40 anos de Itaipu: Avá Guarani lutam para contar ao STF sua versão sobre impactos da usina

Indígenas do oeste paranaense esperam desde maio para serem ouvidos em ação sobre os impactos e violações de Itaipu

Beatriz Drague Ramos, Brasil de Fato

Às vésperas do aniversário de 40 anos do enchimento do reservatório da Usina Hidrelétrica (UHE) Itaipu Binacional, em 27 de outubro de 1982, os quase quatro mil indígenas do povo Avá Guarani, no Paraná, lutam para que as suas vozes sejam ouvidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Civil Originária (ACO) 3555.

A ação, ajuizada pelo procurador-geral da República Augusto Aras, trata da reparação aos danos causados pela usina e agentes dos órgãos públicos competentes, no oeste do Paraná, como o alagamento de aldeias inteiras, destruição de casas, inundação de locais sagrados e esbulho das terras tradicionalmente ocupadas pelos Guarani.

Os indígenas, distribuídos atualmente em 24 aldeias concentradas em dois grandes territórios – as Terras Indígenas (TIs) Tekoha Guasu Guavira e Tekoha Guasu Okoy Jakutinga –, reivindicam que as comunidades afetadas participem da ação enquanto parte envolvida, apoiadas por sua própria organização representativa e parceiros

A peça é assinada pela Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), pelo Centro de Trabalho Indigenista (CTI), pelo Centro de Pesquisa e Extensão em Direito Socioambiental (Cepedis), bem como pelo Prof. Carlos Frederico Marés, advogado de referência nacional na área indígena e ambiental.

O pedido dos indígenas está pronto para ser analisado desde maio, mas ainda não entrou em pauta – mesmo sendo a principal ferramenta jurídica para que os Avá Guarani conquistem a reparação pelas violações sofridas há tanto tempo.

Para Celso Jopoty Alves, coordenador estadual da CGY do Paraná e liderança da Reserva de Oko’y, é urgente que a ação seja julgada logo. “Nós precisamos da terra que a gente perdeu para sobrevivermos e para os nossos jovens também sobreviverem. A Itaipu tem uma dívida muito grande com a gente. A Itaipu nunca reconheceu o erro”, afirma, lembrando que a empresa segue negando os impactos sofridos pelos indígenas.

“A Catarata é cemitério guarani!”

A memória das violações sofridas pelos Avá Guarani graças à construção de Itaipu estão vivas até hoje. “Diziam que a água ia chegar em quinze dias, mas passaram três dias e já estava tudo alagado”, lembra Leandra Rete Lopes, 35 anos, coordenadora regional da CGY, lembrando-se das falas dos anciões sobre os últimos momentos em Jakutinga. “Tudo o que tinha na aldeia virou água, até o cemitério ficou pra debaixo d’água. Será que as pessoas, as autoridades não pensam na destruição? A luta dos Guarani nunca vai acabar, temos que lutar e achar mais pessoas para nos apoiar”, diz.

Para a advogada do CTI, Júlia Navarra, que assina a peça com os demais advogados, o ingresso dos Avá Guarani na ação é uma das formas de tentar garantir que as provas dessas violações sejam colocadas à luz na Suprema Corte. “O ingresso enquanto parte reafirma a capacidade postulatória dos povos indígenas em processos. O mais importante é os Guarani falarem no processo”.

Ela lembra também que o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a Fundação Nacional do Índio (Funai), junto ao estado do Paraná – associado a empresas do setor do agronegócio e à Itaipu – promoveram violações que vão desde o trabalho análogo à escravidão na extração da erva-mate à titulação irregular do território indígena, incêndio de casas, até o constante questionamento da identidade dos Avá Guarani e inundação de aldeamentos inteiros. “Pessoas mais velhas dizem que tiveram que sair correndo quando viram a água chegando, não tinham sido nem avisadas. Foi uma política de ordem nacional para realmente apagar uma identidade, uma cultura.”

É o que comprova um dos depoimentos reproduzidos na ação, de uma anciã guarani falecida aos 90 anos de idade: “Teve guerra com os índios para tirar os Guarani da terra: eu vi, eu vi! Mataram tudo! Jogavam os índios nas Cataratas, abriam a barriga com facão e jogava depois nas Catarata! Era para o corpo não boiar, pra afundar! O cacique da aldeia Guarani, Teve, e a mulher dele, foram tudo morto e jogado nas Cataratas. A Catarata é cemitério Guarani!”.

Ameaças e vulnerabilidades continuam

As violações narradas pelos indígenas se estendem até hoje. As comunidades vivem sob constantes ameaças de sofrerem com despejos, uma vez que os processos de identificação e delimitação das Terras Indígenas Tekoha Guasu Guavirá e Guasu Okoy Jakutinga estão paralisados na Funai.

No caso da Tekoha Okoy Jakutinga, uma sentença de 14 de dezembro de 2020 do Juízo Federal de Foz de Iguaçu condenou a Funai e a União por não concluírem os procedimentos demarcatórios das áreas que compõem a Terra Indígena, com pena de multa no valor diário de R$ 1.200,00. Diante disso os órgãos argumentaram que não poderiam seguir com os trabalhos por conta da Portaria nº 419 do Ministério da Saúde, de 17 de março de 2020, que restringia o acesso às terras indígenas apenas para execução de “atividade.

Mesmo com a subsequente suspensão da normativa, com o advento da Portaria nº 913 do Ministério da Saúde, as atividades seguem paralisadas sob as alegações usuais: limitações orçamentárias, falta de recursos humanos disponíveis, segurança das equipes em campo e, no que vem paulatinamente sendo adotado pela Fundação aparelhada pelo bolsonarismo, a impossibilidade de seguimento em qualquer procedimento demarcatório até a conclusão do julgamento sobre a Tese do Marco Temporal, em desconformidade constitucional e consequente agravamento dos conflitos envolvendo direitos territoriais indígenas no país.

Já o processo demarcatório da Terra Indígena Tekoha Guasu Guavira, que estava na etapa de identificação, foi anulado em 2020 pela Justiça Federal do Paraná após decisão favorável ao município de Guaíra à posse de terras. Ainda no mesmo ano, no âmbito desse processo, a Funai declarou falta de interesse em recorrer da sentença, publicando na sequência a Portaria nº 418, de 17 de março de 2020, em que a presidência da Funai determina a anulação dos estudos de mais de uma década realizados na região, em evento inédito no país. À vista disso, a CGY recorreu impetrando um mandado de segurança coletivo com a finalidade de derrubar o ato administrativo e conseguir, assim, garantir os direitos dos indígenas ao território tradicionalmente ocupado.

Além do ataque direto aos procedimentos de identificação e demarcação em curso, os Avá-Guarani ainda são alvo de processos judiciais possessórios contra as suas aldeias. Somam-se hoje, de acordo com o levantamento da Comissão Guarani Yvyrupa, cerca de 83 processos fundiários movidos por particulares ligados à grandes monoculturas de soja e milho, como a gigante da erva-mate Matte Larangeira, e pela própria Itaipu Binacional.

A falta de saneamento básico, de fornecimento de água potável e eletricidade, além da insegurança alimentar e de problemas de saúde causados pela contaminação por agrotóxicos pulverizados nas lavouras próximas às tekohas são algumas das consequências deste cenário de insegurança territorial em que se encontram os Avá Guarani, segundo a peça assinada pela CGY.

O que pedem os Avá Guarani?

A ação reúne provas materiais e testemunhais que comprovam a participação ativa do Estado nas violações de direitos humanos cometidas. Por isso, inclui como réus a União, o Incra e a Funai – que deverão ser responsabilizados pelos danos causados aos indígenas e ao meio ambiente com o planejamento e construção da usina. Os Guarani cobram também a inclusão do estado do Paraná – governado atualmente por Ratinho Junior (PSD) – como réu na ação.

Estipulado inicialmente em R$ 10 milhões pela Procuradoria-Geral da República (PGR), no pedido dos Avá Guarani, o valor da reparação pelos danos globais sofridos deve ser revertido em ações de reparação territorial e de forma coletiva – já que o território é a base para seu modo de existência.

Por isso, os Avá Guarani pedem a continuidade dos estudos de demarcação e desintrusão das TIs Tekoha Guasu Guavira e Tekoha Guasu Oco’y-Jakutinga; apoio financeiro e técnico para reassentamento de eventuais ocupantes não indígenas e extinção de ações possessórias contra as comunidades, dentre outras formas possíveis de reparação territorial.

Os Guarani querem também ser indenizados pela parcela de seu território alagado por meio do custeio, pelos réus, de projetos de gestão ambiental e territorial, etnodesenvolvimento, educação e saúde diferenciadas, infraestrutura, fortalecimento cultural e de suas organizações próprias. E pedem ainda o estabelecimento de perímetros de segurança para suas terras até que seja garantida a sua demarcação e restauração ecológica e ambiental, já que essas áreas foram historicamente devastadas pelas monoculturas de soja e milho, que predominam na região, além do acesso a direitos fundamentais que cotidianamente lhes são negados – como a distribuição e apoio à produção de alimentos, abastecimento por água potável e saneamento básico, entre outros.

Por fim, como as violações não se limitam ao momento de construção da usina, mas a um processo histórico que vem desde a Ditadura Militar, os Guarani demandam pedidos públicos de desculpas e outras medidas de caráter não financeiro, como a reconstrução de narrativas históricas, a garantia à verdade e à memória e o fortalecimento das instituições democráticas.

Histórico de ações

A ACO 3555 foi ajuizada em 16 de dezembro de 2021 e vem na esteira do arquivamento da ACO 3300, ingressada pela então procuradora-geral Raquel Dodge. Essa ação foi resultado de quase uma década de estudos levantados por Inquérito Civil próprio. O processo já propunha a reparação de danos sofridos pelos indígenas e a responsabilização do Estado brasileiro pelas violações praticadas contra os Avá-Guarani, mas foi extinta pelo PGR Augusto Aras com a suposta falta de provas e material. Segundo Aras, a ação não se sustentava por conta de uma suposta “superficialidade documental”.

Diante disso, os Avá-Guarani tentaram reverter essa medida, entretanto o pedido foi negado pelo ministro Alexandre de Moraes. Na época, a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (MPF) protocolou novos documentos produzidos por entidades apoiadoras dos indígenas para barrar a extinção da ação. Mesmo assim, a ação foi anulada sendo substituída pela ACO 3555.

Entre eles estava o Atlas do Desterro Oco’y-Jakutinga, organizado pelo professor Paulo Tavares, arquiteto e urbanista da UnB O documento foi incorporado no pedido de ingresso dos indígenas neste ano. O estudo apresenta uma coleção de cartografias que analisam como se deu o processo de esbulho, remoção, redução e apagamento das comunidades guarani de Oco’y-Jakutinga. Neste atlas, os mapas aparecem não apenas como documentos de violações, mas como instrumentos destas violações, isto é, meios através do qual este processo de remoção e apagamento foi operacionalizado.

A petição dos indígenas usa mapas do Atlas do Desterro, que indicam ocupações ilegais do estado do Paraná de terras dos Avá-Guarani de Okoy Jakutinga desde as décadas de 1920 até 1980, além das diversas medidas adotadas pela Funai/SPI e pelo estado para negar a existência dos Avá-Guarani e liberar espaços para facilitar e acelerar o processo de construção da usina.

Ela também aponta a presença de numerosas famílias Avá-Guarani nos tekoha Dois Irmãos, Santa Rosa e Três Irmãs, no atual município de Santa Helena, a cerca de 45 km ao norte da antiga Tekoha Okoy Jakutinga, e que também foram parcialmente alagadas. É possível comprovar também a presença ininterrupta dos Avá-Guarani na região do oeste do Paraná, com foco justamente em Guaíra, Terra Roxa e Altônia, desde cerca de 1700 até os tempos atuais.

De acordo com o documento, o estado do Paraná, “sob conveniência da União, realizou a titulação irregular do território tradicionalmente ocupado pelos Avá-Guarani em favor de companhias privadas, especialmente a Matte Larangeira, que explorou a região no sistema de obrage”, um modelo de exploração adotado em regiões de matas subtropicais, como a região Oeste do Paraná.

A reportagem questionou o estado do Paraná sobre o pedido dos indígenas para que o estado seja inserido na ação como réu e sobre como o estado tem colaborado com a reparação dos impactos da usina ocorridos na vida dos indígenas. Em resposta, o governo afirmou apenas que “o estado do Paraná não é parte do processo e só se manifestará se for demandado pelo Poder Judiciário.”

Procurados pela reportagem, a Funai, o Incra e a Itaipu Binacional não responderam, até o momento, aos questionamentos encaminhados sobre a reparação dada aos indígenas impactados pela usina. O STF também não retornou as perguntas sobre a previsão de atendimento ao pedido dos indígenas, assim como a previsão para o início do julgamento da ação. A reportagem será atualizada se houver respostas aos questionamentos.

Essa reportagem foi produzida com apoio da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY)

Edição: Thalita Pires

Imagem: Encontro de lideranças na Tekoha Tajy Poty, na Guasu Guavira, município de Terra Roxa (PR) em abril de 2022 – Leandro Lucato Moretti/CGY

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