Comissão Indígena da Verdade é proposta por lideranças guarani do Paraná em carta a Lula

No documento, Lula é chamado de Nhanderamoi” (“nosso avô”, “nosso sábio”, na língua Guarani)

Isadora Stentzler, Brasil de Fato

Lideranças guarani da Comissão Guarani da Verdade, da Comissão Tape Rendy Avaete Aty e Comissão Guarani Yvy Rupa, da região Oeste do estado do Paraná, elaboraram uma carta para o governo de transição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em que pedem reparação pelas graves violações registradas contra os indígenas ao longo de décadas na região.

No documento de duas páginas, assinado por 27 lideranças, eles denunciam a Itaipu, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a Fundação Nacional do Índio (Funai) como os principais responsáveis pelos impactos materiais e imateriais que afetam sua cultura e pedem que seja criada uma Comissão Indígena da Verdade para investigação desses crimes. O documento foi escrito no fim de semana dos dias 26 e 27 de novembro.

De acordo com o cacique Lino Cesar Cunumi Pereira, da tekoha Tape Jere Guarani, de Santa Helena, que integra a Comissão Yvyrupa e o Grupo de Trabalho (GT) dos Povos Originários do governo de transição, a carta deve ser entregue entre quarta (30) e quinta-feira (01), em Brasília.

“Esses últimos quatro anos passamos no sufoco, com reintegração de posse, ameaça, perda de direitos. Mas estamos vivos e vamos continuar lutando. Estamos mais fortalecidos agora. A situação não está fácil para os povos indígenas. Nós acordamos para fortalecer a nossa luta”, afirmou Lino.

No documento, direcionado ao presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, a quem se referem como “Nhanderamoi” (“nosso avô”, “nosso sábio”, na língua Guarani), as lideranças retomam parte da história dos guarani na região e denunciam um cenário de alimentos escassos devido à falta de terras.

Na região vivem cerca de cinco mil guaranis em 24 comunidades. Dessas, no entanto, apenas três, duas no município de Diamante d’Oeste e uma em São Miguel do Iguaçu, são demarcadas.

“Grande parte de nossas famílias não tem casa para viver. Não temos terra para plantar, mesmo assim conservamos ainda muitas variedades de sementes de cereais e mudas de plantas que produzem alimentos e remédios”, frisam.

No caso da Itaipu Binacional, os Guarani lembram que os danos causados por ela foram em ambas as margens da represa, tanto no lado brasileiro, quanto no lado paraguaio, e que a reparação por esse dolo deve atingir as duas áreas.

Eles encerram a carta pedindo a restituição das terras, das linhas de crédito para produzir alimentos saudáveis e que, enquanto for necessário a entrega de cestas básicas, que o conteúdo das mesmas seja composto de alimentos que condizem com a dieta alimentar do povo guarani.

Confira a íntegra do documento:

Nhanderamoi Lula da Silva

Gostaríamos de levar nossas palavras até o senhor, mas não temos verba para nos deslocar até Brasília. Como sabemos que o Sr. não tem redes sociais e recebe cartas, decidimos escrever essas linhas.

Somos lideranças Guarani de diversos tekoha kuêra (aldeias) da Comissão Guarani da Verdade, na Comissão Tape Rendy Avaete Aty e Comissão Guarani Yvy Rupa, na região oeste do estado do Paraná, e estivemos reunidos nesse fim de semana para conversar sobre nossa situação e queremos conversar com o senhor sobre. Na nossa região estão presentes 24 comunidades mais de 5 mil pessoas, e somente 3 comunidades possuem terras demarcadas (minúsculas que não atendem a demanda das famílias). Grande parte de nossas famílias não tem casa para viver. Não temos terra para plantar, mesmo assim conservamos ainda muitas variedades de sementes de cereais e mudas de plantas que produzem alimentos e remédios.

Primeiro, queremos parabenizá-lo pela eleição. Ficamos muito felizes quando saiu o resultado das urnas que confirmou a sua eleição. Passamos quatro anos aflitos, porque o atual governo não quer saber de nosso povo, não tem políticas de atendimento e seu discurso é raivoso, e vai contra os princípios de nossa cultura.

Segundo, falar de nossa situação e das violações de direitos que sofremos ao longo de várias décadas, e esperamos pelas reparações e não repetições. Na nossa Comissão Guarani da Verdade ouvimos nossos velhos (Xamoi e Xaryi Kuêra) e vários de nós vivenciamos os momentos quando na década de 1970 o Incra roubou nossas terras para entregar aos invasores. Assim aconteceu no Ocoy/Jacutinga, quando ateavam fogo nas nossas casas, no Guarani Kue quando o Incra simplesmente pegou nossa terra demarcada e entregou aos colonos e, em vários outros lugares. Depois, no início da década de 1980 veio a Itaipu e alagou as nossas terras. Os últimos espaços que restavam na beira do rio Paraná viraram um imenso lago, nunca fomos reparados. A Funai ao invés de defender os nossos direitos atuou para defender as ações do Incra e da Itaipu. Mas, não foi só passado, no presente a Funai continua se omitindo e não cumprindo seu dever constitucional. Da Itaipu recebemos apenas migalhas que atende apenas três comunidades, e faz propaganda dizendo que nos atende, nunca recebemos royalties. Segue nos expulsando com ações de reintegração de posse, como fez nos anos 1970/1980.

É necessário que sejam feitas as devidas reparações, justas e completas, como as reparações de temas materiais (território, moradia, lavouras) e imateriais, como nossa memória, que querem apagar na região, como se fossemos estrangeiros;

Queremos lembrar também que a Itaipu atingiu nossos parentes que estão no Paraguai. Nosso povo é mais que binacional, é transnacional. Precisamos que as reparações que competem a Itaipu sejam para ambas as margens da represa – Brasil e Paraguai;

Ficamos muito satisfeitos ao ouvir o senhor falando e repetir incansavelmente do direito à alimentação, de se alimentar ao menos três vezes ao dia. Queremos agregar que precisamos de alimentos saudáveis, aquilo que chamamos de Tembiú Piro`y (comida fresca) e para isso queremos o direito de produzir nossa própria comida, mas para isso precisamos de terra. Nosso povo está sem terra e assim não conseguimos viver.

Que o conteúdo das cestas básicas ofertadas – enquanto nossa terra não estiver demarcada – seja discutido com nossas lideranças, porque precisamos de alimentos adequados ao nosso bem estar físico e espiritual.

Precisamos de linhas de crédito específicas para nossas comunidades. Temos nosso modo de produzir e nos relacionar com a terra e todo o meio ambiente, e as políticas públicas devem estar adequadas ao nosso modo e não nós temos que nos adequar as políticas públicas;

Por fim, Sr. presidente, nossa história é milenar e queremos seguir vivendo nosso modo de vida. Para isso precisamos do apoio do Estado, porque hoje não existe mais o mesmo ambiente que existia na época de nossos avós. Nas nossas pesquisas descobrimos que muita violência se abateu sobre nosso povo, especialmente no roubo das terras. Estamos desvelando as violências cometidas do passado e do presente. Queremos que o governo apoie a criação de uma Comissão Indígena da Verdade, nacionalmente, com presença de diferentes povos e que sejam apoiadas as comissões locais e regionais da verdade, como a nossa.

Portanto, vamos seguir nessa luta e contamos com seu apoio, até que nosso direito seja reparado.

Aguydjevete

Edição: Lia Bianchini

Imagem: Documento deve ser entregue ao governo de transição até quinta-feira (1) – Arquivo

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