Carta sobre o futuro das políticas culturais no Brasil

Pensar as metrópoles como centros criativos. Ver as múltiplas expressões do digital. Espalhar laboratórios de redes sociais. Liderar a mudança de padrões de vida. Nosso colaborador retoma, em outro cenário, diálogo com um ex-ministro

Por Rodrigo Savazoni, em Outras Palavras

Sete anos atrás escrevi uma carta para Juca Ferreira. Ele acabara de reassumir o Ministério da Cultura, no início do segundo governo de Dilma. Dois anos antes eu havia trabalhado com Juca, como seu chefe de gabinete, na prefeitura de São Paulo. Construímos uma relação de amizade. Chegamos a falar sobre a possibilidade de eu integrar o governo naquela ocasião, mas preferi outros caminhos. O que não me impediu de ser, junto com Ricardo Targino, um dos autores do seu discurso de posse, para o qual também contribuíram muitos mais, um grupo de pessoas de enorme compromisso com a cultura de nosso país.

Reli a carta outro dia e percebi que trazia algumas ideias que poderiam ter sido importantes à época, caso tivessem sido levadas em consideração. Com alguns adendos e melhorias, devido às transformações da conjuntura, pareceu-me que segue relevante, porque os tempos são outros mas muitos dos desafios permanecem. A versão aqui publicada foi minimamente editada e a faço pública com o fito de contribuir para a transição de governo. Ajudar a reconstruir o Brasil é o imperativo que devemos abraçar.

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Querido Juca,

Escrevo agora para posicionar algumas questões que, entendo, podem ser relevantes nesse segundo mandato de Dilma , sobretudo a partir de sua volta ao Ministério da Cultura. Essa é sem dúvida a grande notícia para as esquerdas latino-americanas e para os que lutam pela diversidade cultural em todo o mundo. Quero mais uma vez lhe dizer parabéns, e aproveitar para afirmar que, mesmo não estando dentro da equipe de gestão, comprometo-me em auxiliá-lo e a colaborar contigo naquilo que você desejar.

Parto do novo slogan do governo “Brasil: Pátria Educadora”. É um slogan forte, bacana, positivo, mas que carrega consigo alguns riscos. O principal é o adjetivo educadora, que é também uma substantivação de pátria, nesse caso. Nós sabemos que o governo Dilma tende à tecnocracia, a uma ideia ainda retrógrada, ou, digamos, centrada nos desafios do século passado, do ponto-de-vista econômico. Essa educação tende e pode, nesse caso, tornar-se um grande movimento de adestramento técnico, com consequências positivas na inclusão socioeconômica, mas catastróficos na conformação do imaginário nacional.

Um país de renda de classe média e sem conexão com sua diversidade cultural, majoritariamente evangélico (dado que só as igrejas evangélicas, como demonstrou a pesquisa do SESC com a Perseu Abramo, têm conseguido suprir em escala a demanda por espaços suplementares ao trabalho e à rotina). Isso fatalmente dizimará qualquer caminho à esquerda em nossa sociedade. Dizimará! Esse processo já está em curso, como vimos na eleição.

Temos nesse ponto, duas dobras possíveis:

1. É preciso pensar pela primeira vez os evangélicos como um ator cultural relevante e importante e trazê-los para o debate. Há dentro dos evangélicos alas moderadas e, eu diria, até à esquerda, que herdam o espírito mais revolucionário dos calvinistas. A teologia monetarista dominou o imaginário, mas ainda assim não são todos os crentes que escolhem o caminho da usura. Creio que seria muito importante aprofundar essa questão e desenvolver um trabalho mais aproximado dessa pauta, chamar um grupo, compreender o que são e o que querem, e pensar em como atuar para “disputar” esse imaginário, não impedindo-os de serem quem são, mas trazendo informações complementares e uma forma mais aberta de diálogo. As igrejas evangélicas são as maiores consumidoras de instrumentos musicais do Brasil. Lembro-me que na Virada Cultural fomos contrários à demanda por um palco gospel. Não se trata de criar uma área gospel, evidentemente, mas justamente de tentar demovê-los a constituírem uma espécie de ambiente cultural paralelo (que pela dimensão pode dentro em breve tornar-se hegemônico). Alguma ponte com isso há de haver.

2. Nesse sentido, volta a sua grande formulação sobre a necessidade de um trabalho educacional forte. O MinC terá um papel CENTRAL para qualificar esse Pátria Educadora. Educar sem cultura é adestrar. Isso já foi dito por você em suas falas no primeiro mandato. O que se pode fazer a partir daí? Acho que é preciso inserir a ideia de Artes e Humanidades com TODA FORÇA nessa reformulação do ensino médio que Cid Gomes anunciou. Também é preciso pensar em um programa sólido e muito forte de iniciação artística, nacionalmente relevante, uma espécie de PRONARTES (Pronatec das artes), que possa atender aos ensinos fundamentais. A metodologia pouco sistematizada do programa de São Paulo, o PIA, é razoável. Mas poder-se-ia ir muito além. E há muita gente pensando e agindo assim no âmbito dos mercados e das instituições de cultura. Acho que uma arregimentação nesse setor teria grande relevância. Grandes consequências. Em relação ao próprio PRONATEC, você deveria procurar Danilo Miranda, tão logo assuma, e propor que ele ajude a articular uma reunião sua com o SISTEMA S. Haddad também pode ajudar nisso. Nessa reunião, você deveria propor um pacto entre o MinC e essas instituições para a construção de uma ação avassaladora de formação para a produção cultural, qualificando assim um mercado nacional de produtores e técnicos em cultura. Esse trabalho também deveria vir acompanhado de uma pesquisa situacional sobre as demandas existentes de instituições culturais públicas e privadas em todo o país para absorver esse jovem em formação ou formado pelo Pronatec (uma espécie de JOVEM MONITOR, como o que ampliamos e demos solução institucional, em nível nacional). Não creio que tenhamos um inventário, um cadastro, do conjunto das instituições culturais brasileiras. Realizar esse mapeamento pode ser uma operação bastante sólida do Sistema Nacional de Cultura, para que ele possa ser muito mais que um protocolo de intenções sem maiores ações. Há também a questão das Universidades, e acho que é preciso bolar uma política de cultura para as universidades brasileiras convocando os pró-reitores de cultura e extensão das Universidades Federais e das principais Universidades e Faculdades utilizadoras do Prouni (Criar o programa Universidade Aberta para a Cultura – UAC).

Indo adiante, pensando em outros aspectos.

Ainda como consequência desse cenário que descrevi logo acima, uma forma de chegar e disputar territorialmente as comunidades com os evangélicos é estimular as diferenças e a diversidade que existe dentro dessas comunidades. O caso de Filipe Camarão, em Natal, é emblemático, e Eliane Costa o narra no início de seu excelente artigo que acaba de ser publicado no livro “De Baixo Para Cima”’, para o qual fiz consultoria editorial. Uma comunidade que não reconhecia seus mestres e sua cultura ancestral, e que a partir dos Pontos de Cultura, mudou completamente em termos de auto-estima e reconhecimento. Uma comunidade que hoje cultua seus bonequeiros, seu artesanato, seus fazeres, mas que também se encontra à míngua depois de desastrados quatro anos. Como estimular 30 mil experiências como essas? Sem dúvida, a gestão Gil-Juca já o fez. Foi um dos grandes acontecimentos do Brasil contemporâneo. Mas muitos estão machucados, ausentes, ou fragilizados. É preciso então anunciar um novo passo na política de Cidadania Cultural. Um pouco do que tentamos fazer em São Paulo também pode iluminar. Criar uma Política Integrada de Cidadania Cultural, fortalecendo os Pontos de Cultura, mas criando os programas VAI NACIONAL ou VAMOS (voltado a coletivos, sem formalização institucional, jovens e de livre idade), o Agente Comunitário de Cultura (voltado a indivíduos). Aqui entra um ponto importante, precisamos superar a ideia de que cidadania cultural só pode ser feita por ONGS. Sem dúvida o advento do Microempreendedor Individual modificou os sistemas de produção cultural (isso vale um estudo!), então é preciso estimular que sejam agentes econômicos com possibilidade de rendimento. Também aqui caberia pensar na solução de Negócios Sociais. Ajudar a tipificar um outro tipo de relação contábil e produtiva no emaranhado da cultura. Essa é a única forma que avisto de conseguirmos formatar mercados consistentes, comunitários e também solidários que possam dar sustentabilidade para essas ações de incidência local e consequências globais.

Daqui se desdobra uma questão central. O Ministério da Cultura, como você mesmo já disse tantas vezes, e inaugurou durante o período que ficou em São Paulo, precisa se relacionar com as metrópoles e grandes cidades brasileiras. Esse programa do VAMOS, por exemplo, deveria atender prioritariamente as cidades com mais de 200 mil habitantes, que constituem menos de 5% dos municípios brasileiros, mas concentram cerca de metade da população. Ou seja, do ponto-de-vista da gestão, é fácil focar e realizar uma rede de trabalho com esses municípios. É possível identificar gestores do programa em todos eles, convidar todos esses secretários municipais de cultura, o que daria uma reunião com 150 pessoas. Coisa simplérrima. É uma escala pequena para um efeito enorme. E com consequências potencialmente gigantescas. Aliás, essa reunião com os secretários de cultura de municípios com mais de 200 mil habitantes poderia estar inclusive dentro do planejamento dos 90 dias, onde poderia ser entregue um formulário para cada um desses gestores, com prazo de devolução, para traçar um diagnóstico de demandas e sugestões.

Isso não significa, definitivamente, não pensar em políticas para as outras cidades. É bem possível por exemplo estender o programa num segundo momento para cidades com mais de 100 mil habitantes, mas daí já pulamos para cerca de 800 municípios, se não me engano, e chegamos a 80% da população brasileira, que está concentrada nas cidades, cada vez mais. Acho que um Fórum de Políticas Culturais para as Cidades Brasileiras também viria a calhar. Talvez isso pudesse dar origem a algo mais sistemático e estruturado, que poderia estar a cargo de quem for responsável por pensar a questão territorial, que sei é uma demanda central sua.

Dando mais um salto.

A questão da Economia da Cultura. Parece-me um erro termos a SEFIC e a SEC. Isso tudo deveria ser fundido em uma grande SEC, que seja a Secretaria de Economia da Cultura. Essa secretária teria de ter no mínimo três diretorias. Uma para lidar com Novos Mercados e Empreendedores (o que é hoje a SEC), uma para tratar de Financiamento Cultural (cuidar da Rouanet e de sua reforma) e outra de Recursos públicos (cuidar do fundo e de outras possibilidades de geração de receitas estatais). Talvez seja possível montar um grupo para trabalhar essa nova solução institucional, antes de anunciar quem estará no comando dessa frente tão estratégica. De qualquer forma, me parece que abandonar esse conceito de Economia Criativa, e retomar o de Economia da Cultura é muito mais adequado ao MinC. O que se pode propor, mais adiante, é um foro interministerial, de Economia Criativa, que envolva outros Ministérios, a partir da Casa Civil. (Comentário atual: creio que essa agenda segue sendo vital e pensar a economia criativa a partir da economia da cultura segue sendo algo fundamental). 

Ainda no plano mais estratégico, e pensando o papel do Estado, acho que você deve retomar imediatamente aquele processo que estávamos desenvolvendo de organizações de novas institucionalidades para a cultura no final de 2010. Também reunir novamente as principais instituições culturais públicas e privadas brasileiras em um Fórum de Gestão Cultural, que possa auxiliar a repensar a forma de gerenciamento dessas instituições. Esse Fórum deve ter por princípio também apresentar soluções institucionais para a Biblioteca Nacional e a Cinemateca. Analisar o que foi feito pela gestão anterior nesse sentido. E para além disso, é preciso que o MinC apresente aos Estados e Municípios um modelo de como agir para ter qualidade.

Sobre a questão do Audiovisual. Creio que seja fundamental assumir a interlocução desde o princípio com o pessoal da TV Pública. Agora, se quiser ir muito além, eu sugeriria transformar a Secretaria do Audiovisual em Secretaria do Digital e enfrentar o desafio de trabalhar o digital como linguagem integradora de toda a produção midiática no Século 21. Ou seja, jogar para dentro dessa secretaria de forma avançada a estruturação de uma política digital ousada e estruturada. Sob essa Secretaria do Digital teríamos o cinema, mas também o design, a animação, a fotografia, os games, a performance, as intervenções de arte e tecnologia. De acervo e conservação, a Cinemateca pode muito bem cuidar. Mas isso marcaria um tempo, sem dúvida. É óbvio que poderia gerar chiadeira. Mas o cinema que hoje não é digital não existe. E ao mesmo tempo ninguém pode mais pensar apenas em cinema na era das plataformas. É preciso pensar de forma integrada para os diferentes dispositivos. Portanto, faria todo sentido reorganizar a estrutura por aí. Essa secretaria poderia estar também vinculada às questões centrais e ser uma importante indutora para dentro do governo das questões contemporâneas. Falo portanto de duas estruturas: uma para dentro do MinC (o gabinete digital) e outra para fora, para a sociedade, que é a Secretaria do Digital, antiga Secretaria do Audiovisual. E que a partir daí se estruture uma política complexa.

Do ponto de vista do governo, listo o que considero serem os desafios do digital: (1) regulamentação progressista do Marco Civil, com garantia incondicional da neutralidade de rede; (2) aprovação de uma nova lei de direitos autorais que incorpore novos autores e que reconheça a economia digital, criando assim um ambiente mais seguro e equilibrado para autores mas também para os novos prossumidores; (3) estruturação de laboratórios de cultura digital e inovação cidadã substituindo os antigos telecentros, cujo foco estava na conexão e agora deve estar na invenção digital (LID); (4) avançar na incorporação a cultura digital e os valores da colaboração e do compartilhamento do conhecimento dentro do ambiente escolar, ajudando assim a reorganizar o ensino público; (5) retomar uma política de software livre que tenha como objetivo estimular o desenvolvimento de soluções, aplicações e novos softwares; (6) olhar com atenção para o pequeno e médio empreendedorismo, criando ações direcionadas à inovação que surge de baixo para cima, a partir da produção dos jovens desenvolvedores. Isso tudo essa secretaria poderia estar envolvida, e contribuir centralmente. Acho que daí pode-se depreender duas possibilidades muito importantes. Estimular o governo a criar um Centro de Invenção Digital, voltado para o estímulo ao desenvolvimento aberto e distribuído, e que seja uma referência no país. Temos uma das mais vibrantes sociedades civis digitais do planeta, uma comunidade forte de software livre, e não temos ninguém desenvolvendo políticas para esse campo. Isso poderia ser feito buscando apoio do MCT, mas o MinC deveria comandar, sob sua supervisão.

Pulando mais um tema.

Acho que você precisa liderar pessoalmente um debate nacional sobre a questão do colapso planetário que está se desenhando do ponto-de-vista ambiental. Tenho acompanhado o trabalho de um centro de tecnologias alternativas que existe no Reino Unido há 40 anos. Esses caras são GENIAIS, e estão agora trabalhando justamente o que eles chamam de Cultural Turn, Virada Cultural, do debate ambiental. Ou seja, acreditam que só comprometendo os fazedores de cultura e os artistas a causa ganhará fôlego e relevância. Acho que o novo MinC tem de entrar MUITO FORTE nessa agenda, da sobrevivência da humanidade. No Rio, há um trabalho fantástico sendo lançado, que é o MUSEU DO AMANHÃ, conheci o projeto e é fabuloso. Uma obra do Calatrava no Porto, perto das Docas, que abrigará uma das mais avançadas instituições culturais brasileiras. Pensei em propor um grande evento chamado VIDA (Visionaries and Initiatives for Developing Alternatives), um evento internacional, que ocorresse em um centro nevrálgico da diversidade sociocultural-ambiental brasileira, trazendo os visionários e as iniciativas globais que estão enfrentando de frente o colapso planetário e projetando a criação de tecnologias da sobrevivência. O planeta não vai mal. O que vai é a humanidade. E acredito que a máxima do Viveiros, de pensar o mundo a partir do Brasil, é mais do que nunca necessária. Nem preciso falar sobre a centralidade da Amazônia para todo esse debate.

Acho que vou encerrar por aqui, porque já me estendi demais.

Fazendo um resumo. Estou propondo:

  • Uma política cultural para a relação com a religiosidade, observando o aspecto do crescimento evangélico e seu afastamento das construções democráticas;
  • Uma forte frente de atuação na relação entre cultura e educação;
  • A transformação da SEC e da SEFIC em uma nova SEC (Secretaria de Economia da Cultura);
  • A transformação da Secretaria do Audiovisual em Secretaria do Digital;
  • A criação de um Centro de Invenção Digital, uma nova instituição pública voltada à lidar com o fomento e a articulação dos desenvolvedores da cultura digital brasileira;
  • A criação de uma ousada política de cultura e arte para a sobrevivência planetária;
  • Uma política integrada de Cidadania Cultural, com a criação de novos programas voltados diretamente à questão urbana;
  • A constituição de um Fórum de Gestão Cultural para cumprir o desafio de modernizar o Estado e pensar soluções institucionais para as instituições culturais;
  • Realizar o I Fórum de Políticas Culturais para as Cidades Brasileiras ainda no primeiro semestre;
  • Criar o PRONARTES (Formação para as Artes no ensino fundamental e no médio); a Universidade aberta para a Cultura (UAC); o VAMOS (Programa Nacional de Valorização das Iniciativas Culturais); o PRÊMIO CULTURA DO FUTURO (para Prounistas e utilizantes do Fies que criem iniciativas culturais); Retomar os PONTOS DE CULTURA, dentro da regulamentação da LEI CULTURA VIVA.

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