“Chamar favelados de traficantes foi ódio por parte de Bolsonaro”, diz líder de comunidade

Rumba Gabriel, da favela do Jacarezinho, conta que a reação na comunidade foi de revolta diante do preconceito

Por Katia Marko, do Brasil de Fato RS

Uma das lideranças da favela do Jacarezinho, na zona Norte do Rio de Janeiro, Antonio Carlos “Rumba” Gabriel, 67 anos, afirma que o presidente “propaga ódio, preconceito, racismo, homofobia” nas suas manifestações. E é “claramente simpático” aos milicianos, aos quais ele e seus filhos homenagearam com a distribuição de medalhas.

Ativo no Jacarezinho, Rumba Gabriel começou sua trajetória tendo como principal objetivo expor a cultura da favela do Jacarezinho. Construiu um centro cultural para preservar a história da favela, onde os primeiros moradores chegaram 100 anos atrás. Também implantou uma cooperativa de trabalhadores com 18 oficinas envolvidas com serralheria, estofamentos, marcenaria e confecção, além de cursos de informática.

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“A cultura negra no Jacarezinho é muito forte. Chegamos a ter mais de 30 terreiros nesse território. Havia muitos compositores, tínhamos ladainha e gurufins, como eram chamados os velórios dos mortos nos barracos. As famílias reunidas cantavam samba e depois transportavam os corpos para o cemitério”, conta.

O pai era pedreiro e ladrilheiro, profissão de grande parte dos trabalhadores na época, e também um grande compositor. “Parceiro de Cartola, Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça e Zé Ketti”, conta em matéria da BBC News Brasil no Rio de Janeiro. Foi dele que Antônio Carlos Gabriel herdou o apelido de Rumba, um estilo de dança caribenho semelhante ao jeito como seu pai rebolava.

Nesta conversa, o líder relata o tamanho da indignação dos moradores da favela com a fala de Bolsonaro durante debate com Lula na Band TV.

Confira a entrevista.

Brasil de Fato RS – No debate da Band, Bolsonaro chamou os moradores do Complexo do Alemão, onde Lula participou de ato público, de “traficantes”. Existe verdade nisso? 

Rumba Gabriel – Bolsonaro chamar moradores de favelas de traficantes… não existe nenhuma novidade nessa fala. Ele propaga ódio, preconceito, racismo, homofobia entre outros termos pejorativos. É claramente simpático aos milicianos aos quais ele e seus filhos distribuíram medalhas de honra das casas legislativas. Vizinho do acusado de assassinar Marielle Franco. Lembrando sempre que esta foi acusada de ser aliada a traficantes. Isso tudo porque ela era uma mulher lésbica, negra e defendia com muita força os direitos humanos tão criticados pelo presidente.

Ele quer manter os moradores humilhados e acuados nos guetos

Claro que não existe a mínima verdade na fala dele com relação a moradores serem traficantes. Por trás desta fala o que existe de realidade é manter os moradores humilhados e acuados nos guetos para que continuem com muito medo e sem poder de ação e nunca possam se organizar para uma grande mudança estrutural, trazendo a cidadania a qual nunca tiveram. Esta declaração foi a maior demonstração de ódio e preconceito impregnado neste indivíduo.

BdFRS – Como os moradores das favelas do Rio reagiram a essa fala de Bolsonaro?

Rumba – Causou uma série de protestos e revolta da população favelada. A reação dos moradores não poderia ser de indiferença e sim de revolta por esta discriminação pública, racista e preconceituosa. Vale ressaltar que o sonho de consumo do grupo miliciano é tirar os vendedores de drogas de todas as favelas e dominar. Desta forma conseguem alcançar os seus objetivos, juntos às bandas podres das polícias do Rio de Janeiro.

A reação da população favelada foi de revolta pela discriminação racista

Com os bicheiros eles já conseguiram através da presença de vários delegados e delegadas como temos visto, inclusive com a prisão do ex-secretário da Polícia Civil (Allan Turnowski). Tanto o capitão Adriano (da Nóbrega, ex-capitão do Bope e suposto chefe do Escritório do Crime, morto na Bahia), quanto o Queiroz das Rachadinhas (Fabrício, amigo de Jair Bolsonaro e assessor de Flávio Bolsonaro) foram ou são amigos íntimos de Bolsonaro e seus filhos, assim como o ex-vereador Gabriel Monteiro (do PL do Rio de Janeiro, cassado neste ano por quebra de decoro, acusado de estupro e assédio sexual).

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BdFRS – Em que medida a criminalização dos pobres praticada por Bolsonaro e incentivada pela grande imprensa agrava o preconceito contra os moradores das comunidades e aumenta a violência policial? 

Rumba – A criminalização da pobreza tem como base os negros e brancos moradores pobres de favelas e periferias. Esta é a maior ferramenta que o sistema possui. Ao criminalizar os pobres, estes ficam reféns, submissos e mergulhados na cultura do medo. Desta forma, aos jovens e adolescentes sem uma educação de qualidade, com suas famílias desestruturadas, resta o caminho do crime para uns, trabalhos informais para outros, completamente sem direitos trabalhistas e previdenciários e à mercê de uma polícia corrupta.

Criminalizados, os pobres ficam reféns e mergulhados na cultura do medo

BdFRS – Você é líder comunitário da favela do Jacarezinho, onde segundo dados da Prefeitura do Rio, estima-se tenha 37 mil moradores, e seja a favela mais negra do Rio de Janeiro. Nos conta como foi a formação desta favela, que você considera um “quilombo urbano”. 

Rumba – O Censo utilizado pelos órgãos oficiais é o de 2010, onde a prefeitura trabalha com uma estimativa obsoleta, caduca! A Rocinha, por exemplo, neste censo, acusa 48 mil moradores. Isso também é uma forma proposital preconceituosa, pois os projetos nunca serão estruturais, sempre serão paliativos e, assim, a miséria segue imperando e os pires nas mãos também!

Quilombo urbano porque o Rio de Janeiro foi a cidade que mais recebeu negros, vide o Cais do Valongo na pequena África. Foram mais de 700 mil que desceram ali. Depois logo se espalharam nos morros. O Jacarezinho hoje concentra a maior população negra em favelas no Rio. Rocinha tem como característica uma população enorme de nordestinos. A Maré é um complexo de favelas, assim como a Vila Cruzeiro.

Já o Jacarezinho não é um complexo de favelas e sim uma favela (única). Muitos (dos moradores) vieram da Serra do Mateus na Boca do Mato da Freguesia do Engenho Novo, próximo do Engenho de Dentro e do Engenho da Rainha. Os jesuítas faziam seus trabalhos de catequização dos negros que desciam da Serra e se afugentavam nos morros das proximidades. Muitos eram caçados e mortos, outros morriam de fome ou doenças.

Os barracos eram construídos no alto para poder se avistar a chegada dos capitães do mato

Na construção da igreja de Nossa Senhora da Conceição do Engenho, o pároco Alexandre Língua descobriu vários ossos desses negros. Alguns negros que desceram foram para o morro da Matriz no próprio Engenho Novo, outros vieram para o Jacarezinho que estrategicamente era bem melhor para sobreviver com a mínima paz. Assim nasce o Quilombo Jacaré.

Detalhe: os barracos eram construídos sempre na parte alta dos morros para poder avistar a chegada ou não dos capitães do mato que nunca deixaram de perseguir os negros. Hoje, travestidos de Polícia Militar com o seu emblema ramo de café e duas espingardas cruzadas, símbolo de escravidão e morte. Aproveito para denunciar o censo de 2022, que claramente aqui deixou de entrevistar inúmeras famílias inclusive a minha. Procurei o órgão para que fossem feitas as informações da minha família. Isso é só um pequeno exemplo do tratamento nas favelas.

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BdFRS – Na tua opinião a criminalização dos moradores de comunidade tem alguma relação direta com a escravidão em nosso país?

Rumba – A relação direta com a escravidão é clara neste país. Favelados e periféricos são ainda considerados coisas, objetos e não gente. Ainda na opinião deste sistema é necessário sempre criminalizar essa população para poder mantê-la no cárcere uma vez que a Constituição não permite pena de morte.

Edição: Ayrton Centeno

Morador da comunidade desde que nasceu, há 67 anos, Rumba Gabriel é jornalista, teólogo e é uma liderança local há mais de três décadas – Foto: Movimento Popular de Favelas

 

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