só no aspecto emocional, mas comportamental. Então, o que é mais importante é que a fé, a religiosidade é um fator protetivo para a saúde mental desde que ela não faça uma concorrência com o tratamento em saúde, o tratamento psicoterápico e em alguns casos, o tratamento medicamentoso”, diz a terapeuta.
Como denunciar?
Em caso de suspeita de situação de abuso ou exploração sexual de crianças e adolescentes, as denúncias podem ser feitas para os seguintes órgãos: Disque 100: a denúncia é anônima e pode ser feita por qualquer pessoa; Polícia Miliar – 190: quando a criança está correndo risco imediato; Delegacias especializadas no atendimento de crianças ou de mulheres; Conselhos Tutelares; WhatsApp do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos: (61) 99656- 5008 e Ministérios Públicos.
Edição: Mariana Pitasse