Comitê de Saúde Idosa da Fiocruz elabora documento para a equipe de transição de Lula. Produção nacional de insumos básicos e fortalecimento da Estratégia de Saúde da Família, inclusive para evitar internações, são medidas essenciais
Dalia Romero em entrevista a Gabriel Brito, em Outra Saúde
Dentre as várias políticas públicas que foram negligenciadas ou abandonadas nos últimos anos, algumas recebem poucos holofotes midiáticos e por vezes são secundadas até por quem se propõe a defendê-las. A política de saúde da população idosa parece um dos casos, e retomar os compromissos éticos e constitucionais com esta parcela crescente da população brasileira é mais um dos desafios do governo Lula.
“Fizemos várias pesquisas, trabalhamos com a sociedade organizada, de pessoas cuidadoras, e a situação é grave. É urgente agir nisso”, explicou Dalia Romero, pesquisadora do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT), em entrevista ao Outra Saúde.
Dalia é uma das quatro signatárias de um documento elaborado pelo Comitê de Saúde Idosa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), entregue ao grupo de trabalho da saúde, que organiza a transição do governo federal. O documento detalha as dimensões das necessidades da população idosa em termos de políticas públicas. Segundo Dalia, mesmo a academia e o campo da saúde por vezes relegam tal parcela dos brasileiros em suas prioridades. Isso traz prejuízos em diversos âmbitos, do social ao econômico, e o Comitê destaca que a população idosa é alvo de múltiplos preconceitos, muitas vezes invisibilizados. É o chamado idadismo.
“É algo similar ao etarismo, ao preconceito com a pessoa idosa. Gerard Butler (psiquiatra que cunhou o termo) queria mostrar como esse acúmulo de discriminações ao longo da vida tende a fazer a pessoa idosa se isolar cada vez mais. É uma época onde ser homem, por exemplo, traz desvantagens, pois ele é associado à produtividade, muitas vezes está desempregado, tem a questão da masculinidade… Está associado aos valores que se dão aos seres humanos no capitalismo, mas também à organização social da comunidade, o modelo de sociedade”.
Dalia Romero ainda lembra que o Brasil é signatário do Plano Década do Envelhecimento Saudável 2021-2030, parte dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, a chamada Agenda 2030 da ONU. Dessa forma, a discussão também entra no campo dos investimentos e da retomada do papel do Estado na ativação da economia.
“Temos de falar da questão da nacionalização da produção de insumos básicos, da popularização do acesso à tecnologia, como por exemplo matéria-prima para fraldas geriátricas, coisas como produção de colheres para pessoas que têm mal de Parkinson e podem ter sua autonomia facilitada com maior acesso a tais materiais… Trata-se de incorporar tecnologias que facilitam a autonomia para comer, para andar, e são coisas relacionadas ao complexo econômico industrial, que iriam reduzir custos cotidianos das famílias”, explicou.
O Comitê é enfático em afirmar que uma política concreta de cuidados da população idosa exige uma reorganização de dimensões do SUS que têm sido desmanteladas, em especial a Estratégia de Saúde da Família, pilar da atenção básica. E, ao contrário do que supõem os eternos arautos da austeridade em políticas sociais, trata-se de uma forma econômica de investir em saúde.
“Evitar internações de pessoas idosas por condições sensíveis à atenção primária, como uma diabete, uma pneumonia, e tratar isso dentro de casa, no ambiente domiciliar, com uma estratégia de saúde familiar adequada, também reduz gastos. Não apenas vai melhorar a condição de vida da população idosa e evitar todo o drama que significa uma internação, mas também reduz custos para a sociedade”.
Leia a entrevista completa com Dalia Romero.
Em linhas gerais, quais as propostas para a saúde elaboradas pelo Comitê de Saúde da Pessoa Idosa da Fiocruz?
O documento explica o acelerado envelhecimento populacional brasileiro, o mais acelerado do mundo, pois o país tem hoje 32 milhões de pessoas idosas num universo de 215 milhões de habitantes e tudo indica que em 2030 teremos mais pessoas idosas do que crianças e jovens até catorze anos.
É um dado que chama muito atenção e também chama atenção a ausência dos idosos das propostas que visam melhorar as condições de vida da população brasileira, inclusive na academia. Nas próprias discussões em órgãos como a Abrasco sentimos que na pandemia a população idosa sofreu muito, não apenas estatisticamente. Foi um motor para fazermos um comitê durante a pandemia e chegar a este documento.
O direito ao envelhecimento com dignidade e saúde ilustra o nível da cidadania e civilidade de uma sociedade. Para averiguar o grau de cidadania de uma sociedade, devemos ver como ela se preocupa e age para dar dignidade a seus idosos, o quanto ela se preocupa e age em favor de um envelhecimento saudável e digno.
Em 2017, fizemos na Fiocruz um seminário com Maria Fernanda Lima da Costa e o ex-ministro José Gomes Temporão e já denunciávamos o grande retrocesso que o Brasil viveria com a redução da gestão participativa, afastamento de quadros técnicos da gestão pública, enfraquecimento da atenção primária e redução da seguridade social em relação à população idosa. Tudo isso antes da pandemia.
Para resumir nossa proposta, pedimos a formação de um comitê intersetorial de crise e emergência sanitária, que esteja voltado à proteção do direito à vida e à promoção de saúde da população idosa. Esse comitê intersetorial não pode ter apenas participação de pessoas da área clínica de saúde. No século 21, e isso se falava cinquenta anos atrás, a saúde da população idosa não é só algo a ser tratado como um problema de doença e acesso a medicamentos.
O comitê intersetorial deve ser interdisciplinar para que foque e responda rapidamente, por exemplo, a critérios de reforço vacinal, identificação de idosos em condição de cuidado domiciliar, formas de atuar rapidamente para reabilitação e em favor da saúde funcional das pessoas, evitar consequências diretas e indiretas da pandemia da covid-19, não só no sentido de dar condições de saúde estritamente, mas também nas condições sociais, econômicas, questões familiares.
O quão estratégico é para o país elaborar políticas públicas a este setor da população neste momento de forte crise social?
É urgente investir na política nacional de educação permanente em saúde, qualificar os trabalhadores do SUS em todos os níveis para atendimento das demandas da população idosa. Deve-se ter um grupo de trabalho para elaborar a política integrada de cuidados, pois integrar e cuidar vai do Ministério da Saúde à Secretaria da Mulher, ao ministério dos Direitos Humanos, da Previdência e Assistência Social, da Educação. Fizemos várias pesquisas, trabalhamos com a sociedade organizada, de pessoas cuidadoras, e a situação é grave. É urgente agir nisso.
Também devemos atrelar tais políticas à saúde mental. Notamos a ausência da pessoa idosa nas elaborações de políticas de saúde mental. É preciso incorporar essa especificidade. Temos o abuso do uso de medicamentos psiquiátricos para combater coisas como tristeza e solidão, que fazem parte da vida. Temos Alzheimer aparecendo em cada vez mais famílias. Precisamos falar de cuidados coletivos, que vão além do círculo familiar. Como diz a Constituição, é uma questão da família, do Estado e da sociedade.
As propostas aqui discutidas dependem até que ponto da execução de outras políticas públicas, a exemplo da econômica?
Outra proposta é a incorporação da especificidade e do trabalho de tecnologia do Complexo Econômico Industrial da Saúde. Sabemos que no século 21 a questão da saúde está muito vinculada ao grau de autonomia que nós temos para realizar nossas atividades cotidianas. Temos de falar da questão da nacionalização da produção de insumos básicos, da popularização do acesso à tecnologia, como por exemplo matéria-prima para fraldas geriátricas, coisas como produção de colheres para pessoas que têm mal de Parkinson e podem ter sua autonomia facilitada com maior acesso a tais materiais… Trata-se de incorporar tecnologias que facilitam a autonomia para comer, para andar, e são coisas relacionadas ao complexo econômico industrial, que iriam reduzir custos cotidianos das famílias.
Outro ponto muito importante é o monitoramento dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, a Agenda 2030 da ONU, no que se refere à pessoa idosa. Em 2020 o Brasil assinou o Plano Década do Envelhecimento Saudável e este plano tem algumas medidas específicas, quatro delas urgentes para o país melhorar quanto à saúde e oportunidade para a população idosa: combater o preconceito em relação à idade e ao envelhecimento; formar comunidades que promovam as capacidades das pessoas idosas; oferecer serviços de cuidados integrados e de atenção primária à saúde centrados na pessoa; cuidados de longo prazo O Brasil vai ter de prestar contas sobre este compromisso.
Enfim, elaborar política pública, fazer ações, monitorar condições de vida, incorporar especificidades da população de saúde mental em um contexto de crise social é importantíssimo. E nossa proposta visa também reduzir custos em saúde, pois está associada à prevenção.
Em um momento de forte a crise social essas medidas têm baixo custo e melhoram a expectativa de vida, reduzem desigualdades e, um ponto importantíssimo, reativam a participação social da pessoa idosa.
Por fim, o Conselho da Pessoa Idosa precisa ser reativado. A participação social em um momento de forte crise e desigualdade é fundamental para reativar nosso plano civilizatório. Sem ação específica para redução e melhoria da vida da pessoa idosa, avançar nesse aspecto civilizatório será impossível. Por isso a política pública em favor dos idosos é estratégica e indispensável.
Um dos pontos que vocês mencionam é o combate do “idadismo estrutural” no sistema de saúde? O que seria isso e como ele é promovido?
É um determinante da desigualdade. O Brasil tem um compromisso político internacional nesse sentido. Primeiro, deve reconhecer que existe idadismo. É menos conhecido e abordado apesar de sua grande relevância. A gente conhece machismo, racismo, homofobia, são importantíssimos. Mas o idadismo converge todo um acúmulo de desigualdades da vida, o abandono da sociedade, é um assunto urgente que precisa realmente ser promovido inclusive dentro do setor de saúde.
Na carta, explicamos um pouco o que é isso, algo similar ao etarismo, ao preconceito com a pessoa idosa. Gerard Butler (psiquiatra que cunhou o termo) queria mostrar como esse acúmulo de discriminações ao longo da vida tende a fazer a pessoa idosa se isolar cada vez mais. É uma época onde ser homem, por exemplo, traz desvantagens, pois ele é associado à produtividade, muitas vezes está desempregado, tem a questão da masculinidade… Está associado aos valores que se dão aos seres humanos no capitalismo, mas também à organização social da comunidade, o modelo de sociedade.
Temos falado disso na academia, para pessoas que trabalham em política pública, representantes governamentais, que parem de falar sobre idoso não poder trabalhar, que a reforma da previdência tem de ser feita considerando o aumento da expectativa de vida porque a pessoa idosa está virando uma “carga” para a sociedade. Já temos pesquisa e informações a mostrar como o trabalho de idosos é relevante para a renda dos domicílios.
Mas quando a gente fala de proposta nos referimos a ações imediatas para que se tenha noção adequada sobre o processo de envelhecimento. Será mais saudável para a juventude, até para a criança, compreender de forma mais positiva e realista do processo de envelhecimento. É fundamental que a atenção primária e todos os níveis de atendimento do Sistema Único de Saúde e também do setor privado aprendam a reconhecer o quanto se tem de preconceito no atendimento e no tratamento de pessoal idoso.
Na pandemia vimos um gerontocídio, às vezes silencioso, às vezes gritante, aqui no Brasil. São fundamentais ações e medidas rápidas para incluir a pessoa idosa como sujeito de direitos, em discussão de temas de saúde digital, atenção primária, participação popular no complexo industrial, intervenções educacionais para reduzir esse preconceito… Assim como o racismo estrutural, deve-se incorporar o idadismo em todos os níveis da formação de todos os profissionais de saúde, para que se reconheça e identifique o que o preconceito faz para a saúde, para a vida, para o desejo de viver.
Quando chegamos à idade, digamos, avançada, à fase idosa, também seguimos sujeitos de direitos. Por isso é fundamental a participação de tais pessoas na elaboração de política pública.
O movimento para mudar o discurso sobre idade, o envelhecimento, é fundamental, por isso fizemos uma proposta para a equipe de transição do governo.
Como realizar uma política de saúde satisfatória à população idosa com as atuais condições orçamentárias?
A questão orçamentária reforça a necessidade de realização de políticas de saúde para a população idosa. E não só para a população idosa diretamente, mas também para quem cuida da pessoa idosa. Oitenta por cento das pessoas idosas que precisam de cuidado o recebem por parte de algum familiar e esse familiar geralmente é uma mulher. Discutir políticas de pessoa idosa é discutir também a necessidade de apoio à mulher, principalmente mulheres que precisam de saúde mental, mesmo que cuidem com amor, dedicação. Ela precisa também ser inserida em, por exemplo, uma política de atenção primária e na Estratégia de Saúde da Família.
Precisamos falar sobre o apoio econômico a essa pessoa que se dedica ao cuidado. Isso também poderia ajudar a reduzir custos sociais indiretos. Não é apenas a população pobre. Também na população de classe média e níveis socioeconômicos altos há pessoas que param de trabalhar quando precisam cuidar de algum familiar. Isso tem um custo muito alto no orçamento do país.
Já fiz, orientei, publiquei vários trabalhos que mostram que evitar internações de pessoas idosas por condições sensíveis à atenção primária, como uma diabete, uma pneumonia, e tratar isso dentro de casa, no ambiente domiciliar, com uma estratégia de saúde familiar adequada, também reduz gastos. Não apenas vai melhorar a condição de vida da população idosa e evitar todo o drama que significa uma internação, mas também reduz custo para a sociedade.
Eu acho que a sociedade brasileira, a classe mídia, os mais favorecidos, todos precisamos entender que precisamos de uma atenção primária fortalecida para cuidado da pessoa idosa. Nós também temos pesquisas que mostram que 80% dos problemas de saúde com idosos podem ser tratados de forma domiciliar.
Combater o idadismo reduz gastos sociais. Tristeza, depressão, solidão, levam a um altíssimo e irracional uso de medicamentos, dependência de drogas psiquiátricas, coisas que têm alto custo social.
Em resumo, todas as medidas aqui colocadas significam um uso mais saudável do orçamento público.