Amanhã, o tempo permanecerá instável em toda a faixa do sul ao norte. Uma zona de forte instabilidade – como toda zona costuma ser – estende o imprevisível também de leste a oeste do país. O clima permanecerá assim até o fim do mês, pelo menos, com muitas chuvas e trovoadas inesperadas. Há grande risco de inundações, deslizamentos e outras tragédias típicas de momentos nos quais a fúria da natureza humana se vê livre das amarras da razão e da compaixão.
Podia-se sentir o ar denso, como se fosse possível cortá-lo à faca, como a um bloco de manteiga amolecida. Mal se olhavam e quando, furtivamente, acontecia dos olhares se encontrarem, rapidamente os rostos de simpatia forçada se convertiam em expressões duras de desprezo e raiva. Até pouco tempo eram amigos. Amavam-se como amigos se amam. Entristeciam com a tristeza do outro e alegravam-se do mesmo jeito, de maneira que cada um se esforçava pela alegria do outro mais até que pela própria. Mas aquelas eleições!… A baixeza do clima envenenou a amizade. Como o mercúrio, substância estranha ao rio, mas que nele lançado transforma seu fluxo vital em condutor de morte e apodrecimento. Converteu-se amor em ódio. Virou clima ruim pela presença, ainda que calada, de quem se sabe não mais sentir do mesmo jeito.
A face se contorcia entre a dor e o êxtase. Era assim, concentrada, que em oração se sentia abençoada. O pastor lhe inflamava o espírito com oratória retumbante citando trechos ora do Antigo, ora do Novo Testamento com expressão de quem diz ao Diabo que não é bem-vindo ali. Denunciava o Mal. Aquele, que apesar de metafísico – ou exatamente por isso –, se pode ver em tudo. Conclamava a uma reforma íntima que começava por fora. Mas, sem que se saiba exatamente quando, o por fora saltou do corpo do fiel para a política. O clima de contrição mística mudou para fervor eleitoral. E da mesma maneira que nas ruas, a placidez passou a ser tida não mais como paz divina, mas como condenável alheamento. Isentão que dá vez ao Diabo. Sentiu-se incomodada com isso. Não sabia – e ainda não sabe – como expressar sua fé com repulsa a alguém. Vê seus irmãos de fé idolatrando pessoas e armas mais que a Cristo e se cala. Isenta-se de atitudes e sentimentos que tornaram o clima de sua fé estranho à sua dor e êxtase.
A tremedeira barulhenta da moto e o vento no rosto descoberto de capacete lhe faz sentir-se vivo. É seu momento de excitação de aço. Chegou atrasado à festa de propósito. Quis curtir um pouco mais o passeio até lá. As formandas, empetecadas para a ocasião, desfilavam serelepes pelo salão e se entupiam de refrigerantes. Ele as olhava atentamente. Estranhamente. O amigo percebeu. “O que foi?”, quis saber. “Pintou um clima”, respondeu com um sorriso de malícia. Estranhou a resposta, mas preferindo acreditar ser nada demais, riu. Riram. Como se ri do que se quer fazer desentendido. Não seria por isso que estragariam aquela amizade, frequentemente reforçada na solidariedade de quem acredita salvar o mundo de um mal abstrato com seus ódios concretos. Além do mais, maior indignação lhes causou ver a menina desejada abraçando um menino negro. Indignou-lhes o afeto visto. “Onde isso vai parar?”. “Este mundo está perdido”. “Esta gente, só matando”. Disse sorrindo maliciosamente enquanto esfregava a mão na coronha da pistola enterrada em suas calças. O amigo assentiu sorrindo. “Isso! É esse o clima. É assim que tem que ser.” disse com a voz mórbida de prazer.
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Ilustração: Mihai Cauli