Lições da vitória do Brasil. Por Chico Whitaker e Oded Grajew

Que lição, nós do Fórum Social Mundial, já podemos tirar do que ocorreu no Brasil, enquanto o ruído dos enfrentamentos persiste?

Em A Terra é Redonda

É interessante notar que o sentimento de muitas pessoas de fora do Brasil, quando comentam a vitória de Lula nesta eleição de 2022, é o de que tivemos a sorte da bola entrar apesar de passar raspando pela trave. E de fato a diferença no número de votos de cada candidato foi de 1,66% do total, um mínimo necessário para que a bola não se desviasse do fundo do gol. Diferença que foi dramática para quem seguia as apurações e contava com que aumentasse ou se repetisse a diferença de 5,97 % dos votos recebidos por Lula no primeiro turno. Ainda mais com a diminuição dos votos brancos e nulos, assim como das abstenções, que diminuíram de 20,95% para 20,56%.

Pode-se imaginar o choque que o resultado deve ter causado a quem perdeu, vendo minuto a minuto a vitória lhe escapar pelos dedos. E devia estar tão seguro de que ia vencer que até declarou a uma jornalista, imediatamente após o debate final entre os candidatos – que na verdade nem venceu – que quem ganhasse a eleição seria empossado. O provável choque explica também seu silêncio de quase três dias, depois que o Tribunal Superior Eleitoral proclamou os resultados e, portanto, sua derrota.

Suas primeiras palavras diante dela foram pomposas, com ministros e apoiadores em torno dele, mas bem curtas, depois de constatar que ia ficar totalmente isolado. Nem citou o vencedor, cumprimentando-o – como é de praxe nas democracias – passando rapidamente a um de seus ministros a tarefa de anunciar que iria ser iniciado o processo de transição, previsto em lei. E constituem um mistério as ideias que ainda devem estar percorrendo sua cabeça doentia, e as de seu clã familiar e político, depois de ter feito um segundo pronunciamento pedindo aos seus apoiadores, alguns dias depois, que continuassem protestando, mas não bloqueassem as estradas. Mas foi significativo que desta vez apareceu nas telas da televisão sentado sozinho junto a uma mesa simples, de camiseta, sem paletó, e sem assessores nem tradutor de Libras, como sempre fez.

Ao relatarmos há alguns dias, para amigos do Fórum Social Mundial, que não tínhamos ficado somente na dependência de um chute bem direcionado, para uma decisão sobre o futuro de nosso país (com todas as implicações que teria para todo o mundo), eles nos pediram que déssemos mais detalhes, porque quem sabe o que ocorreu pode inspirá-los na busca de caminhos para a construção do outro mundo possível. É o que estamos fazendo com este texto, que esperamos seja completado e corrigido por outros.

Por que a provável certeza de Bolsonaro de que sairia vitorioso? Porque nunca se viu ou mesmo se imaginou possível numa campanha de segundo turno no Brasil (porque configurava um crime eleitoral punível com a invalidação da candidatura) uma tão gigantesca utilização de recursos públicos e da máquina governamental para comprar votos, apoiando-se na miséria criada pela sua própria política econômica, a serviço do grande capital. Infelizmente a compra de votos de eleitores carentes – desta vez feita com auxílios financeiros, créditos e promessas distribuídos à mão cheia – é uma velha tradição no Brasil. É essa tradição que nos faz postergarmos indefinidamente a superação da pobreza e da escandalosa desigualdade de renda que caracteriza nosso país, herdeiras de mais de 300 anos de escravatura, que hoje ainda perdura sob novas formas.

Na verdade, as carências que vitimam nosso povo passaram a ser necessárias, na prática política, para a continuidade no poder de elevado número de políticos profissionais gananciosos e oportunistas. Servem-se dela para serem eleitos e em seguida esquecem completamente suas próprias promessas de trabalhar pela melhoria das condições de vida do povo. Em 1999 uma iniciativa popular de lei – forma de participação social na feitura das leis, criada pela Constituição de 1988 – conseguiu ser aprovada no Congresso, como Lei 9840/99, tornando mais eficaz a maneira de impedir esse crime já anteriormente tipificado na lei eleitoral.

Ela teve repercussões dez anos depois, com a lei também de iniciativa popular conhecida como lei da Ficha Limpa, de 2010, que torna inelegíveis por oito anos quem tenha sido condenado por um colegiado de juízes, em segunda instancia, sem precisar que se espere pelo trânsito em julgado das condenações – um lembrete útil para quem esteja preocupado em impedir que Jair Bolsonaro tente repetir seus crimes apresentando-se como candidato em 2026. Mas apesar da Lei 9840 ter afastado do palco político um grande número de aproveitadores do tipo que visava, não chegou ainda a convencer todos os eleitores de que “voto não tem preço, tem consequências”, como repetiam os que se empenharam nessa iniciativa. E o escândalo impune da campanha de Jair Bolsonaro em 2022 mostra que também ao nível de nossas instituições não se tem plena consciência de que há quase trinta anos esse instrumento foi colocado nas mãos do povo, pelos mais de um milhão de cidadãs e cidadãos que subscreveram o projeto de lei que o criou.

A avalanche de crimes eleitorais de compra de votos no segundo turno certamente determinou que a diferença entre o número de votos entre os dois candidatos diminuísse em vez de aumentar, como era a expectativa geral, a partir dos diferentes desgastes que Jair Bolsonaro ia sofrendo com ações e declarações de seus apoiadores e nos próprios debates entre os candidatos. Além disso, essa compra de votos com recursos públicos foi também reforçada com outros crimes de grande efeito prático, nunca ocorridos tão desavergonhadamente no Brasil, mas cometidos desta vez em grande escala por grande número dos mais diversos tipos de empregadores – públicos ou privados, nas casas ou nas empresas – visando mudar a opção de voto dos que deles dependiam para trabalhar. E sobre esse conjunto de ilegalidades irrompeu ainda, e também, a ameaça da violência sobre os partidários de Lula, apoiada na facilitação do acesso a armas e munições propiciada pelos Poderes Executivo e Legislativo – sabendo-se que o presidente é de longa data ligado à ilegalidade dos grupos armados que impõem sua lei em muitas áreas periféricas das grandes cidades.

O escândalo do uso da máquina, por sua vez, ficou inacreditavelmente evidente no dia mesmo da eleição: a Policia Rodoviária Federal, sob as ordens diretas do Ministro da Justiça, começou a parar nas estradas – com o escandaloso argumento da segurança, porque seus pneus estariam gastos – os ônibus, municipais, estaduais ou particulares que estavam cumprindo determinação do Supremo Tribunal Federal de facilitar ao máximo, gratuitamente, o transporte de eleitores aos seus locais de votação. Note-se que tais “operações” incidiram especialmente no Nordeste do país, mais pobre do que o Sudeste, de onde se esperava que viesse, como veio, a maior parte dos votos para Lula.

O que agora esperamos é que, oportunamente, sejam exemplarmente punidos os autores de todos esses crimes, para que iniciemos, no Brasil, um vigoroso processo de superação da impunidade, que se combina perigosamente com a tendência social a banalizar o inaceitável, para se tornarem as grandes chagas políticas brasileiras. Foram elas que permitiram que permanecesse quatro anos impune na Presidência o criminoso em série que a assumiu em 2018 – e cuja ação durante a pandemia ganhou uma dimensão doentia, ao praticamente se associar à Covid para provocar um número de mortes muito superior ao que a doença sozinha provocaria – assim como o bando de seus comparsas que assumiram postos no governo para conspurcar os instrumentos com que a República contava para assegurar o bom funcionamento da democracia em nosso país.

O resultado desse conjunto de ações foi que o país se dividiu politicamente em dois. Pior ainda, duas metades separadas pela raiva dos que foram vencidos pelos que venceram, porque uma das características essenciais das atuações de Bolsonaro – com o uso permanente da mentira para influir nos mais desavisados – era exatamente a de insuflar a intolerância e até o ódio e – por que não? – o assassinato dos opositores.

Isto explica porque ele consegue hoje mobilizar grande número de seus eleitores a se aglomerar em estradas para impedir a livre circulação de bens e pessoas e a manifestar na frente dos edifícios militares pedindo que as Forças Armadas impeçam a posse de Lula. Para obter isso Jair Bolsonaro conta com o financiamento daquela parte do empresariado mais retrógrado e ganancioso do país, que sempre o apoiou. Felizmente, essa mobilização tende a arrefecer, graças a uma atuação mais decisiva de nosso Judiciário, que poderá chegar até esses empresários, embora ainda possa ganhar a dimensão de atentados violentos, dado o fato de que o número de armas entradas no país e de clubes de atiradores triplicou durante o governo Bolsonaro.

A parte de nossa população que assim se deixa conduzir foi enganada com a imagem diabólica e corrupta colada na esquerda, visando afastar do poder o Partido criado por Lula há mais de vinte anos. E tal fraude foi associada a restos da propaganda anticomunista da Guerra Fria, que continua existindo na cabeça de muita gente, especialmente de classe média. Além disso, Jair Bolsonaro se aliou a um elevado número de gananciosos aproveitadores da religiosidade popular, que criaram grandes currais, espalhados por todo o país, com pessoas domesticadas por um sistemático e persistente doutrinamento e pela disseminação de mentiras pelas redes sociais eletrônicas – essa novidade da comunicação interpessoal que se implantou mundo afora nas últimas décadas.

Mas isto seria matéria para outro texto, oportunamente. Para responder ao pedido dos amigos do Fórum Social Mundial, seria útil lhes dizer como, em nossa opinião, a sociedade brasileira, apesar de todo o acima relatado, foi capaz de dizer, pelo voto, um basta a tudo que estava acontecendo.

Para a outra metade da sociedade foi ficando cada vez mais claro, ao longo de toda a campanha eleitoral, no primeiro e no segundo turno, e para cada vez mais gente, que não poderíamos permitir que nossa democracia desmoronasse inteiramente, assim como nossa relação com a natureza e com o resto do mundo. Era essa a perspectiva de vida e de futuro próximo que todos vislumbrávamos se fosse dada continuidade, por mais quatro anos, ao experimento neofascista que já estávamos vivendo.

A diversidade dos que iam progressivamente tomando posição contra isso era enorme, nos diferentes tipos e áreas de trabalho, funções, cargos, responsabilidades – nos governos estaduais, nas empresas, nas organizações de classe – nas idades, no nível de formação, nas ideologias, religiões, filiações partidárias, formas de expressão artística, meios de comunicação – dos blogs aos grandes jornais e TVs, etc, etc. Levantavam-se e declaravam publicamente – e o divulgavam ao máximo, pela internet e com adesivos na roupa – que iriam votar em Lula.

Juntamo-nos todos assim numa enorme “Frente Ampla”, que no seguindo turno começou a crescer rápida e intensamente, sem precisar se autodenominar dessa forma para existir de fato, nem se perder em disputas internas sobre o poder atribuído a cada um nem quem ou qual grupo a dirigiria. Vivemos o reino do respeito à diversidade e à livre iniciativa com objetivos comuns, do reencontro de muitos que se tinham separado por divergências políticas, de apoio de todos a todos, de ajuda mutua na autonomia de cada grupo social, de liberdade de ação sem competições descabidas frente a um inimigo comum poderosamente destruidor e manipulador de massas – e, já sem maior temor da Covid, pelo abraço nas ruas, que começaram de novo a serem ocupadas por milhares para manifestar.

E uma enorme quantidade de grandes e pequenos atos e iniciativas de todos os tipos foram surgindo em toda parte e em todo Brasil, nas redes sociais e na internet pela eleição de Lula e denunciando os crimes de Bolsonaro, iniciativas faladas, cantadas e dançadas, na base da sociedade e mais amplas, reunindo as pessoas ou falando uma a uma, explodindo de todos os lados e a todos os níveis, sem hierarquias entre elas nem coordenações impostas, negociadas ou votadas, nem unificações ou uniformidades artificiais. Uma verdadeira revolução sem dono, de luta pela Vida com letra maiúscula para vencer o que tinha somente odor de Morte, o próprio Lula assumindo, sem outras pretensões, um papel de grande animador geral de uma construção coletiva muito mais ampla que ele próprio e seu partido, assim como seus aliados que podem ajudar a que se concretize.

Que lição, nós do Fórum Social Mundial, já podemos tirar do que ocorreu no Brasil, enquanto o ruído dos enfrentamentos persiste? Teríamos o direito de ousar dizer que no Brasil ocorreu uma grande vitória política do “espaço aberto”, orientação inicial quanto ao caráter do Fórum Social Mundial, em sua criação em 2001? Afirmando-se como uma forma nova de fazer política, que inclui a alegria quando está acontecendo e mais ainda quando se chega a uma vitória, como com a “festa” como a que estamos hoje fazendo em todo o Brasil, a todos os níveis da sociedade?

E mostrando que um tal “espaço” não é inconsequente, mas produtor de ações concretas ao fomentar iniciativas de diversos sujeitos políticos. Entre as quais as do próprio povo, beneficiário, junto com a natureza, das lutas por mudar o mundo e, mais do que somente beneficiário, sendo de fato quem conduz as lutas decisivas. O conhecido articulista Celso Rocha de Barros foi citado estes dias por outro igualmente conhecido, Mario Sergio Conti, ao dizer que no Brasil “os pobres salvaram a democracia”.

A vitória do povo brasileiro provaria que estruturas verticalizadas podem existir mas não são imprescindíveis nem devem ser únicas (como não o foram no ocorrido no Brasil, em que nem partidos nem sindicatos baixaram orientações ou ficaram à frente das iniciativas), nem devem ocupar todo o espaço político e impedir o surgimento e a multiplicação de estruturas e grupos autônomos, formalizados ou não formalizados, interligados necessariamente na horizontalidade, para o reconhecimento mutuo, o entendimento e a interajuda, que reforça a cada um e a todos, auto organizados a partir das bases da sociedade, sem se desgastarem em competições permanentes de uns com os outros, o que faz as pessoas se separarem num mortal individualismo de auto realização – lógica básica perversa com que o capitalismo alimenta seu dinamismo?

Não é isso que se procura viver e aprender nos “espaços abertos” dos Fóruns Sociais Mundiais, regionais, nacionais, locais ou temáticos? Na verdade é no calor dos enfrentamentos conjuntos por causas essenciais que podemos construir o outro mundo possível, como atualmente – ao nível mundial – “na luta pela causa da democracia contra o fascismo, pela causa ambiental contra a destruição do planeta para a produção e o consumismo desenfreados de bens materiais, pela causa da solidariedade contra as exclusões e a desigualdade social, de gênero e de minorias, pela causa dos povos pobres, oprimidos e originários contra a lógica racial, por uma economia a serviço dos direitos humanos e das necessidades de todos contra a lógica impessoal e desumana da acumulação de dinheiro e das finanças”.

Nossa luta é longa, de muitas gerações. É uma nova cultura em construção. Teremos ainda que viver muitos episódios como o vivido agora pelo Brasil para realmente avançar rumo a outro mundo possível. Quem sabe o Fórum Social Mundial tem ainda um grande papel a cumprir, no apoio, na formação mútua e na aglutinação dos interessados em participar dessa longa revolução.

*Chico Whitaker é arquiteto e ativista social. Foi vereador em São Paulo. Atualmente é consultor da Comissão Brasileira Justiça e Paz.

*Oded Grajew é empresário e presidente emérito do Instituto Ethos.

Foto: Paula Cavalcanti

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