Para o sociólogo, o enfraquecimento do ideário democrático ocorre pelos processos de globalização, pela mudança do papel dos partidos políticos e pela queda do ritmo de crescimento no Ocidente
Por: Patrícia Fachin, em IHU
“A eleição significou, antes de tudo, a escolha, pelo povo brasileiro, da continuidade do processo civilizatório.” É assim que o professor e sociólogo Elimar Pinheiro do Nascimento define o desfecho do pleito no Brasil este ano. Porém, como muitos, acredita que essa vitória apertada de Lula nas urnas, a congregação de forças democráticas nesse processo, é apenas o início de um processo árido.
Na análise que faz em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Elimar Pinheiro do Nascimento aponta que é fundamental buscarmos compreender essa força do bolsonarismo que, dada a expressiva votação, segue forte na sociedade. “A base eleitoral do Bolsonaro não é formada apenas por neofascistas ou grupos evangélicos fortemente conservadores. Esses são os mais visíveis, que não devem formar sem sequer metade de seu eleitorado”, diz. E acrescenta: “é um Frankenstein. Na linguagem antiga de Mao Tse Tung, ‘um gigante com pés de barro’. Por isso mesmo, a força do bolsonarismo pós-eleição vai depender das atitudes do próximo governo, das medidas que forem tomadas, do sucesso de suas políticas públicas, bem como das novas imagens projetadas no campo da política que serão recepcionadas pelos eleitores”.
Olhando para o processo como um todo, o entrevistado indica que as eleições revelam o esfacelamento da democracia. Basta ver as campanhas paupérrimas de propostas, recheadas de acusações que incitam as massas, as quais se movem mais como torcidas do que como cidadãos. “Não é que não existiram propostas. A verdade é que elas foram esmagadas pelas montanhas de ataques pessoais ao vivo ou em vídeos de ambos os lados. Nos debates, se fôssemos fazer um mapa de palavras, com certeza o maior destaque seria mentira/mentiroso”, exemplifica.
O entrevistado compreende que são sintomas que revelam a necessária reinvenção da democracia no século XXI. Para ele, a velha ideia de democracia que carregamos se exauriu por pelo menos três fatores. O primeiro está relacionado com os processos de globalização. “Esse processo tem afastado segmentos sociais significativos do acesso às benesses da globalização, desalojados dos eixos dinâmicos da economia, remetidos ao desemprego e à pobreza. Com isso, eles mudam de postura política, desconfiando das instituições democráticas e das elites no poder”, explica. O segundo fator resulta do fim da sociedade industrial, que muda a natureza dos partidos políticos. “Os partidos políticos de massa foram substituídos por outros tipos de partidos, que não mais exprimem o interesse de um determinado grupo social, mas servem de acesso de grupos difusos a benesses do estado”, observa. Por fim, “outro fenômeno que explica a atual crise da democracia é a queda do ritmo de crescimento econômico, particularmente no Ocidente”.
Porém, novamente o sociólogo aponta que o caminho é complexo e ter a clareza desses fatores é apenas o primeiro passo. O desafio é reinventar a democracia no século XXI, superando esses fatores que a levam ao esgotamento. Para tanto, tem uma intuição: “Criar mecanismos de participação e controle da sociedade sobre a classe política é um dos caminhos dessa reinvenção”.
Elimar Pinheiro do Nascimento é sociólogo, com doutorado pela Universidade de Paris V. Também realizou pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Atua como professor dos Programas de Pós-Graduação do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília – UnB e do Programa Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas – UFAM. É pesquisador no Centro de Desenvolvimento Sustentável – CDS/UnB. Recentemente publicou, como coautor, Edgar Morin: um homem de muitos séculos. Um olhar latino-americano (São Paulo: SESC, 2022) e Temas intangibles sobre el medio ambiente en America Latina (Lima: Associacion Latinoamericanca de Sociologia, 2021. Vol. 1).
Confira a entrevista.
IHU – Qual o significado das eleições presidenciais de 2022? Que avaliação faz do resultado?
Elimar Pinheiro do Nascimento – A eleição significou, antes de tudo, a escolha, pelo povo brasileiro, da continuidade do processo civilizatório. Foi, em vista disso, uma vitória da democracia, que confrontou, cara a cara, as ameaças iliberais no decorrer de uma eleição inusitada em vários planos.
Entre essas peculiaridades, vivenciamos a disputa eleitoral com os resultados mais apertados da história recente do Brasil. Lula venceu contra a máquina estatal utilizada ao extremo e resistiu a medidas tomadas ao arrepio da lei. Além disso, o Tribunal Superior Eleitoral – TSE, garantindo eleições limpas e uma apuração rápida, foi, junto com o povo, o grande vencedor dessas eleições. Isso é motivo de orgulho para o país, pois outros países, como os Estados Unidos, não têm um sistema eleitoral confiável e ágil como o nosso.
Pela primeira vez, desde a instituição da reeleição no Brasil, um presidente foi derrotado. Isso não ocorreu com Fernando Henrique Cardoso, Lula ou Dilma. Nenhum deles conseguiu realizar este feito. Bolsonaro perdeu por causa do seu governo desastroso e dos erros de sua assessoria e apoiadores, sobretudo na última semana da campanha.
Reconhecimento envergonhado e manifestações nas estradas
Foi também inusitada a demora do presidente em reconhecer o resultado das urnas. Bolsonaro demorou quase 48 horas para reconhecer sua derrota e o fez de forma oblíqua, envergonhada, implícita, cedendo à pressão de sua ala política, inclusive governadores e senadores eleitos com seu apoio. Eles pressionaram para que o presidente agradecesse os mais de 58 milhões de votos que obteve. Seu silêncio ensurdecedor contribuiu para que apoiadores mais exaltados e antidemocratas iniciassem um movimento de bloqueio das estradas, atingindo mais de mil pontos no país. Essa iniciativa contou com a complacência vergonhosa da cúpula da Polícia Rodoviária Federal, que desde domingo, 30 de outubro de 2022, assumiu um lado na disputa eleitoral, realizando blitz nas estradas, com o claro intuito de prejudicar os eleitores de Lula.
O objetivo das manifestações nas estradas foi o de iniciar o estopim de uma convulsão social. Os manifestantes conclamam uma intervenção militar, inutilmente. O insólito é que essa manifestação ocorre em um momento de claro isolamento do presidente Bolsonaro. Todas as autoridades públicas do TSE, Supremo Tribunal Federal – STF, da Câmara dos Deputados e do Senado reconheceram a vitória de Lula. Diversos adeptos do bolsonarismo, como o governador eleito de São Paulo e mesmo o de Santa Catarina, assim como senadores e ministros de seu governo, inclusive o vice-presidente, declararam aceitar o resultado das urnas, reconhecendo a vitória do Estado democrático de direito.
IHU – E esse reconhecimento da vitória de Lula veio com um apoio internacional impressionante, não?
Elimar Pinheiro do Nascimento – Sem dúvida. Todos os países, que têm alguma importância no mundo, reconheceram rapidamente o resultado do pleito. Até a Rússia e a Ucrânia, países envolvidos numa guerra, cumprimentaram o eleito.
O prestígio de Lula no exterior, que um dia foi chamado elogiosamente por Barack Obama de “o cara”, ficou comprovado não apenas pela rapidez com que todos os países reconheceram a sua vitória, mas também pelo fato de ter sido convidado para integrar a equipe de representantes do Brasil para a COP27, que está reunida no Egito, entre 6 e 18 de novembro, e para a reunião do G20, entre 15 e 16 de novembro deste ano. Portanto, antes mesmo de começar seu mandato como chefe de Estado, o candidato eleito à presidência Luiz Inácio Lula da Silva já vai participar de conferências internacionais, visando pôr rapidamente no esquecimento a fama de pária que o Brasil ganhou durante o governo Bolsonaro.
Ademais, a Noruega anunciou que vai retomar os aportes ao Fundo da Amazônia, interrompidos em função do descaso do governo Bolsonaro com o desmatamento da Amazônia. A China declarou que quer um acordo estratégico com o Brasil, e o presidente dos Estados Unidos declarou que deseja visitar o país.
IHU – O que mais chamou sua atenção nessas eleições presidenciais?
Elimar Pinheiro do Nascimento – Há coisas insólitas, ou paradoxais, a serem explicadas, como o fato de que o candidato progressista vencer com uma base eleitoral aparentemente adversa: a região mais atrasada econômica e tecnologicamente do país, o Nordeste; as pessoas que, normalmente, têm menos recursos e instrumentos de se informar e interpretar os eventos políticos, os pobres; finalmente, as mulheres, que a psicologia afirma serem menos afeitas a mudanças. Uma hipótese é que, para estes eleitores, Lula representava um retorno a um tempo bem conhecido, até nostálgico.
Sei que o grande tema político sobre o resultado das eleições, no momento, são as conjecturas de como será composto o próximo governo, quais os grandes desafios que enfrentará, que estratégias deverá adotar para ampliar a base parlamentar etc. Mas quero chamar atenção para outro fato que me saltou aos olhos: o estranho o fato de o presidente derrotado ter obtido 49,10% dos votos. Serão necessários muitos esforços de cientistas sociais e sociólogos para explicar como isso aconteceu com um presidente que:
geriu de forma estúpida a pandemia, pregando publicamente a aglomeração sem máscaras e o uso de medicamentos mundialmente reconhecidos como inócuos;
flertou com manifestantes que pediam intervenção militar;
hostilizou seguidamente o Judiciário e os membros da sua mais alta corte, com palavrões inqualificáveis;
agrediu a imprensa, em particular as mulheres;
andava de motocicleta pelo país, sem capacete, ao arrepio da lei, em vez de trabalhar;
atraiu o ridículo internacional de discursar para as calçadas em Londres por ocasião do funeral da rainha da Inglaterra;
desmontou todo o sistema de fiscalização da Amazônia, o que elevou os índices de desmatamento;
estimulou o garimpo ilegal e a invasão de terras indígenas;
viu, com indiferença, o país retornar ao mapa da fome, com mais de 30 milhões de pessoas em estado de insegurança alimentar;
cortou verbas de educação, ciência e tecnologia, ao mesmo tempo que aumentava o valor das emendas parlamentares e aprovava o chamado “orçamento secreto”.
Apesar de tudo, Bolsonaro obteve 58 milhões de votos. Como explicar? Ele recebeu mais votos do que em 2018, quando poucos conheciam a sua trajetória de deputado federal medíocre e defensor da tortura e dos torturadores.
IHU – O senhor tem alguma hipótese nesse sentido?
Elimar Pinheiro do Nascimento – Para ter 49% dos votos, o presidente em exercício usou ao extremo a máquina pública e fake news, em que seus assessores são campeões. Outra explicação encontra-se na imagem complexa que ele criou ao longo da presidência, atraindo segmentos sociais díspares.
Todos sabemos que as pessoas votam em imagens que elas constroem dos candidatos que vão merecer seu voto. Bolsonaro é um mosaico, que reúne imagens distintas e contraditórias acolhidas seletivamente pelos diversos segmentos sociais que votaram nele.
Ele reúne diferentes imagens, tais como:
apologista do regime autoritário, da ditadura e da tortura, imagem grata ao segmento social de extrema-direita, minoritário em sua base eleitoral, mas que é muito ativo;
defensor dos valores mais conservadores do ponto de vista dos costumes – a família tradicional, o papel submisso da mulher, a proibição total do aborto, a rejeição do casamento homoafetivo etc., do agrado dos evangélicos em particular;
combatente intransigente da corrupção, aspecto que cativa parte dos segmentos sociais moralistas da classe média brasileira desde a época da União Democrática Nacional – UDN, nos anos 1950;
líder do antipetismo, que mobiliza parte significativa dos eleitores que antes votava no PSDB;
patrocinador de uma democracia individualista, em que a liberdade de expressão de cada indivíduo deve estar acima de qualquer outra coisa, inclusive da liberdade do amigo, do vizinho, do familiar, do colega. Nessa concepção, todos devem ter a liberdade de produzir e divulgar qualquer fake news, andar armado, dirigir na velocidade que lhe apraz, entre outros;
político liberal na economia (apesar de seu passado de estatizante), que tanto agrada parte do empresariado, grande ou pequeno, agro ou urbano, e que Paulo Guedes pretende representar com sua pregação de privatização das estatais brasileiras, Petrobras e Banco do Brasil incluídos.
Essas diferentes imagens carecem de respaldo na realidade. Mas isso não importa, o que conta é que elas são “compradas” pelos distintos grupos sociais, que se apropriam de certas imagens sem considerar as outras. E alguns destes grupos são perpassados por uma cultura fundamentalista, de caráter religioso (como determinados grupos evangélicos) ou laico (como adeptos do fascismo).
Elemento em comum
Diante desse quadro, cabe a pergunta: qual o elemento comum a essas imagens? Poderia ser o conservadorismo, marcado por um individualismo nascido da ansiedade e insegurança, que se recusa a ver de frente o futuro em constante mudança. Porém, não é evidente. O fenômeno parece ser mais complexo e merece ser compreendido devidamente, por meio de estudos minuciosos. Algo essencial para nos afastarmos de novos riscos fascistas.
De toda forma, a base eleitoral do Bolsonaro não é formada apenas por neofascistas ou grupos evangélicos fortemente conservadores. Esses são os mais visíveis, que não devem formar nem sequer metade de seu eleitorado. Eles não explicam suficientemente os 58 milhões de votos. Sua base é formada por grupos heterogêneos de fundamento ideológico, uns, ou pragmático, outros. Conservadores e liberais, modernos e tradicionais, ao mesmo tempo. É um Frankenstein. Na linguagem antiga de Mao Tse Tung, “um gigante com pés de barro”. Por isso mesmo, a força do bolsonarismo pós-eleição vai depender das atitudes do próximo governo, das medidas que forem tomadas, do sucesso de suas políticas públicas, bem como das novas imagens projetadas no campo da política que serão recepcionadas pelos eleitores.
IHU – Em sua avaliação, como a pauta socioambiental foi tratada neste pleito?
Elimar Pinheiro do Nascimento – Este pleito, como diz a cientista política Maria Hermínia Tavares, foi absolutamente despolitizado. O que menos escutamos foram propostas para quaisquer dos problemas nacionais prementes. Não é que não existiram propostas, mas foram esmagadas pelas montanhas de ataques pessoais ao vivo ou em vídeos de ambos os lados. Nos debates, se fôssemos fazer um mapa de palavras, com certeza o maior destaque seria mentira/mentiroso. A carta ao Brasil, do Lula, já no final da campanha, amplamente demonstrada, não passou de uma carta de intenção. É um documento superficial, embora importante, pois tentava delimitar, em linguagem simples e de forma genérica, uma visão de sociedade que se opunha à do seu adversário.
Em resumo, a pauta socioambiental não existiu nas eleições. Salvo marginalmente como a carta de Lula ao Brasil, o último debate, quando Bolsonaro se referiu errônea e maliciosamente, ao desmatamento da Amazônia e en passant numa outra entrevista, mas sempre superficialmente.
IHU – O senhor aponta a necessidade de reinvenção da democracia. Em que consiste essa sua proposta?
Elimar Pinheiro do Nascimento – A democracia vive neste século XXI a sua maior crise. Não é a primeira. Conhecemos as suas derrotas nos anos 1920-1940 com o fascismo, o nazismo e o stalinismo. No entanto, ela vinha em ascensão desde o fim da Segunda Guerra, quando se propagou na Europa Ocidental. Nas décadas de 1970 e 1980, feneceram as ditaduras do sul da Europa (Grécia, Espanha e Portugal) e da América Latina (Brasil, Argentina, Uruguai, Chile, Bolívia e Peru). Graças às novas primaveras, a democracia voltou a se expandir com a queda do muro de Berlim e o fim da URSS.
Porém, desde o início do século XXI seu avanço parou e ela começou a declinar. Movimentos populistas de extrema-direita emergiram e se difundiram pela Europa, América e Ásia. Tomaram o poder na Polônia, Hungria, Turquia, Índia e Filipinas, criando regimes autoritários. Esse movimento de extrema-direita chegou a ascender ao poder em outros países europeus, como Suíça, Áustria, Noruega, Suécia, Holanda e, mais recentemente, na Itália, entre outros. Cresceu eleitoralmente em países como Inglaterra, Espanha e França. Em movimento sanfona, cresce e decresce, como nos Estados Unidos e no Brasil.
As derrotas da democracia devem-se, em grande parte, a três fenômenos distintos, mas que se remetem um ao outro. O primeiro é o processo de globalização, com a constituição de um mercado global, alimentado por um processo acelerado de inovações tecnológicas e mudanças sociais e culturais. Esse processo tem afastado segmentos sociais significativos do acesso às benesses da globalização, desalojados dos eixos dinâmicos da economia, remetidos ao desemprego e à pobreza. Com isso, eles mudam de postura política, desconfiando das instituições democráticas e das elites no poder. Veja o exemplo da classe operária francesa que, nas décadas de 1950-1980, apoiava os partidos comunistas e socialistas e, hoje, constituem uma das bases do partido da extrema-direita, Front National.
O segundo fenômeno que explica a presente crise da democracia é a mudança da natureza e do papel dos partidos políticos, resultado do fim da sociedade industrial, que nada tem a ver com o fim das indústrias. Os partidos políticos de massa foram substituídos por outros tipos de partidos, que não mais exprimem o interesse de um determinado grupo social, mas servem de acesso de grupos difusos a benesses do Estado, resultado do declínio da sociedade industrial, sociedade de classes. Esse distanciamento entre representantes e representados é alimentado pelo crescimento extraordinário da desigualdade social e regional, que atinge atualmente patamares absurdos.
Finalmente, outro fenômeno que explica a atual crise da democracia é a queda do ritmo de crescimento econômico, em particular no Ocidente. Isso tem repercussão sobre o principal ator da criação da democracia no século XX, as classes médias. Esses segmentos saíram perdendo com a queda da dinâmica do crescimento e, por isso, tendem a ter uma renda per capita em declínio.
Em toda parte, grupos sociais significativos se sentem ameaçados, inseguros, ansiosos e buscam refúgio em movimentos que lhes prometem o retorno ao passado ou o engessamento das mudanças. Dessa forma, a democracia não tem como sobreviver. O seu fenecimento é uma questão de tempo, salvo se ela for capaz de se reinventar. Esta é a conclusão de meu livro, intitulado Um mundo de riscos e desafios: construir a sustentabilidade, reinventar a democracia e eliminar a nova exclusão social (Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2020).
Novas formação de participação social
Criar mecanismos de participação e controle da sociedade sobre a classe política é um dos caminhos dessa reinvenção. Para isso, precisamos fazer dois movimentos aparentemente antagônicos, um em direção ao passado e o outro, rumo ao futuro:
(I) buscar as fontes da democracia, quando os gregos em Atenas a inventaram no século IV a.C;
(II) utilizar os novos meios digitais e eletrônicos, inclusive a inteligência artificial, para criar mecanismos rápidos e eficientes de controle das ações governamentais por parte da sociedade.
No primeiro movimento, alguns países como Bélgica, Holanda e Suíça estão retornando o princípio democrático maior dos gregos antigos: o sorteio. Quando os atenienses criaram a democracia em rebelião contra os ricos donos de terras, adotaram dois procedimentos para escolher seus representantes. O procedimento democrático era o sorteio, no qual todos os humanos tinham a mesma oportunidade de ser escolhidos, embora no caso grego em questão a comunidade política era formada apenas por homens livres, atenienses, adultos. O procedimento aristocrático era a eleição, na qual se escolhiam os mais habilidosos.
Ora, fundadores da democracia moderna, franceses, mas, sobretudo norte-americanos, abandonaram o princípio do sorteio, que algumas poucas cidades italianas da Idade Média utilizavam para reduzir seus conflitos e assegurar a coesão social. Em grande parte, isso ocorreu porque norte-americanos e franceses não estavam criando democracias, e sim repúblicas. República é o regime que se opõe à monarquia, que eles queriam derrubar.
A democracia, na verdade, nasceu da luta das classes operárias inicialmente e, em seguida, das classes médias, ao longo de mais de dois séculos. O sorteio, que está sendo retomado, tem desempenhado um papel de renovar o debate público e a proposição de políticas públicas mais vinculadas aos interesses majoritários da sociedade. Um papel complementar, mas arejador.
O uso de tecnologias digitais tende a criar mecanismos de controle social mais abrangentes do que os que conhecemos e, talvez, venha a revitalizar a aproximação entre representantes e representados. De toda forma, é preciso buscar e ensaiar novas formas de participação e controle social, como um dos caminhos para reinventar a democracia.
IHU – Como o senhor tem refletido sobre um desenvolvimento adequado para a Amazônia, considerando os avanços científicos, mas também o conhecimento dos povos tradicionais?
Elimar Pinheiro do Nascimento – A Amazônia, ao contrário do que sugerem muitas pesquisas de opinião, em geral não interessa aos brasileiros de outras regiões. Além disso, a floresta amazônica interessa muito pouco aos habitantes das cidades amazônicas, particularmente Manaus e Belém. Para parte significativa dessa população, a floresta é sinônimo de atraso. Asfalto e cimento são sinais de progresso.
Infelizmente, a Amazônia, como tantos outros temas candentes, não foi, mais uma vez, devidamente focada durante as campanhas eleitorais. Em sua carta ao Brasil e no discurso depois que o resultado das eleições foi proclamado, Lula tocou no tema. Logo após, como efeito imediato, a Noruega declarou que voltará a contribuir para o Fundo Amazônia, congelado no governo Bolsonaro, que nunca teve interesse em desestimular o desmatamento.
A Amazônia é um capital extraordinário que o Brasil detém, e cada vez mais valioso, na medida em que os humanos avançam no processo de destruição da biodiversidade em escala global. Há vários planos de uso das riquezas da Amazônia para os povos locais e o povo brasileiro em geral. O melhor, de forma global, ainda é o plano que Marina Silva propôs quando estava à frente do Ministério do Meio Ambiente, chamado Plano Amazônia Sustentável – PAS, de 2008.
Nas diversas abordagens, como o Plano de Desenvolvimento Sustentável do Amapá – PDSA, ou os estudos de Armando Mendes, Bertha Becker, Ignacy Sachs, João Paulo Capobianco, Carlos Nobre e os pesquisadores e institutos de pesquisa na Amazônia (Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia – INPA, Museu Emílio Goeldi, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos – NAEA/UFPA, Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais e Sustentabilidade da Amazônia da Universidade Federal do Amazonas – PPGCASA/UFAM, Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia – IPAM), entre outros, domina a ideia, cada vez mais consensual, de que o melhor para a Amazônia é a economia da “floresta em pé”. Isso implica em:
(i) estimular a agricultura e a criação de gado em regimes intensivos, para que não haja mais desmatamentos;
(ii) adotar um vasto programa de reflorestamento para recuperar as áreas degradadas;
(iii) estímulos ao cultivo híbrido de floresta, agricultura, criação de pequenos animais, inclusive peixes, turismo e artesanato. É preciso dar múltiplas funções à pequena agricultura, adotando o princípio da economia circular, em que o dejeto de uma criação (galinhas) vira o adubo de outra criação (hortas).
Bioeconomia
Entre as propostas mais recentes para explorar os recursos naturais da Amazônia com a floresta em pé, destaca-se a bioeconomia, ou seja, investir em tecnologias para aproveitar melhor suas riquezas biológicas (castanhas, óleos, cosméticos, madeiras, produtos fármacos, alimentos vegetais e animais). A isso podemos acrescentar o ingresso no mercado de carbono.
Porém, é preciso que a sociedade brasileira (cientistas, políticos, governantes) tenha melhor conhecimento das riquezas da floresta. Isso exige investir em educação, ciência e tecnologia nos centros educacionais e de pesquisa da Amazônia para gerar políticas e programas robustos, de forma contínua. São políticas e programas que devem nascer do diálogo entre os povos tradicionais, cientistas, empreendedores locais e nacionais e os órgãos públicos e semiestatais, envolvendo também universidades, institutos de pesquisa e institutos federais.
O mais importante, no entanto, é que estes programas e políticas tenham continuidade, articulem iniciativas complementares e estejam conectados a um sistema de avaliação e informação contínuas, com uma governança que fique acima das idiossincrasias da descontinuidade política.
IHU – Uma das questões importantes hoje, em face do agravamento das mudanças climáticas, e que não foi abordada nas eleições é a transição energética. Como o senhor a entende?
Elimar Pinheiro do Nascimento – A transição energética é um problema mais complexo do que normalmente se pensa. As fontes limpas de energia que conhecemos e dominamos, como hídrica, eólica, solar, geotérmica, marítima etc., ainda estão muito longe de poder substituir as fontes fósseis (carvão, petróleo e gás). Por isso mesmo, o prestígio da energia nuclear vem sendo ressuscitado. É possível que ela venha a se expandir de novo, aumentando os riscos de desastres como Chernobyl ou da produção de bombas nucleares por grupos terroristas. Mas o fato é que as fontes limpas que conhecemos, com a tecnologia que temos, não servem para mudar a matriz energética, por mais que cresçam. Elas não têm a capacidade de produzir energia suficiente para substituir plenamente as fontes fósseis.
Isso não significa que não devemos investir nas fontes de energia supracitadas e outras. Elas desempenham o belo papel de reduzir as emissões de gases do efeito estufa provenientes do uso de combustíveis fósseis, embora de forma eficiente. Se quisermos mudar a matriz energética que temos, deveremos tomar pelo menos duas decisões dificílimas: a primeira é a de estimular de forma mais ativa as fontes limpas que conhecemos e que sozinhas não serão capazes de produzir a mudança. Por essa razão, necessitamos da segunda decisão. Entretanto, essa ainda é mais difícil: reduzir o uso de energia de fontes fósseis, redirecionando o crescimento da produção e do consumo (particularmente dos grupos bem aquinhoados) de forma a alcançarmos uma redução radical da emissão de gases de efeito estufa.
É importante compreender que, se continuarmos a nos mover pelo princípio da reprodução ampliada da economia de mercado, não teremos qualquer redução da emissão de gases do efeito estufa, visto que o que ganharmos com fontes limpas perderemos com o consumo ampliado das fontes fósseis.
Ações do pós-desenvolvimentismo
Os movimentos pós-desenvolvimentistas como decrescimento, bem viver, prosperidade sem crescimento, entre muitos outros, propugnam que eliminemos a produção e o consumo de produtos e serviços supérfluos como armas, drogas, propaganda, entre outros; que reduzamos a produção e o consumo de produtos como automóveis, moda, carnes etc.; que tributemos ou proibamos formas de produção nocivas à natureza; que estimulemos a economia criativa e a desmaterialização da economia, entre outros. Ou seja, que trilhemos caminhos que nos levem à sustentabilidade.
No caso do Brasil, estamos na contramão da sustentabilidade. A economia distributiva, em que cada imóvel poderia gerar sua própria energia, com placas fotovoltaicas, por exemplo, foi desestimulada com uma lei que entra em vigor no próximo ano, resultado do lobby de empresas de geração e distribuição de energia hídrica ou fóssil.
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Elimar Pinheiro do Nascimento (Foto: Arquivo pessoal)