Sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos deve ser cumprida

Por Afonso Grisi Neto, em ConJur

Nos últimos meses, a sociedade brasileira vem presenciando um conjunto de transformações significativas no que tange ao sistema jurídico do país e que, por implicar uma reformulação nos padrões clássicos de interpretação, por parte de alguns membros do Poder Judiciário, dos princípios e normas constitucionais e infraconstitucionais, leva-nos forçosamente a uma reflexão acerca da necessidade de se retomar a discussão em torno do tema candente da proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana, notadamente em seu aspecto transnacional. Nesse sentido, o Brasil, honrando sua larga tradição na defesa e proteção dos direitos humanos, é signatário de uma pluralidade de tratados nessa matéria, quer de natureza universal, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, quer de natureza regional, v. g., a Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 (Pacto de San José da Costa Rica). E nesse vasto campo dos direitos fundamentais da pessoa humana, considerando os fatos que vêm sendo vivenciados pela sociedade brasileira, parece oportuno dedicar-se uma atenção especial à atuação jurisdicional da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

É preciso deixar claro, desde logo, que não se pretende neste comentário enveredar para uma análise de aspectos políticos e ideológicos associados à temática dos direitos humanos e que, não raro, vem suscitar posições divergentes e controvérsias intermináveis. O que se propõe efetivamente neste espaço é considerar, exclusivamente, do ponto de vista jurídico, a obrigatoriedade e a executoriedade das sentenças proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no ordenamento jurídico brasileiro. Embora pareça superada, na atualidade, a discussão em torno do reconhecimento do caráter supranacional da Corte ora em exame, ainda é possível constatar-se alguns julgados do Supremo Tribunal Federal conferindo reduzida importância às sentenças emanadas daquele órgão judiciário internacional quando presentes situações flagrantes de violação dos direitos fundamentais da pessoa humana praticadas pelo Estado brasileiro, e aqui se pode citar como exemplo eloquente o posicionamento da Suprema Corte brasileira em relação à sentença proferida pela Corte Interamericana, em 24/11/2010, no Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil. (Disponível aqui) Guilherme Gomes Lund foi um estudante e guerrilheiro brasileiro, militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), tendo participado da luta armada contra a ditadura militar, sendo um dos integrantes da Guerrilha do Araguaia, que se desenvolveu entre o final da década de 1960 e início da década de 1970.

Submetido o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos, esta proferiu sentença pela qual condenou o Estado brasileiro pela prática de tortura e pelo desaparecimento forçado de integrantes da Guerrilha do Araguaia durante as operações militares ocorridas na década de 1970, determinando a adoção, pelo Estado, de medidas necessárias para tipificar o delito de desaparecimento forçado de pessoas em conformidade com os parâmetros interamericanos. Decidiu, também, aquele tribunal que as disposições da Lei de Anistia brasileira, constituindo empecilho à investigação e sanção de graves violações de direitos humanos, eram incompatíveis com as disposições da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica).

Tomando-se por base essa decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Ordem dos Advogados do Brasil intentou, junto ao Supremo Tribunal Federal, a ADPF 153/DF, requerendo uma interpretação da Lei nº 6.683, de 1979 (Lei de Anistia) conforme a Constituição Federal, com o objetivo de declarar que a anistia concedida por essa lei aos crimes políticos e conexos, não se estendia aos crimes comuns cometidos pelos agentes da repressão contra os opositores políticos durante a ditadura militar, além de sustentar o dever do Estado brasileiro de investigar, processar e punir os responsáveis pelas graves violações de direitos humanos. Em 29/04/2010, o STF julgou improcedente a ação (por 7 votos a 2), reconhecendo a constitucionalidade da Lei de Anistia, sendo de se destacar o entendimento do relator, ministro Eros Grau, considerando constitucional a interpretação da Lei de Anistia, sob o fundamento de que a referida lei implicou um perdão amplo, geral e irrestrito, estendendo-se aos agentes políticos que praticaram crimes comuns contra os opositores políticos durante o regime militar (disponível aqui) No mesmo julgamento, o então ministro Marco Aurélio Mello afirmou que a aludida sentença da CIDH possui eficácia apenas política, não tendo concretude como título judicial, acrescentando, ainda, que o governo brasileiro não atuou errado ao não punir torturadores porque a Lei de Anistia foi bilateral e implicou o perdão em sentido maior (disponível aqui)

Em que pese o entendimento exposto pela maioria dos eminentes ministros da Suprema Corte no acórdão mencionado, fato é que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) é um tribunal internacional instituído por um tratado internacional, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 (Pacto de San José da Costa Rica), ratificado pelos Estados americanos, dentre eles o Brasil, de sorte que as sentenças promanadas daquele tribunal são definitivas e inapeláveis, desde que os respectivos Estados-partes declarem que reconhecem como obrigatória de pleno direito a competência da Corte Interamericana e que tenham interpostos e esgotados os recursos previstos na jurisdição interna desses Estados, conforme dispõem os artigos 61.2, 62.1 e 62.3 do Pacto de San José da Costa Rica. Note-se, a propósito, que a Convenção estabelece, no artigo 46, 2, “a”, “b” e “c”, três exceções à regra do esgotamento prévio dos recursos da jurisdição interna dos Estados, quais sejam: a) não existir, na legislação interna do Estado, o devido processo legal para a proteção do direito que se alegue violado; b) não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna ou houver sido ele impedido de esgotá-los; c) houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos.

Quando se trata de considerar a obrigatoriedade das sentenças da CIDH no ordenamento jurídico brasileiro, é frequente associar-se eventuais violações de direitos humanos fundamentais a atos praticados exclusivamente pelo Poder Executivo e, nesse particular, a Corte Interamericana reconheceu por diversas vezes e coincidentemente situações de vilipêndio aos direitos humanos praticadas pelo Poder Executivo, de que são exemplos o episódio da Guerrilha do Araguaia acima citado e outros casos que se verificaram entre os anos de 1999 e 2017. Contudo, no momento em que há uma decisão condenatória imposta ao Estado brasileiro, essa decisão dirige-se ao Estado como um todo, não havendo que se falar em destinação exclusiva a um dos Poderes da República, visto que os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário exercem em conjunto a soberania do Estado brasileiro. Decorre daí que é perfeitamente possível que haja um ato de violação dos direitos humanos proveniente também do Poder Judiciário, seja quando este não dá cumprimento a uma sentença internacional que condenou o país, seja quando o mesmo Poder, por meio de decisão judicial, passa a afrontar diretamente aqueles direitos, ensejando, pois, a responsabilidade internacional do Estado por descumprimento de obrigação internacional.

Portanto, parece inquestionável que o Estado, no momento em que ratifica um tratado que verse matéria de direitos humanos fundamentais e promove sua incorporação ao seu ordenamento jurídico interno, passa a vincular-se juridicamente às normas desse tratado, assumindo direitos e obrigações perante seus pares na esfera internacional. Convém lembrar que o artigo 5º, § 3º, da Constituição Federal dispõe que: § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. Destarte, o conjunto de direitos assegurador da dignidade do indivíduo passou a se revestir, nos dias hodiernos, de garantias internacionais institucionalizadas, daí a importância das sentenças proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, objeto de análise neste comentário. Contudo, cabe, neste passo, uma ponderação de relevo no tocante à força executória dessas sentenças no sistema jurídico brasileiro. Se, por um lado, o reconhecimento da obrigatoriedade e da executoriedade das decisões provenientes da CIDH é fato inconteste no que diz respeito a eventuais indenizações compensatórias às vítimas de violações de direitos humanos, tendo o Estado brasileiro cumprido diversas decisões nesse sentido consoante prescreve o artigo 69, 2, do Pacto de San José, de outra parte, ainda persiste alguma divergência no que se refere ao reconhecimento da força executória de tais decisões no sistema jurídico brasileiro quanto a seus efeitos extrapecuniários, isto ocorrendo quando os comandos da sentença internacional determinam, objetivamente, os deveres de o Estado brasileiro investigar, processar e punir os agentes violadores dos direitos humanos.

Não obstante o artigo 62, 1, do Pacto de San José da Costa Rica estabeleça que os Estados-partes na Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte Interamericana, atribuindo a esta, inclusive, efeito executório, uma grande parcela de Estados, como o Brasil, sustenta que não havendo disposição expressa a esse respeito na Convenção, competiria aos ordenamentos jurídicos dos Estados respectivos elaborar legislação específica destinada a conferir efeito executório às sentenças proferidas por aquele tribunal. Nesse sentido, há que se louvar o Projeto de Lei do Senado brasileiro nº 220, de 2016, que dispõe sobre o cumprimento das decisões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que tramita na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. De todo modo, não se há de conceber, em sã consciência, que diante do franco e indiscutível avanço de uma institucionalização internacional no que respeita aos direitos fundamentais da pessoa humana, embasado no princípio transnacional pro homine, alguns agentes políticos brasileiros continuem a fundar suas decisões na soberania absoluta do Estado e, com isso, criando toda sorte de óbices à implementação das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos em nosso país.

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