Os defensores da austeridade estão nus. Por Pedro Alcântara

Após seis anos de teto de gastos, economia está arrasada e metade da população vive sob ameaça da fome. Sequer a dívida pública baixou. Sem entregar nada, “mercado” quer impedir Lula de enfrentar a fome e reconstruir o país

No Outras Palavras

As recentes críticas de Lula à política fiscal em voga no Brasil deixaram setores do mercado financeiro e seus apologistas da mídia em polvorosa. O presidente eleito tem apontado corretamente o papel deletério do atual modelo econômico, fundado em regras fiscais retrógradas, no agravamento da delicadíssima situação social do país. O simples fato da questão vir ao debate público incomodou claramente os defensores da austeridade, pois tirou o véu de um plano reacionário e concentrador de renda, vendido como a salvação do país, aprovado por um governo advindo de um golpe, há 6 anos, e em geral mantido por um governo fascistoide, sem qualquer debate com a sociedade.

O chamado “Novo Regime Fiscal” iniciado por Temer (conjunto de reformas que diminuem o papel do Estado e cujo principal instrumento é o “Teto de gastos” – EC 95 de 2016) congelou investimentos públicos e gastos sociais por 20 anos. Durante esse período, os governos ficam obrigados a atuar sob um limite orçamentário rígido para tudo aquilo relacionado à cidadania, como saúde e educação, seja lá qual for a conjuntura social ou econômica do Brasil.

Para implementá-lo, seus apoiadores sustentavam que estávamos à beira do abismo fiscal, resultado de uma farta “gastança” dos governos petistas. Tal situação poderia nos levar ao caos, fazendo disparar a inflação e afugentando os investidores. A propaganda do medo dominou as análises econômicas, unida à campanha aberta pelo impeachment de Dilma. Com o golpe consolidado e diante da situação “gravíssima” a solução seria promover um duro choque que melhorasse a relação dívida/PIB, sinalizando ao mercado o compromisso do Brasil com o equilíbrio de suas contas. A volta da confiança traria por osmose o investimento, o crescimento e a prosperidade.

Todo esse plano era dourado pelo uso cuidadoso da linguagem, a começar pela palavra “austeridade”, capaz de indicar rigidez ética, sacrifício e compromisso com a frugalidade, contraposta à “sedutora irresponsabilidade” dos setores “populistas”. Nada mais falso, dado que os verdadeiros sacrificados com a política adotada são os pobres e a única gastança pública garantida pelo “Teto” é voltada aos setores que bancam a austeridade, aqueles do mercado financeiro.

A ideia de que o Brasil estava ou está à beira do abismo fiscal é falsa. O país tem dívida interna contraída em moeda própria, além de boa situação em suas contas externas e volumosas reservas internacionais. Não estamos sob risco iminente de uma tragédia fiscal e de um colapso inflacionário, como mais uma vez a propaganda do medo na mídia quer fazer parecer com os alarmes sobre as reações da bolsa às falas críticas de Lula – como se o varejo volátil da bolsa incidisse fortemente sobre a economia real.

Também é questionável a tese segundo a qual o déficit nas contas públicas observado a partir de 2014-2105 resultou de excesso de gastos. Para muitos estudiosos ela foi fruto, na verdade, de brusca queda na arrecadação por conta do baixo crescimento da economia desde então. A economia desacelerou fortemente e o Estado passou a arrecadar menos, mas seguiu tendo que manter as obrigações sociais estabelecidas pela Constituição de 1988, o que teve impacto nas contas. Qual a solução? Para os “austeros” era simples: contrair ainda mais a economia e cortar gastos sociais e investimento público por 20 anos. Na prática garantiam as taxas de ganho dos setores endinheirados, sacrificando a economia real e o bem estar popular, com a promessa de que num futuro próximo a bonança viria. Veio o aumento explosivo da fome e da pobreza.

É igualmente fantasiosa a ideia de que devemos antes estabilizar a situação fiscal do país para depois crescermos e aí então dividirmos a prosperidade. Essa é a fábula sempre vendida pela elite para justificar os danos imediatos que seus planos econômicos provocam na vida dos mais pobres. Os países que crescem fazem isso endividando-se no curto prazo, ou seja, investindo, apostando num crescimento sustentado que aumente a arrecadação e os investimentos a partir da ação do Estado. Isso não é sinônimo de irresponsabilidade, dado que é possível operar esse processo mantendo garantias ao setor privado e evitando aumentos explosivos da dívida pública. O impossível é ter qualquer projeto de país com uma regra fiscal que na prática proíbe o investimento público e deixa o Estado nacional acorrentado.

A tese reacionária dos “austeros” brasileiros sofre crescentes críticas no mundo inteiro, desde a crise mundial de 2008. Hoje a grande discussão nas chamadas “economias avançadas” diz respeito exatamente a como conciliar política fiscal com investimento público e gasto social. O modelo ultraliberal brasileiro é tão fanaticamente ideologizado que para criticá-lo basta utilizar um teórico como Olivier Blanchard, ex-economista chefe do FMI.

Nenhum país ousou fazer a loucura da elite brasileira: amarrar por 20 anos as mãos do Estado. O remédio foi tão duro que hoje já admitem ser impossível governar sem “furar o teto”. Isso já é, em si, uma admissão do erro. Mas o que os preocupa é a cobrança de uma admissão de culpa pelo caos social que essa política nos trouxe, com quase 60% da população levada a conviver com a insegurança alimentar, sem que o plano austero conseguisse sequer a diminuição da dívida, ainda crescente. O “Novo regime fiscal” da austeridade brasileira fracassou.

Para fugir da responsabilidade os promotores do caos social admitem o “estouro” do teto para o pagamento do novo Bolsa Família de R$ 600, embora ainda resistam à ideia de recursos permanentes fora do teto para essa política, o que num país com 33 milhões de pessoas passando fome deveria ser tratado como um escândalo. O fato é que, seguindo a velha tese neoliberal, aceitam que o Estado no máximo pode manter programas de ajuda financeira focalizadas, sem despender vultosos recursos em políticas estruturais de assistência e seguridade social para não “desequilibrar as contas”.

Estudos como o da Rede Pessan, formada por organizações dedicadas à garantia do direito à alimentação, mostram, no entanto, que a fome e a miséria no Brasil exigem, para além de programas como o Bolsa Família, forte reestruturação do SUAS, valorização do salário mínimo, elevação no valor dos benefícios ligados à seguridade social e uma política econômica que gere crescimento, emprego e renda. Sem um plano de retomada econômica e social liderado pelo Estado não resolvemos o problema da fome e da miséria no curto prazo. E quem tem fome tem pressa.

O que os analistas da austeridade têm a dizer sobre isso? Nada. Eles que formulam planos econômicos sempre tão “sofisticados”, qual projeto têm para a radical diminuição da fome no país? Nenhum. Ora, não é a fome o problema mais urgente a ser resolvido no Brasil? Para eles, na prática, não é. Sobre esses assuntos não sabem sair do raso e vago discurso: “inclusão depende de estabilidade”. Isso, a rigor, não diz nada. Qual estabilidade? A que não permite ao Estado sequer garantir recursos permanentes para transferir uma renda ainda abaixo do valor da cesta básica a pessoas em situação de miséria? Somente por isso deveriam ter suas teses desmoralizadas no debate público.

O tal “mercado financeiro” que mostra irritação com as críticas de Lula é o mesmo que estava otimista com o Brasil após a eleição de Bolsonaro, que não perde confiança no país por conta do orçamento secreto ou quando há cortes imensos nos recursos da educação, ou ainda quando o número de famintos pelas ruas quase dobra em 2 anos. É o mercado cujas ações subiram na Bolsa no final do primeiro turno, após o bom desempenho de um candidato protofascista à presidência. A tese da austeridade é o plano desse mercado, cujos interesses estão totalmente alheios às mais profundas necessidades da sociedade brasileira.

Nós, enquanto país, não podemos ficar, como querem os propagandistas da austeridade, submetidos a um setor tão indiferente aos principais dilemas da nossa sociedade. Defender a democracia passa irremediavelmente por reafirmar, frente a esse mercado e seus apologistas, a vontade da soberania popular, a defesa da dignidade humana e o desenvolvimento do país.

Desmontar tudo isso não é tarefa fácil, mas o primeiro passo é evidenciar o atraso, a imoralidade e a irresponsabilidade da ortodoxia econômica brasileira. Nada como a fala pública de uma liderança do tamanho de Lula para ajudar nisso.

Os defensores da austeridade estão nus. Já é um bom começo.

Ilustração: Outras Palavras

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