Verba pública financiou candidatos menores que espalharam conteúdos considerados falsos

Influenciadores e “nós de rede” fizeram mais campanha para Jair Bolsonaro do que para eles mesmos

Por Laura Scofield, Matheus Santino, Agência Pública

Apesar dos esforços do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o pleito de 2022 tem sido marcado pela disseminação de mentiras, por vezes financiadas com dinheiro público.

Levantamento inédito da Agência Pública identificou que candidatos bolsonaristas utilizaram fundos eleitorais para disseminar conteúdos considerados como desinformação em busca da vitória nas urnas.

Fernando Lisboa (PL-SP), dono do canal Vlog do Lisboa, foi penalizado pelo Google e teve diversos conteúdos retirados do ar. Lisboa recebeu R$200.000,00 de verba pública pelo PL e pagou R$36.935,00 a uma empresa de marketing digital chamada Monkey Colors, que foi criada em fevereiro deste ano, além de ter desembolsado R$15.000,00 para a “criação e inclusão de páginas na internet”.

Do total de 16 anúncios impulsionados pelo youtuber bolsonarista no Google, 15 foram retirados do ar por violação às políticas da rede, que proíbem, entre outros, fazer declarações enganosas e ocultar ou omitir informações importantes. Os anúncios removidos foram exibidos por em média 7 dias — dois deles chegaram a ficar 12 dias no ar antes de serem barrados pelo Google.

Lisboa gastou R$33.000,00 com 16 anúncios no Youtube, dos quais apenas um continuou no ar. O único anúncio que não foi removido custou entre R$ 2 mil e R$ 2,5 mil, ou seja, o candidato usou cerca de R$ 30 mil de dinheiro público para a criação de anúncios que não puderam ser mantidos online por descumprirem regras do Google. O único anúncio não removido tem cerca de 15 segundos. Nele, o candidato defende o governo de Jair Bolsonaro (PL) e apresenta sua candidatura.

Este ano, Lisboa esteve presente em congressos bolsonaristas e defendeu a reeleição do atual presidente antes da data permitida para a realização de campanhas eleitorais. O youtuber também já propagou informações falsas sobre o sistema de votação brasileiro em seu canal e é investigado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no âmbito dos inquéritos sobre atos antidemocráticos, que ainda não foi finalizado.

Lisboa tem mais de 852 mil inscritos em seu canal no Youtube e 568 mil seguidores no Facebook. Mesmo assim ele obteve apenas 25.294 votos e não foi eleito.

Para o advogado eleitoral Fernando Neisser, o uso de dinheiro público para financiar desinformação pode configurar uma “ilegalidade”. Caso haja o uso da verba para produzir ou impulsionar conteúdos, o candidato pode ter que pagar multas de no mínimo R$ 5 mil. Às vésperas do 2º turno, o TSE multou a campanha de Jair Bolsonaro em R$ 60 mil por impulsionar site com propaganda negativa sobre o PT. Além disso, as pessoas podem responder por “divulgação de fato sabidamente inverídico para fins de propaganda eleitoral”, crime previsto no Art. 323 do Código Eleitoral.

Lisboa já apresentou à Justiça Eleitoral informações sobre como usou 77% do total recebido — os candidatos que finalizaram a campanha têm até 1º de novembro para terminar a prestação de contas. Ele não declarou ter recebido doações ou usado dinheiro próprio para financiar sua campanha, o que significa que todo o gasto teria sido oriundo do financiamento público.

A reportagem questionou Fernando Lisboa sobre o que teria levado à exclusão de seus anúncios pelo Google, mas ele não retornou até a publicação desta reportagem.

Campanha de mentiras

Outra influenciadora que se destaca por ter usado dinheiro público para produzir conteúdo para as redes durante a campanha eleitoral é a autointitulada Repórter Fernanda Salles (Republicanos-MG), que concorreu a deputada estadual por Minas Gerais, mas não foi eleita.

A candidata recebeu R$50.000,00 do Republicanos, partido que elegeu aliados do presidente, como Damares Alves (Republicanos-DF) para o Senado do Distrito Federal. Damares e Eduardo Bolsonaro gravaram vídeos declarando apoio à candidata, que foi escolhida por cerca de 10 mil pessoas nas urnas.

Fernanda Salles gastou ao menos R$17.500,00 com impulsionamento de conteúdo, mas a reportagem não encontrou seus anúncios nas ferramentas de transparência do Facebook e Google. Como Lisboa, ela também não declarou ter recebido doações ou usado verba própria para a campanha, o que indicaria que todos os seus gastos foram custeados por verba pública.

Um dos vídeos de produção paga pela campanha da candidata abordou um suposto projeto político da “esquerda comunista” para se infiltrar em igrejas evangélicas e cooptar crianças para a ideologia. A candidata publicou o vídeo no Facebook em 14 de setembro, onde o conteúdo chegou a 13 mil visualizações, 1,2 mil reações e 166 comentários.

Além de mostrar pedaços do vídeo considerado enganoso pelo Coletivo Bereia, Fernanda Salles comenta sobre o conteúdo: “O vídeo que vou te mostrar hoje é um alerta importante para os pais”, diz. “A esquerda se infiltrou nas instituições, dentro do Judiciário, dentro das escolas, e até mesmo dentro das igrejas”, concluiu, citando o ideólogo da extrema direita, Olavo de Carvalho.

Além do número da candidata, o vídeo apresenta o CNPJ da candidatura, o que indica que se trata de conteúdo oficial produzido pela campanha.

Em 29 de setembro, Fernanda Salles publicou um vídeo em que ela afirma que a esquerda persegue os cristãos, também com a marca de conteúdo oficial da campanha. País de maioria católica e evangélica, especialistas indicam que não existe cristofobia ou perseguição aos cristãos no Brasil, ao contrário do que enfrentam fiés de religiões afro-brasileiras.

O perfil também compartilhou um vídeo em que o candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) fala que “pobre se contenta com o mínimo para sobreviver”. A Reuters considerou o conteúdo como enganoso, já que a fala teria sido retirada de contexto. Na fala completa, Lula compara o pobre ao rico, que segundo ele “custa caro, é mal-agradecido e ainda dá golpe no pobre”.

Jouberth Souza (PL-MG) também recebeu dinheiro público e compartilhou informações consideradas falsas nas suas redes sociais durante a campanha eleitoral — participou, por exemplo, da campanha de descredibilização dos institutos de pesquisa tocada por bolsonaristas. Bastante ativo no Twitter, Souza se candidatou a deputado estadual e recebeu R$20.000,00 do PL. Teve 696 votos, o que indica um gasto de R$28,73 por voto. Não foi eleito. Até o momento não declarou à Justiça Eleitoral como gastou o dinheiro que recebeu. Como já noticiado pela Pública, Jouberth funcionaria como um “nó de rede”, ajudando a impulsionar campanhas de desinformação que apoiam o presidente.

Em sua conta no Instagram, que conta com mais de 18 mil seguidores, o candidato só divulgou seu número três vezes durante o período de campanha do 1° turno. O influenciador preferiu usar sua plataforma como uma espécie de palanque para Bolsonaro, repostando vídeos do presidente e atacando a oposição.

Em setembro, investigação da Agência Pública mostrou como Jouberth passou de ser um jovem anônimo do interior de Minas a candidato pelo partido do presidente com direito a financiamento público.

Laranjas digitais e desinformadores

A reportagem também analisou os 3 candidatos a deputado federal e os 3 a deputado estadual ou distrital menos votados do PL em todas as unidades federativas, a fim de mensurar o uso das fake news como estratégia de campanha por candidaturas que não obtiveram sucesso nas urnas. Somente foram considerados aqueles que haviam declarado receitas até 17 de outubro, o que totaliza 130 candidatos.

Dos 130, a Pública identificou que ao menos 35 compartilharam um ou mais conteúdos considerados enganosos em suas redes. Desses 31 receberam verba pública.

Esses candidatos não têm uma presença digital tão forte quanto outros influenciadores bolsonaristas, como Fernando Lisboa e Fernanda Salles. Entretanto, entre seus poucos posts existem alguns que fazem afirmações consideradas mentirosas e replicam as narrativas utilizadas pela campanha de Jair Bolsonaro.

Dos 35, 14 apresentam indícios que podem configurar candidaturas laranjas, como pouca ou nenhuma campanha para si nas redes sociais. Dessas, 11 foram financiadas com dinheiro público, via fundo partidário ou eleitoral, disponibilizados aos partidos pela União para custear gastos.

No total, os 11 candidatos que postaram desinformação e não se esforçaram em pedir votos receberam R$ 254.819,49 de dinheiro público por meio do partido do presidente. O valor indica uma média de cerca de R$ 23 mil por candidato —  o maior valor cedido foi R$ 65.857,33 e o menor, R$ 150,00.

A Agência Pública também investigou possíveis candidaturas laranjas no PL. A reportagem identificou que ao menos 41 candidatos fizeram pouca campanha para si próprios nas redes sociais, o que, de acordo com especialista ouvido, é um indicativo de que as candidaturas poderiam ser falsas. Desse total, 75% são mulheres.

A candidata a deputada federal pela Paraíba, Renata Martins (PL-PB), teve o segundo voto mais caro do levantamento entre aqueles que usaram dinheiro público e fizeram ao menos um post com informações consideradas falsas pela checagem da reportagem e checadores de fatos: R$ 220,59. Ela recebeu o apoio de apenas 68 pessoas nas urnas, mesmo tendo à sua disposição R$ 15.000,00 de fundo partidário cedido pelo PL.

Martins não fez nenhum post sobre sua candidatura no Instagram, onde ainda está escrito que ela é pré-candidata. No Twitter é bastante ativa: retuitou diversas vezes o presidente, seus filhos e parlamentares bolsonaristas, além de compartilhar conteúdos barrados pelo TSE, como a propaganda eleitoral que utiliza imagens gravadas no 7 de setembro.

Em 21 de setembro, a Pública mostrou que a campanha do atual presidente turbinou anúncios com vídeos proibidos pelo TSE pós 7 de setembro.

Já Val Guedes (PL-SP) é a que mais recebeu dinheiro público. Ganhou R$ 65.857,33 de verba pública, mas só fez duas publicações com seu número no Facebook, onde compartilhou posts com desinformação e declarou voto a Jair Bolsonaro.

Em 13 de setembro, afirmou no Facebook que o “Data folha (sic) é do Instituto Lula”, o que é mentira. Alguns dias depois, em 3 de outubro, compartilhou na mesma rede um vídeo que indica que Lula defende o nazismo e o fascismo, o que foi checado e considerado falso pela agência Lupa.

Além da lei eleitoral não permitir a divulgação de informações falsas contra candidatos durante a campanha, a falta de esforço na busca por votos em plena campanha eleitoral poderia indicar que se trata de uma candidatura laranja. Essas candidaturas podem servir para maquiar o cumprimento de leis —  como a que determina que 30% das candidaturas nas eleições proporcionais sejam do gênero feminino —  ou para desviar dinheiro para outros nomes considerados pelo partido como mais competitivos.

Além dos 14 candidatos que espalharam desinformação e têm indícios de serem laranjas, outros 21 receberam dinheiro público para financiar suas campanhas e compartilharam informações falsas. Como nesses casos foi identificado o esforço dos candidatos em busca de votos, eles não podem ser considerados possíveis laranjas.

Lícia Melo (PL-SE), candidata a deputada federal por Sergipe, é uma das mais atuantes nas redes. Ela conta com mais de 111 mil seguidores no Instagram e fez diversos posts sobre sua campanha. Em um deles, comparou os dois candidatos à presidência, afirmando que Lula, candidato da oposição, é a favor do narcotráfico. A candidata recebeu R$100 mil do fundo e teve apenas 327 votos, o que indica uma receita de R$305,81 por voto.

A Pública mostrou que, em busca de uma vitória eleitoral no 2º turno, bolsonaristas têm apostado em mentiras que ligam Lula ao crime organizado.

Outro que se destacou foi o Chef Vinícius Rossignoli (PL-DF), ex-participante do programa MasterChef, que recebeu R$200 mil de dinheiro público do PL para financiar sua campanha a deputado federal pelo Distrito Federal. Ele obteve 1.029 votos, o que indica um gasto de R$194,36 por voto.

Com mais de 40 mil seguidores no Instagram, Rossignoli postou um vídeo em que aparece um suposto áudio de Lula reagindo ao depoimento de Palocci. 10 dias após a postagem, o TSE mandou as redes sociais removerem o áudio das suas plataformas por ser falso e conter desinformação.

Em resposta à reportagem, Vinícius Rossignoli disse que não publicou nenhuma informação falsa e que “todas as postagens possuem fonte” e foram registradas em cartório pelas pessoas responsáveis. “Como não vivo de política, tenho meu trabalho como palestrante e consultor e hoje estou retornando a Brasília para resolver o último documento pendente, tudo dentro do prazo estipulado pelo TSE”, acrescentou.

A Pública contatou todos os citados por email ou redes sociais, mas eles não responderam. Respostas enviadas após a publicação serão adicionadas no texto.

De acordo com Fernando Neisser, a Justiça Eleitoral tende a ser mais dura com candidatos do que com os chamados “cidadãos comuns”. Mesmo que os dois estejam sujeitos a responder pelos possíveis crimes ou ilícitos eleitorais, a justiça entende que “candidato é um ator do jogo, então deve muito mais respeito pelas regras”, explicou.

*Colaboraram Bianca Muniz e Bruno Fonseca

Metodologia

A Agência Pública analisou os perfis nas redes e a prestação de contas parcial no TSE dos três candidatos menos votados de todas as unidades federativas para os cargos de deputado federal e deputado estadual ou distrital, o que engloba 162 nomes. Desses, 130 haviam declarado ter recebido dinheiro para financiarem suas candidaturas até 17 de outubro.

Dos 130, 124 receberam dinheiro público via fundo partidário ou eleitoral —  os outros 6 declararam ter financiado suas campanhas apenas com doações de pessoas físicas, única modalidade permitida após a proibição do financiamento eleitoral por empresas em 2016. Não foram identificadas as redes sociais de 11 nomes.

Os dados foram exportados do Repositório de Dados Eleitorais do Tribunal Superior Eleitoral no dia 17 de outubro e atualizados no dia 24. Foram utilizados os arquivos com informações dos candidatos, resultados por município e zona eleitoral, despesas contratadas e receitas; Filtramos as linhas correspondentes aos candidatos do PL;

Os resultados por município, despesas e receitas foram agregados pela coluna SQ_CANDIDATO das planilhas; Em seguida, fizemos o cruzamento das planilhas pelas colunas SQ_CANDIDATO e CPFOs resultados do cruzamento podem ser vistos no arquivo.

Imagem: Fernando Lisboa se encontrou com Jair Bolsonaro em setembro de 2021 – Reprodução

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