Os genocidas 2.0 e os velhos genocidas de sempre. Por Fausto Salvadori

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Dia desses, numa reunião de pauta com meus companheiros da Ponte, vi que estava confundindo as histórias trazidas pelos repórteres e perguntei: “De qual caso de nazismo a gente está falando mesmo?”. Em seguida, parei. Por um instante, fiquei ouvindo o eco do que havia acabado de dizer repercutindo dentro da minha cabeça. E me dei conta: “Não acredito que acabei de dizer isso. É tanta história de nazismo não sei mais qual é qual”. A gente riu, mais pelo nervoso do que pela graça.

Quase dá saudade do tempo em que “nazista” era só uma apelação retórica de que as pessoas lançavam mão em bate-bocas na internet, e ações nazistas de verdade eram tão raras que chamavam muito a atenção. Eu tenho idade para lembrar, por exemplo, de como foi marcante quando, em 1992, um grupo de neonazistas pichou suásticas e “morte aos nordestinos” no Centro de Tradições Nordestinas, em São Paulo. Não se falou de outra coisa naqueles dias e, vinte anos depois, ainda tinha gente se lembrando do episódio como algo de um horror único. Quase dá saudade desse tempo. Porque agora não se passa uma semana em que a gente não seja bombardeado por casos de pessoas fazendo uso de imagens e gestos nazistas em tudo quanto é lugar, de escolas (como a Ponte denunciou) a manifestações golpistas.

Uma triste novidade da época que nos coube viver é a ascensão de uma ideia de supremacia branca, com uma força que nunca teve antes no Brasil, como vem sendo apontado por estudiosos como Sueli Carneiro e Silvio de Almeida. A chegada ao poder de Jair Bolsonaro deu legitimidade a uma extrema-direita que se vale de um racismo explícito e de um projeto genocida que se expõe com clareza, medindo negros em arrobas e prometendo nunca mais conceder terras a indígenas. A derrota do bolsonarismo nas eleições, infelizmente, não vai fazer com que toda essa torrente de ódio desapareça de uma hora para outra, algo que fica claro quando a gente olha para os exércitos de zumbis de verde e amarelo fechando rodovias e rezando diante de quartéis, com o apoio de militares e policiais.

Vamos ter muito trabalho para enfrentar todos os males que escaparam dessa Caixa de Pandora. Para começar, é preciso que todos os setores progressistas, estejam onde estiverem, nos movimentos sociais, no poder público, no jornalismo, nas escolas, façam sua parte para evitar a normalização e aceitação social da extrema-direita. É preciso chamar as coisas pelos seus nomes, constranger, envergonhar quem compactua com nazismo, racismo, genocídio e golpismo. E é preciso garantir que sejam responsabilizados, em todas as esferas possíveis, pelas suas ações.

Além disso, a gente não pode esquecer de olhar para a vasta tradição de genocídio envergonhado que o Brasil mantém desde 1500. É uma tradição em que o racismo não se exibe com suásticas nem fala abertamente em extermínio, como faz a extrema-direita surgida na última década. Ao contrário, é um racismo que no discurso se mostra conciliador, até mesmo antirracista, mas que adota práticas quase tão desvastadoras quanto as do nazismo que hoje ousa dizer seu nome.

A tradição do genocídio envergonhado, do racismo limpinho, da supremacia simpática, é daquelas que representa o Brasil mais do que samba e futebol. A colonização portuguesa, por exemplo, sempre repudiou a escravidão dos povos indígenas, considerada ilegal na imensa maioria dos casos. Essa visão respeitosa dos colonizadores não impediu, contudo, que vários deles escravizassem milhares de indígenas e inclusive mencionassem a posse deles em seus testamentos, nos quais reconheciam que aquelas pessoas eram “livres pelas leis do Reino”, mas que permaneciam cativos “pelo uso e costume da terra”, chegando a dizer que os escravos, afinal, eram “tratados como filhos” (como descreve John Manuel Monteiro em “Negros da Terra”, relançado há pouco pela Companhia das Letras). A escravidão africana, embora prevista nas leis, também teve sua dose generosa de hipocrisia, quando o governo brasileiro aboliu oficialmente o tráfico negreiro, em 1831, mas fez vista grossa para os traficantes que continuaram a trabalhar e lucrar com a venda de gente, chegando ao ponto de importar 740 mil escravizados que, “pela lei, não poderiam ter sido sequestradas e trazidas pra cá, e, uma vez que foram trazidas, deveriam ter sido imediatamente colocadas em liberdade”, nas palavras do Projeto Querino.

O problema com o genocídio envergonhado é que, por não se mostrar tão claramente como a extrema-direita, pode se fazer presente em diferentes áreas da política, inclusive no que se chama de esquerda. Tem sido essa, por exemplo, a política de segurança da maioria dos governadores petistas. Quando a Polícia Militar matou 12 jovens negros na chacina do Cabula, em Salvador, em 2015, o governador Rui Costa elogiou a ação comparando-a um gol, quase como se PMs matadores fossem os Richarlisons da corporação. E não vamos esquecer que nosso vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, foi o cara que acabou com as (poucas) iniciativas dos governos tucanos de combate à violência de Estado e tirou de vez as focinheiras dos policiais, permitindo que praticassem alguns dos piores massacres da história do Brasil, como os Crimes de Maio de 2006, em que o Estado de São Paulo matou mais, em dez dias, do que o número de mortos e desaparecidos políticos da ditadura militar no país todo em 21 anos.

Tudo isso mostra como a gente tem trabalho pela frente. Temos que lidar o velho mal, na forma dos genocidas limpinhos, que falam manso e repudiam o racismo da boca para fora. E temos os novos males, na forma desses genocidas 2.0 que têm orgulho de defender morte e tortura.

Não vai ser fácil lidar com tudo de ruim que vem escapando da Caixa de Pandora brasileira, mas podemos contar com as asas de arco-íris da esperança, que, ensina o mito, está bem ali, no fundo da mesma caixa.

Esperança que não é uma força mágica ou um sentimento etéreo, mas uma disciplina, que precisa ser forjada na luta política, como disse recentemente Angela Davis a Maju Coutinho, ecoando a abolicionista Mariame Kaba: “A esperança não é simplesmente algo que podemos pegar ou largar. É algo que temos que gerar. E graças às lutas negras nas Américas, em todas as Américas, nos últimos 400 anos — em um contexto em que havia a pior forma de repressão e violência racista — a esperança foi gerada, regenerada e recriada”.

Fausto Salvadori
diretor de redação

 

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