Desafios e prioridades do novo governo Lula. Entrevista especial com Lena Lavinas, Roberto Dutra, André Luiz Olivier da Silva e Moysés Pinto Neto

Os desafios mais urgentes do novo governo Lula são econômicos e sociais, afirmam os pesquisadores

IHU

“Manter unida e atuante a frente democrática que se constituiu em torno do presidente Lula para destronar Bolsonaro” será o primeiro desafio do novo governo eleito no último pleito, avalia a economista Lena Lavinas. Segundo ela, nos próximos meses de transição antes da posse do ex-presidente Lula, o governo precisará “estabelecer com clareza as prioridades que estarão na sua agenda para os primeiros 100 dias” e, posteriormente, para os anos seguintes, “para manter os quase 60 milhões de brasileiros que o elegeram mobilizados e atuantes, além de atrair parte do eleitorado que votou em Bolsonaro, embora não se trate de bolsonaristas de raiz”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ela destaca as ações urgentes a serem implementadas nos próximos quatro anos: elevar a renda da população, transformar o novo Bolsa Família em direito social, retomar a política de aumento do salário mínimo, estabelecer a isenção de IRPF para quem ganha até cinco mil reais mensais, implementar um programa de anulação/renegociação de dívidas das famílias, além de definir “uma política nacional que vise restringir o uso de armas de fogo e coibir a violência do Estado”, apresentando “metas imediatas de promoção da sustentabilidade ambiental”.

Já na avaliação do sociólogo Roberto Dutra, “os desafios mais urgentes são econômicos e sociais: apresentar um novo modelo de desenvolvimento econômico capaz de gerar inclusão imediata e reconstruir as políticas de combate a fome e à miséria”.

Para o jurista e professor André Luiz Olivier da Silva, “o desafio mais urgente é, sem dúvida, o combate imediato à fome e à miséria de milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade”. O problema, como ele mesmo coloca, é que há uma série de questões que ameaçam a institucionalidade que complicam até o exercício do Estado democrático de direito, o que dificulta ainda mais a luta contra a fome. Nesse sentido, compreender que a vitória de Lula é apenas um primeiro passo para a unificação do Brasil. “O segundo passo será garantir a posse do presidente eleito no início do ano que vem. Eventos como a resistência à prisão de Roberto Jefferson, as ameaças de Carla Zambelli e as barreiras da PRF para impedir o voto de cidadãos nordestinos, mostram que o candidato derrotado nas urnas e seus apoiadores possam vir a confrontar o resultado das urnas”, avalia.

Para Moysés Pinto Neto, “reconstruir o Estado brasileiro” e “tornar o Brasil algo mais próximo de uma República novamente” serão os principais desafios do governo Lula. “Será um governo de reconstrução, e por isso mesmo sua tarefa é dura, mas viável. A Frente Ampla deixou claro que muita gente percebeu a devastação sem precedentes e está disposta a colaborar”, prospecta.

Confira as entrevistas.

Lena Lavinas é graduada em Economia pelo Institut d’Etudes pour le Développement Economique, Université Paris-I, França. É mestra e doutora em Estudos sobre a América Latina pelo Institut de Hautes Etudes d’Amérique Latine, Université Paris-III, França. Nos últimos anos foi pesquisadora e professora visitante em várias universidades americanas, alemãs e francesas. No Brasil, é professora titular do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.

Entre suas pesquisas mais recentes, destacam-se o livro The Takeover of Social Policy by Financialization: The Brazilian paradox (New York: Palgrave Macmillan, 2017) e os artigos “Brasil Anos 2000: a política social sob regência da financeirização” (Novos Estudos, v. 37-2, p. 191-211, mai-ago 2018, São Paulo: CEBRAP), publicado em coautoria com Denise Gentil, e “Transformações dos sistemas de saúde na era da financeirização. Lições da França e do Brasil” (Ciência & Saúde Coletiva, 23(7), p. 2147-2158, 2018), publicado com Ana Carolina Cordilha.

IHU – Que análise faz do processo eleitoral?

Lena Lavinas – Apesar das regras claras estabelecidas pelo Tribunal Superior Eleitoral – TSE, tivemos um processo eleitoral bastante conturbado, marcado por fake news e desinformação, onde as mídias digitais e redes sociais levaram a melhor sobre as formas mais tradicionais de fazer política, como comícios, debates televisivos, panfletagem etc. As forças progressistas precisam se qualificar para atuar de forma mais efetiva, promovendo boas práticas (leia-se a verdade) nas “nuvens”. Surpreendeu que abusos manifestos por parte do bolsonarismo na reta final não tenham sido objeto de repressão mais dura e punição em respeito à lei. Isso dito, o enorme esforço da justiça eleitoral, nos meses que precederam a abertura da campanha eleitoral, em defesa da inviolabilidade e segurança das urnas eletrônicas surtiu efeito, pois entre os dois turnos não houve denúncias nem questionamento sobre a confiabilidade do sistema de votação. Os brasileiros mostraram acreditar no seu sistema eleitoral, que venceu todas as provas. A extrema-direita, que por meses tentou inviabilizar as eleições alegando haver fraudes no sistema de votação, perdeu, portanto, um de seus cavalos de batalha. Vão ter de inventar outro mote porque esse não se sustenta mais, o que fortalece os resultados dos pleitos eleitorais e nosso regime democrático.

IHU – Quais os desafios mais urgentes do futuro governo?

Lena Lavinas – Primeiramente, manter unida e atuante a frente democrática que se constituiu em torno do presidente Lula para destronar Bolsonaro e sua clique, pelo menos até a posse da chapa Lula-Alckmin, em primeiro de janeiro de 2023, pois a transição promete não ser fácil, trazendo riscos. Há que permanecer alerta e vigilante, pois o presidente incumbente possivelmente multiplicará esforços para seguir desmontando/debilitando a institucionalidade democrática.

Nesse período que antecede a posse, cabe ao novo governo informar a composição de seus ministérios e seus objetivos, justificando suas escolhas, além de estabelecer com clareza as prioridades que estarão na sua agenda para os primeiros 100 dias; para o primeiro ano de governo e suas metas de médio e longo prazo, inclusive para manter os quase 60 milhões de brasileiros que o elegeram mobilizados e atuantes, além de atrair parte do eleitorado que votou em Bolsonaro, embora não se trate de bolsonaristas de raiz. Sabemos que o segmento que deu a vitória ao presidente Lula é aquele cuja renda domiciliar não ultrapassa dois salários mínimos. Porém, se como indica o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – DIEESE, o salário mínimo hoje deveria situar-se em cerca de seis mil mensais, reunindo até esse patamar o conjunto dos setores populares e da classe trabalhadora, há que “cuidar” (palavra usada enfaticamente pelo presidente Lula) igualmente daqueles na faixa de dois a cinco salários mínimos, sujeitos a condições de trabalho precárias, asfixiados por dívidas e para quem a insegurança socioeconômica é uma realidade ameaçadora, que os pode radicalizar à direita.

Sair das generalidades e da superficialidade que marcaram a campanha eleitoral é indispensável. Ações em três frentes são urgentes:

A primeira frente é definir quais políticas e programas serão implementados de imediato com vistas a elevar a renda da população, reduzindo seus níveis de destituição e vulnerabilidade. Entram no rol dessas ações:

i) a transformação do novo Bolsa Família em direito social, com regras definidas e institucionalizadas que impeçam o uso da política de assistência e combate à pobreza manipulável pelos que estiverem à frente do executivo. O objetivo do programa deve ser eliminar a pobreza extrema ou indigência;

ii) a retomada da política de aumento do salário-mínimo e a definição de regras de atualização da defasagem salarial do funcionalismo público;

iii) a imediata isenção de IRPF para quem ganha até cinco mil reais mensais;

iv) a implementação de um programa de anulação/renegociação de dívidas das famílias, que suste a reprodução do processo de endividamento como mecanismo de sobrevivência, através de regulações impostas ao setor financeiro e, sobretudo, ampliando em número e qualidade a oferta de serviços públicos cuja provisão permitirá elevar a renda disponível das famílias ao deixar de pagar por bens e serviços essenciais e por eliminar o pagamento de juros da dívida desafogando o orçamento familiar. A área da saúde deve ser prioritária, consolidando e ampliando o Sistema Único de Saúde – SUS graças ao aumento substantivo dos recursos federais ao seu financiamento.

A segunda frente é a da segurança pública, com a definição de uma política nacional que vise restringir o uso de armas de fogo e coibir a violência do Estado.

Em terceiro lugar, a apresentação de metas imediatas de promoção da sustentabilidade ambiental, com redução do desmatamento e revitalização das áreas de preservação ambiental, proteção dos territórios indígenas e repressão eficaz contra os inúmeros crimes ambientais.

IHU – Quais são os caminhos para enfrentar esses desafios?

Lena Lavinas – Definir quem são as forças no Congresso que farão parte de sua base permanente para aprovação de programas e projetos de lei, curto-circuitando velhas práticas fisiológicas e danosas; reorganizar rapidamente o orçamento público, indicando como será eliminado o teto do gasto e o que significa o “teto de responsabilidade”; encaminhar ao Congresso um projeto de lei de reforma tributária radical e progressiva, que permita ampliar significativamente os recursos fiscais para financiar uma nova estratégia de desenvolvimento e, sobretudo, para montar um Estado social capaz de prover o que é essencial para o bem-estar da população, reduzindo a desigualdade nas suas diversas formas; colocar em debate a revisão das reformas trabalhistas e previdenciária, de modo a fortalecer os trabalhadores e as classes populares hoje desfavorecidos pela prevalência de uma altíssima informalidade que inviabiliza o direito a uma aposentadoria futura, proteção indispensável à inatividade.

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Roberto Dutra Torres Junior é doutor em Sociologia pela Universidade Humboldt de Berlim e mestre em Políticas Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF. É professor da UENF e ex-diretor do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – Ipea. É autor de, entre outros, Funktionale Differenzierung, soziale Ungleichheit und Exklusion (Konstanz: UVK Verlag, 2013).

IHU – Que análise faz do processo eleitoral?

Roberto Dutra Torres Junior – Foi o processo eleitoral mais desafiador da nova República. Bolsonaro ultrapassou sem pudor a fronteira da licitude para tentar se reeleger. No dia da eleição, tivemos o uso absurdo da polícia rodoviária federal como polícia política para forçar a abstenção de eleitores lulistas. Vigorou a polarização política lulismo x bolsonarismo, que representa uma reconfiguração da estrutura de disputa política no país. Através de sua viabilidade eleitoral ímpar, Lula conseguiu reunir em torno de sua candidatura praticamente todos seus adversários no período da polarização PT x PSDB. Agora estamos vivendo uma nova polarização, cujos contornos ainda não estão definidos. Considerando que o adversário usou todas as armas legítimas e ilegítimas que o cargo de presidente lhe proporciona, a vitória de Lula foi muito grandiosa. O recurso à guerra cultural moralista, que define o bolsonarismo, não foi suficiente desta vez como foi em 2018. A pauta econômica e social voltou a ter centralidade. Do ponto de vista de sua relação com o governo, o processo eleitoral não foi construtivo, pois questões fundamentais como a reprimarização da economia e as desigualdades sociais não foram discutidas. Faltou, mais uma vez, a fixação de uma linha programática clara por parte da candidatura de Lula. Isso não se poderia esperar de Bolsonaro, para quem o programa é a própria guerra cultural com seu caráter destrutivo.

IHU – Quais os desafios mais urgentes do futuro governo?

Roberto Dutra Torres Junior – Os desafios mais urgentes são econômicos e sociais: apresentar um novo modelo de desenvolvimento econômico capaz de gerar inclusão imediata e reconstruir as políticas de combate à fome e à miséria. Enfrentar estes dois desafios é o primeiro passo na difícil caminhada para desconstruir a tendência de identidade entre polarização política e polarização social. Mas é preciso conectar o urgente com o importante, sob pena de o governo fracassar em sua tarefa maior, que é reconciliar o país em torno da imaginação e construção do futuro. O uso do poder estatal precisa ser feito com estratégias de curto, médio e longo prazo, recolocando, com ênfase crescente, a economia e a política social no centro da atividade política. O problema não é a polarização em si, mas a polarização moralista que contamina todas as relações e esferas sociais. O desafio é reconstruir uma polarização política que não resulte em uma polarização social açambarcante e simplista, baseada unicamente no sentimento do nós contra eles.

A ordem constitucional e institucional da Nova República foi arruinada não apenas pela ação de seus adversários. Sua derrocada também é o efeito de sua incapacidade intrínseca de ofertar ao país duas coisas essenciais sem as quais uma constituição cidadã não pode se efetivar:

1) inovações institucionais capazes de produzir direitos sociais e serviços públicos em quantidade e qualidade suficientes para garantir a cidadania;

2) e um modelo de desenvolvimento capaz de elevar a complexidade e a produtividade do sistema econômico e, assim, assegurar inclusão econômica qualificada e fonte de financiamento para as políticas sociais. Não é possível garantir política social e dignidade para as maiorias sem inovações institucionais na oferta de serviços públicos e sem um novo modelo econômico que combine elevação da complexidade e da produtividade com a inclusão das maiorias em empregos e oportunidades econômicas de qualidade. Falar em cidadania, sem enfrentar estas duas questões, é faltar com a dignidade intelectual e política.

IHU – Quais os caminhos para se enfrentar esses desafios?

Roberto Dutra Torres Junior – O caminho para isso é deslocar a polarização política das lutas culturais e morais para as lutas em torno da economia política da política social. Para nos reconciliarmos, precisamos reaprender a brigar. Caso opte pelo atalho e evite enfrentar os conflitos e desafios políticos necessários para resolver os problemas econômicos e sociais, o novo governo certamente será um fracasso, preparando o caminho para a volta da extrema-direita ao poder. O atalho leva, desta vez, mais diretamente ao precipício. A falta de compromisso programático de Lula não é um bom sinal, pois indica que o grande líder popular pode novamente escolher este caminho curto e trágico. Mas este mau sinal nunca deve ser tomado como destino e necessidade. O futuro é aberto também porque as pessoas nunca estão prontas, porque novas situações exigem a busca por alternativas e inovações no ser e no agir. Por isso, arrisco uma avaliação antideterminista sobre o futuro governo Lula: ou será muito ruim e trágico, se optar pelo atalho; ou será muito bom e construtivo, se optar pelo caminho radical da reconstrução nacional. O meio-termo se tornou uma opção indisponível.

Reconstrução nacional
A tarefa de reconstrução nacional requer combinar radicalidade no conteúdo com amplitude na forma de agregação de forças políticas. No conteúdo, é urgente reconectar a agenda da política social – inclusão social e redistribuição de renda – com a agenda da mudança da política econômica em torno de um projeto nacional de desenvolvimento centrado na soberania nacional. Na forma, é preciso compreender que uma política de alianças não está em contradição necessária com uma política radical no conteúdo. É possível ser radical no conteúdo e amplo na construção de alianças. A tarefa de reconstrução nacional não é uma tarefa da esquerda, embora possa ter o protagonismo da esquerda ao lado de outras forças. Nesse sentido, a aliança entre Lula e Alckmin, assim como o movimento de aproximação com antigos adversários como FHC, são excelente sinais. Pode ser parte de uma eventual solução para ampliar a força política necessária para reconstruir o país.

A maioria das pessoas de esquerda acredita que fazer alianças em busca do centro político exige borrar ou apagar diferenças e conteúdos programáticos radicais. Acreditam que a moderação programática é o único caminho possível. Precisam se dar conta de que ela é parte do problema. Estão ainda reféns da confusão entre ser radical e ser sectário: partem da premissa de que um programa político radical, ousado, que busque soluções estruturais para problemas estruturais, é sempre sectário, estreito no espectro dos grupos e classes sociais que lhe dão sustentação. Esta confusão pode e deve ser desfeita, pois ser radical na dimensão programática não significa necessariamente sectarismo na relação com as forças políticas. Programas rebeldes de desenvolvimento nacional foram sempre radicais e contaram com ampla base de apoio envolvendo setores populares e médios. Quando não contaram com o apoio de setores burgueses, o apoio da classe média e dos setores populares garantiu, muitas vezes, as condições para a coerção política da minoria dissidente e entreguista. Não há lei social ou política que faça da classe média a linha de frente da burguesia antinacional e antipopular. É preciso recuperar as nuances e contradições da história política e a contingência das estruturas da ação social.

Para Lula, o caminho radical da reconstrução nacional impõe, pelo menos, dois desafios específicos que implicam romper com o padrão dos governos lulistas anteriores:

1) desfazer a confusão entre política de alianças e rendição programática que serve de desculpa para governos medíocres;
2) buscar novos horizontes intelectuais para superar o deserto de ideias do PT.

A confusão entre amplitude de alianças e rendição programática está sintetizada na doutrina estruturalista pseudossociológica da “correlação de forças”: a ideia de que as classes, os grupos e demais forças sociais possuem interesses claramente definidos e fixados de antemão, antes da política. Daí se supõe que a natureza transformadora dos interesses é sempre inversamente proporcional à quantidade de atores que compõem uma aliança política, como se a política apenas reagisse passivamente à “correlação de forças” entre estes interesses. Esta suposição não considera que a política transformadora real sempre promoveu sínteses de interesses diversos em um interesse maior: a política é ativa e formadora em relação aos interesses, pois estes nunca estão plenamente definidos e fixados pelos atores, que podem aprender a defender novos interesses a partir da política. Não se trata de imaginar uma situação de consenso, mas de buscar uma síntese de interesses entre classes médias e populares para antagonizar com as oligarquias rentistas que saqueiam o país. É aliança para o conflito.

No entanto, para superar esta falsa dicotomia entre ousadia programática e política de alianças, assim como outros determinismos, o novo governo precisa se libertar de certas amarras intelectuais entranhadas desde sempre no PT e na esquerda. No geral, essas amarras se caracterizam pela combinação de abstrações sem detalhamento contextual em termos de diagnóstico e programa, como a ideia vaga de socialismo, com um profundo desprezo pela história nacional e pelas conquistas brasileiras antes do PT chegar ao poder. Para a quase totalidade dos intelectuais petistas, nada no Brasil prestou antes de chegada de Lula ao poder em 2002. O nacional-desenvolvimentismo e a pujança nacional em quase todas as esferas da vida social, que transformou o Brasil entre os anos 1930 e 1980, são simplesmente esquecidos e apagados, para usar o jargão cultivado pela esquerda atual.

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André Luiz Olivier da Silva é graduado em Direito, mestre e doutor em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, onde leciona nos cursos de graduação em Direito e Relações Internacionais e no Programa de Pós-Graduação em Direito.

IHU – Que análise faz do processo eleitoral?

André Luiz Olivier da Silva – As eleições de 2022 constituíram uma das decisões políticas mais importantes que os brasileiros tomaram nas últimas décadas, talvez a decisão mais importante desde a redemocratização em 1988 e, talvez, a mais importante das próximas décadas. O processo eleitoral esteve sempre muito polarizado e pautado por mentiras, fake news e discursos de ódio. Praticamente, não se discutiram propostas e nenhum projeto mais concreto para o país.

Bolsonaro valeu-se da máquina estatal e realizou uma campanha muito cara e, nem assim, conseguiu vencer as eleições. Para evitar discutir falhas do seu governo, o candidato criou cortinas de fumaça ao trazer a pauta dos costumes. Ele investiu no ataque ao candidato Lula e conseguiu pautar a maior parte dos temas que foram trazidos para o debate. No entanto, essa atitude mais agressiva lhe rendeu uma alta taxa de rejeição que não permitiu uma reversão da derrota já sofrida no primeiro turno. Aliás, ambos os candidatos tiveram alta rejeição, mas a de Bolsonaro foi um pouco maior e mais consolidada ao longo de todo pleito.

A campanha do Lula, por sua vez, teve muita dificuldade em propor pautas e se ateve a responder as questões que eram sendo trazidas pelo candidato adversário. Lula destacou muito os feitos do passado. No primeiro turno, Lula focou na polarização com Bolsonaro, o que, de certo modo, contribuiu para que Bolsonaro pudesse pautar o debate. Já no segundo turno, além de responder aos temas pautados pelo adversário, entrou, em alguns momentos, na pauta dos costumes e abdicou de discutir propostas construtivas para o Brasil.

Reações e respostas e a perseverança do bolsonarismo
Da pauta proposta por Bolsonaro, Lula conseguiu, em termos, amenizar o discurso anticorrupção quando trazia a compra de imóveis pela família Bolsonaro e a existência do orçamento secreto. Com efeito, o discurso anticorrupção vem, nos últimos anos, sendo substituído por um discurso armamentista focado em questões relacionadas à pauta dos costumes, como o aborto, a sexualidade, a crença em Deus e a religiosidade das pessoas – e isso foi explorado ao longo do processo eleitoral.

Com a decisão das urnas, tivemos uma vitória apertada de Lula, que, de todo modo, conseguiu vencer um candidato que teve a seu favor o poderio econômico de quem governa e possui a estrutura do governo federal para auxiliar na campanha por meio de uma série de auxílios financeiros. Bolsonaro perdeu as eleições, mas o bolsonarismo seguirá a partir dos deputados e senadores conservadores que foram eleitos no primeiro turno, bem como a partir do governo de Tarcísio em São Paulo.

IHU – Quais os desafios mais urgentes deste futuro governo?

André Luiz Olivier da Silva – O país seguirá muito dividido e polarizado, de modo que o presidente eleito terá um papel decisivo para unificar e pacificar o país. Isso não será nada fácil, visto que o presidente eleito carrega consigo uma rejeição que atinge quase metade do eleitorado. Essa rejeição tende a seguir alta nos próximos meses e o novo governo terá que ser amplo na sua composição no Congresso Nacional e deverá contemplar diversos segmentos da sociedade – incluindo setores conservadores que sempre apoiaram o seu adversário nas eleições.

Nesse sentido, um dos desafios será a governabilidade, visto que o legislativo eleito nestas eleições é, em sua maioria, oposição ao candidato Lula. O Brasil seguirá com o desafio de manter a estabilidade institucional e o respeito às regras do jogo – e esse desafio não é propriamente do Executivo, mas demandará, por certo, o Legislativo e, principalmente, o Judiciário, que será provocado a dar respostas aos ataques que o Estado democrático de direito vem sofrendo e poderá vir a sofrer até a posse do presidente eleito, e, também, durante os primeiros tempos do novo governo.

Em paralelo à disputa política, que seguirá muito intensa, o governo Lula terá que realizar fortes ações na área econômica. Aliás, esse debate sobre os verdadeiros problemas do Brasil não foi feito durante as eleições. Lula herda um país desorganizado economicamente e terá que enfrentar, já a partir de janeiro, problemas como inflação e alta dos preços dos produtos, desemprego e informalidade de empregos precarizados que não fortalecem a renda dos cidadãos. Será preciso gerar renda aos mais necessitados, com a implementação de programas sociais. Esses problemas terão que ser enfrentados com um orçamento já limitado e comprometido pela desorganização do país e, ainda, pela pressão em se manter o teto de gastos.

Dito isso, e se não precisássemos debater assuntos secundários ao desenvolvimento do país, o desafio mais urgente é, sem dúvida, o combate imediato à fome e à miséria de milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade.

IHU – Quais são os caminhos para enfrentar esses desafios?

André Luiz Olivier da Silva – A vitória de Lula no segundo turno das eleições de 2022 é um primeiro passo para a unificação do país. O segundo passo será garantir a posse do presidente eleito no início do ano que vem. Eventos como a resistência à prisão de Roberto Jefferson, as ameaças de Carla Zambelli e as barreiras da PRF para impedir o voto de cidadãos nordestinos, mostram que o candidato derrotado nas urnas e seus apoiadores possam vir a confrontar o resultado das urnas.

Até a posse, Lula terá que montar o seu governo e não poderá perder tempo se quiser unir os brasileiros em torno de consensos mais urgentes. Os seis primeiros meses serão muito importantes, nos quais deverá compor com o maior número de partidos possível.

Na economia, o novo presidente terá que focar no investimento público, por meio de políticas públicas e programas sociais, a fim de gerar crescimento econômico e social. A pauta dos direitos humanos deveria ser retomada como um ponto inegociável do polo democrático que se constituiu em torno de Lula. No plano das relações internacionais, o Brasil deveria se apresentar como um mediador da paz em zonas de conflito, como na Ucrânia, e propor ao mundo uma economia sustentável para o meio ambiente.

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Moysés Pinto Neto é doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grade do Sul – PUCRS, tendo realizado períodos de estudos no Centre for Research in Modern European Philosophy, na Inglaterra. É mestre em Ciências Criminais e Especialista em Ciências Penais pela PUCRS e possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. É professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Luterana do Brasil – Ulbra, além de atuar como professor nos cursos de graduação de Direito na Ulbra e de diversas especializações em direitos humanos e violência.

IHU – Que análise faz do processo eleitoral?

Moysés Pinto Neto – Foi a maior vitória eleitoral dos tempos recentes no Brasil. Lula e a mobilização da Frente Ampla derrotaram as duas máquinas mais poderosas em atividade: a estrutura transnacional da extrema-direita e o uso ilícito do Estado brasileiro como instrumento eleitoral. Graças à memória positiva dos seus governos e seu carisma pessoal, Lula conseguiu superar ambas as máquinas por uma diferença pequena, mas relevante porque o jogo era quase impossível.

A eleição deixou patente as grandes diferenças entre os brasileiros, a adesão massiva ao fascismo, o aparelhamento institucional e a ausência de visão de Estado de diversos segmentos, a exploração do trabalhador forçado a votar no candidato do patrão, a espoliação e o extermínio dos indígenas, o uso de armas como estratégia miliciana, o racismo supremacista, o fundamentalismo religioso teocrático, entre outras coisas. Nunca foi tão fácil perceber o que está em jogo. É um momento em que os lados estão claramente marcados.

IHU – Quais os desafios mais urgentes deste futuro governo?

Moysés Pinto Neto – Reconstruir o Estado brasileiro. Tornar o Brasil algo mais próximo de uma República novamente. Será um governo de reconstrução e, por isso mesmo, sua tarefa é dura, mas viável. A Frente Ampla deixou claro que muita gente percebeu a devastação sem precedentes e está disposta a colaborar.

IHU – Quais os caminhos para se enfrentar esses desafios?

Moysés Pinto Neto – Fortalecer as instituições e, sobretudo, organizar-se politicamente. Ficou claro que só com trabalho coletivo estrategicamente orientado é possível resistir à máquina de ruído da extrema-direita. Nossa estratégia, que envolveu atores distintos como Simone Tebet e Marina Silva, de um lado, e André Janones, de outro, foi o que conseguiu segurar a pressão que a extrema-direita coloca no cenário, usando e abusando do pânico moral como motor para vencer eleições.

Mais uma vez, as pesquisas não conseguiram capturar a intensidade da sua mobilização, e de agora em diante temos que saber que qualquer diferença nas estatísticas sempre tem que levar em consideração uma margem de crescimento final entre eles. Ou os institutos precisam repensar suas metodologias.

Defendo também que não seja feita conciliação com o bolsonarismo raiz. Eles precisam ser responsabilizados, a começar pelos crimes da pandemia. Gostaria de ver uma Comissão da Verdade da pandemia. E, com o levantamento dos sigilos e a própria reconstrução das instituições, muita coisa deve vir à tona. Os próximos meses serão de muitas notícias sobre corrupção. É preciso destruir moralmente o bolsonarismo, usando simplesmente a força da lei que eles acreditavam imunes.

Foto: Fernando Frazão | Agência Brasil

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