Fascismo: quais os próximos passos para superá-lo

O Trabalho é a chave para varrer o bolsonarismo, que congelou o mínimo e só gerou empregos informais e precários. Será preciso mover Estado na direção dos trabalhadores, resgatar o bem-estar social e ousar uma reforma tributária

Por André Calixtre, em Outras Palavras

Em abril de 2016, nas águas escaldantes do golpe iminente contra a presidenta Dilma, escrevi um artigo curto para o saudoso portal da Carta Maior, intitulado “O Fascismo do Século XXI e o Papel da Classe Média”. A ideia central era mostrar como a ruptura do poder, com o impeachment de Dilma, trazia consigo uma mudança de projeto de nação, de um Brasil inclusivo que permitia a ascensão de parcelas crescentes da classe trabalhadora a padrões mínimos de vida da classe média tradicional para um Brasil excludente, em que os detentores do privilégio reagem e formam coalizões de poder para barrar e retroceder a ascensão dos pobres. Utilizei a expressão “Fascismo do Século XXI” para definir esse movimento porque estava claro que o projeto de retrocesso dos pobres não era apenas uma questionável e mal formulada “Ponte para o Futuro”, e sim um projeto ultraliberal empacotado numa linguagem totalizante e moralizadora, do “combate à corrupção”, e se valendo de lideranças desconhecidas e até aquele momento desprezadas pelas elites intelectuais e culturais como forma de ascensão política, os “heróis-ninguém”, incrustados nas instituições do Estado.

Passaram-se seis anos, e os heróis-ninguém viraram ministros e seu maior representante, depois de 28 anos de seguidos mandatos parlamentares no baixo-clero da Câmara, liderou o país ao abismo de mais de 700 mil mortos por erros de gestão e ação do Estado numa pandemia. Há, além disso, mais de 33 milhões de brasileiros com percepção de fome em suas casas, o retorno da inflação a dois dígitos, os sistemas públicos de saúde e educação em crise de financiamento e o salário mínimo arrochado pela imposição de um teto fiscal de gastos draconiano e disfuncional, o crescimento estrutural da população desempregada e da informalidade dos empregados, o aumento da desigualdade pessoal da renda e a queda da participação dos salários no PIB, retraindo o mercado interno, a destruição dos órgãos republicanos e penetração de fundamentalismos religiosos na política pública mais básica, como proteção a vítimas de estupro, a destruição da Amazônia e de boa parte dos mecanismos regulatórios de proteção ambiental, a perda do monopólio legítimo da violência pelo Estado por meio do armamento desordenado e criminoso da população civil, o isolamento internacional do Brasil e sua incapacidade de gerir uma política externa soberana, o uso do aparelho de Estado para questionar as eleições democráticas e coibir os eleitores de votarem, o uso de símbolos nazifascistas na comunicação do Estado, como o lema “Pátria, Família e Liberdade”, reproduções de discursos nazistas em rede nacional, saudações nazistas por civis em manifestações – seis anos…, e parece que o projeto do Fascismo do Século XXI foi um inegável sucesso no Brasil.

Adolf Hitler sorria no inferno; mas se esqueceram que Lula estava vivo.

A altíssimo custo pessoal de 580 dias de prisão, a persistência de Lula em submeter-se ao sistema que golpeava a democracia criou uma anomalia insolúvel, cujo resultado surpreendente foi a produção de uma vacina contra o mal que atacava o Brasil de morte por infecção generalizada. À medida que o fascismo se aprofundava no Estado, as instituições voltaram-se ao poder pessoal do presidente Lula como saída para a degeneração do próprio poder institucional. Uma pena que Max Weber não está vivo para observar e classificar esse tipo de poder e seu movimento. Em uma vitória contra o Estado, contra a mobilização do orçamento público e das forças de segurança para fins descaradamente eleitoreiros, o amplo campo democrático erguido por Lula encontra-se agora diante do horizonte de devastação provocado pelo projeto fascista.

Para além da discussão de costumes e da desorganização institucional do governo Bolsonaro, as principais características desse período fantasmagórico da civilização brasileira estão nas transformações no mundo do trabalho, promovidas pelo ultraliberalismo imposto desde o golpe de 2016. E isso fica evidente quando comparamos o período atual com o passado próximo dos governos petistas. Lula e Dilma promoveram o maior aumento real do salário mínimo desde o governo João Goulart. Mais de 80% de valorização, sendo 56,2% somente nos governos Lula. O salário mínimo afeta diretamente um contingente de 50 milhões de trabalhadores e aposentados, no entanto, este poderoso mecanismo de redistribuição de renda foi literalmente arrochado por Bolsonaro, ainda que longe da intensidade do ajuste que foi imposto no passado pelo plano de estabilização que se seguiu ao Golpe de 1964.

Tabela 1 – Evolução do Salário Mínimo Real (R$ de set/2022)

R$/set 2022 (INPC) Salário Mínimo Real primeiro ano Mandato Salário Mínimo Real último ano mandato Variação Real
FHC R$ 515 R$ 668 29,8%
Lula R$ 673 R$ 1.051 56,2%
Dilma R$ 1.052 R$ 1.229 16,9%
Temer R$ 1.229 R$ 1.224 -0,4%
Bolsonaro R$ 1.234 R$ 1.218 -1,4%
Fonte: Ipeadata

Tanto Lula quanto Bolsonaro enfrentaram condições semelhantes de desemprego provocadas por crises anteriores a seus mandatos. Entretanto, ao observar a população absoluta desempregada, Bolsonaro assumiu com um contingente muito maior que Lula, vindo da crise do governo Temer. Durante a pandemia, a população de desempregados no país chegou a 14 milhões em 2020, enquanto essa população transitava entre 6 e 7 milhões no período de Lula. Além disso, Lula reduziu mais a taxa de desemprego que Bolsonaro, -22% contra -15,6%. A qualidade do emprego nos governos Lula melhorou, puxada pelos investimentos em infraestrutura, construção civil e serviços para o mercado interno, em crescimento. O padrão de redução de desemprego de Bolsonaro é de empregos de pior qualidade.

Tabela 2 – Desemprego

Taxa Desemprego primeiro ano Mandato Taxa Desemprego último ano mandato Variação Pop. Desempregada primeiro ano mandato Pop. Desempregada Último ano de mandato Variação
Lula 12,3% 5,9% -51,9% 8.950.356 6.977.318 -22,0%
Bolsonaro 12,1% 10,3% -14,5% 12.775.833 10.778.200 -15,6%
Fonte: IBGE

Lula reduziu sensivelmente a taxa de informalidade no mercado de trabalho brasileiro de 46% para 40%, enquanto Bolsonaro aumentou a informalidade – que já havia crescido fortemente após a “reforma” Trabalhista do governo Temer – de 48% para 49%. Mais trabalhadores informais significa mais pessoas desprotegidas e sem dignidade no trabalho. A redução da informalidade no governo Lula é explicada principalmente pelos novos empregos criados nos setores da indústria, infraestrutura e construção civil. Os pesados investimentos da época impulsionaram empregos de melhor qualidade.

Tabela 5 – Informalidade do Trabalho

Informalidade primeiro ano Mandato Informalidade último ano mandato Variação
Lula 46,0% 39,7% -13,7%
Bolsonaro 47,6% 48,5% 1,9%
Fonte: IBGE – PNAD e PNAD-contínua

O aumento do salário mínimo aliado à redução do desemprego e da informalidade criaram condições para a redução da desigualdade de renda no Brasil durante os governos Lula. O Índice de Gini caiu de 58,3 para 53,1, bastante expressivo. A desigualdade voltou a crescer com o governo Temer. Como Bolsonaro congelou o salário mínimo e aumentou a informalidade do emprego, os salários no seu governo não cresceram, e isso fez que a desigualdade também ficasse congelada no período 2019-2022. Detalhe que houve uma queda episódica da desigualdade em 2020, explicada exclusivamente pelo Auxílio Emergencial de 600/1200 reais, proposto pela oposição no Congresso.

Tabela 6 – Desigualdade (Índice de Gini) – 0 a 100 (mais desigual quando próximo de 100)

Índice de Gini Desigualdade primeiro ano Mandato Desigualdade último ano mandato Variação
Lula 58,3 53,1 -8,9%
Bolsonaro 54,4 54,4 0,0%
Fonte: IBGE – PNAD anual e PNAD Contínua

Essa vitória improvável de Lula contra o Estado que agia para manter um projeto de poder que deveria ter se estendido por 20 anos, assim como foi em 1964, reabriu a possibilidade de corrigir os rumos do próprio Estado antes da completa execução de seus objetivos irracionais. É o típico caso de quando a sociedade reage contra o seu Estado que opera para destruí-la e transformá-la. Porém, a resistência, ao invés de conservadora, partiu dos setores da sociedade que estavam em ascensão durante o último modelo de desenvolvimento de Lula e agora viam-se diante do abismo do retrocesso promovido por Bolsonaro: das mulheres, dos pobres, dos negros, dos indígenas e dos nordestinos. Em essência, o resultado do segundo turno das eleições em favor de Lula foi um caso de desobediência civil – esta sim, legítima – contra um Estado desagregador e excludente imposto pelo golpe de 2016 e que seria levado à máxima potência caso Bolsonaro se reelegesse. E o atual Estado degenerativo, vertiginoso, e de inspiração fascista tropical, operava abertamente para a criação de grandes contingentes populacionais de apoiadores, especialmente entre os trabalhadores desestruturados cujas ocupações são de nova natureza, criadas pelas transformações tecnológicas recentes do capitalismo global e que tomaram forma agressiva nos mercados periféricos desregulados. Para ganharmos a guerra contra o fascismo, temos de agir diretamente na raiz desse problema ocupacional e ao mesmo tempo reconduzir o Estado nacional para o campo da social-democracia estabelecido pela Constituição de 1988.

Os primeiros passos já foram dados. A prioridade do presidente eleito Lula ao aumento real do salário mínimo e à garantia do valor de 600 reais para o Auxílio Brasil já em 2023 sinaliza para o conjunto da economia que o conflito distributivo vai de novo se mover em direção ao Trabalho. No entanto, a posição do Capital é de força, não lhe interessa perder espaço na distribuição da renda nacional – mesmo que esse espaço tenha sido crescente nos últimos seis anos – e este possui controle sobre a política monetária e dispõe de forte restrição do espaço fiscal para qualquer mudança de regime em prol de ganhos reais do trabalho.

Mais do que simplesmente promover, devemos sustentar o crescimento real da renda do trabalho, com um modelo de desenvolvimento adequado ao impulso da produtividade e com instrumentos eficazes de redistribuição dos frutos desse progresso técnico à maioria da população, que são basicamente três: o próprio mercado de trabalho; as políticas sociais; e o sistema tributário. O modelo de desenvolvimento de Lula em seus governos anteriores utilizou muito bem os primeiros dois instrumentos, mas nesta próxima rodada deverá também se valer da reforma tributária para aumentar a capacidade distributiva do crescimento.

Uma explicação simplificada sobre como os três instrumentos atuam na redução da desigualdade: (i) o mercado de trabalho compreende a maioria das pessoas na sociedade, que vive de salários e não possui capital, e a melhoria real dos salários diminui a desigualdade pessoal da renda, influenciada pelo taxa de participação da população em idade ativa no mercado, a taxa de desemprego, a qualidade do emprego e pela política de valorização do salário mínimo; (ii) as políticas sociais possuem duplo caráter de impulsionarem o crescimento econômico via multiplicador keynesiano (cada real gasto em escolas gera mais de um real na economia, por exemplo) e reduzir desigualdade, pois o perfil desse gasto público é progressivo (investir em escolas paga salários de professores e mobiliza estruturas produtivas da base da sociedade); e (iii) a estrutura tributária regula a distribuição dos fluxos (renda e consumo) e estoques (patrimônio) antes do mercado, diminuindo a desigualdade de acordo com sua progressividade, ou seja, de acordo com a capacidade de cobrar mais impostos de quem é mais rico e vice-versa.

Observando os números comparativos entre os governos Lula e Bolsonaro, nota-se como o fortalecimento do mundo do trabalho e do Estado de Bem-Estar Social consistem nos segredos do desenvolvimento, ou seja, do crescimento econômico com diminuição das desigualdades. O sentimento de pertencer a grupos em ascensão social é uma força política muito profunda, que pode mover-se na direção dos grupos privilegiados (ampliando a desigualdade) ou dos subalternos (diminuindo a desigualdade). O fascismo brasileiro utilizou-se largamente do primeiro para sua sustentação política, colocando-se como uma “via expressa” de acesso em relação à via liberal; mas precisava demonstrar que era um produto de consumo de massas: nisso o crescimento desordenado do emprego informal, a desregulamentação do mercado de trabalho e o impulso às relações assalariadas disfarçadas de empreendedorismo, especialmente nas novas ocupações por plataformas digitais. Mover o Estado na direção dos trabalhadores vai demandar alto grau de organização e pressão dos grupos sociais relevantes, não se trata de um problema burocrático.

Ademais, o tempo passou desde os últimos governos de Lula e os desafios globais e circunstanciais do Brasil mudaram. O Estado brasileiro – formado por burocracias elitizadas e impermeáveis aos anseios sociais – precisa se transformar por dentro, modificando suas instituições marcadas pela mesma desigualdade que divide o país e permitir-se amplos processos de participação social, inclusive nas áreas decisórias do orçamento federal, não somente na sugestão de políticas públicas. A recuperação dos conselhos da sociedade civil, das mesas de negociação tripartite, das conferências nacionais temáticas, das audiências públicas pode servir de inesgotável fonte de inovação desse novo Estado agregador e criador de oportunidades. A dura batalha das eleições finalmente terminou com a vitória histórica do presidente Lula, que subirá mais uma vez a rampa do Palácio do Planalto como líder popular, eleito pelo voto para seu terceiro mandato. Mas apenas começou a guerra contra a vertigem do fascismo brasileiro do século XXI, a degeneração do Estado de Bem-Estar e as armadilhas colocadas pelos donos do dinheiro às estratégias desenvolvimentistas que virão.

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