Consequências do abandono de políticas contra a aids

No Brasil, a doença cresce entre negros e jovens, enquanto o governo corta orçamento e desmonta Departamento de ISTs. Produção de genéricos caiu. Novo relatório da ONU indica que as desigualdades são responsáveis pelo aumento de mortes nos últimos anos

Por Alessandra Monterastelli, em Outra Saúde

No último dia Mundial da Aids, 1º de dezembro, o Programa das Nações Unidas para a Aids (Unaids) lançou um novo relatório sobre os índices mundiais da doença. Segundo o documento, os resultados não são bons, e se as tendências reveladas forem mantidas o mundo não atingirá a meta de acabar com a aids como ameaça à saúde pública até 2030.

Em julho deste ano, a Unaids já havia alertado que a resposta global contra o HIV estava enfraquecida, com o aumento de mortes pela aids – doença causada pelo vírus quando a pessoa infectada não é diagnosticada e deixa de iniciar o tratamento. Agora, o novo relatório revela que o aumento da desigualdade em diferentes regiões está por trás da piora da situação mundialmente.

No Brasil, dados do Boletim Epidemiológico HIV/aids de 2021 mostraram que pessoas negras são as mais afetadas pelo vírus no país – enquanto entre os brancos, há melhora nos indicadores. Entre os casos notificados de 2010 a 2020, houve uma queda de 9,8% na entre pessoas brancas e aumento de 12,9% entre pessoas negras. Já os óbitos caíram 10,6% entre brancos, e saltaram 10,4% entre pessoas negras. Para Jamal Suleiman, infectologista do Emílio Ribas, em São Paulo, os dados eram esperados. Segundo ele, a situação de vulnerabilidade se assemelha a outras condições. O médico conta que, no serviço de atendimento do Emílio Ribas, no coração da maior cidade do país, há pelo menos um novo caso de aids todos os dias.

Segundo o relatório da Unaids, o governo de Jair Bolsonaro foi responsável pela retirada de R$407 milhões do programa de prevenção e controle da doença no Brasil. Veriano Terto explica que o corte afeta especialmente as campanhas e insumos de prevenção – como a compra de preservativos, por exemplo. “Primeiro, mostra a pouca importância dada à aids por esse governo. E em segundo lugar é desmobilizador”, afirma. A atual gestão também acabou com o Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais, inserindo-o em um setor mais amplo, de Doenças e Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Ambos os especialistas ouvidos pelo Outra Saúde lamentaram a decisão.

Para Terto, a mudança ignora a relevância social e política da aids, que se difere de outras condições. “A doença afeta diversas dimensões da vida. Existem as questões da sexualidade, do acesso a serviços de saúde, do sangue, por vezes do uso de drogas. Fora que é uma infecção que vem acompanhada de outras, como tuberculose, pneumonia, entre muitas outras”, explica.

Nas décadas de 1980 e 1990, com a epidemia de aids que atingiu especialmente homens homossexuais brancos, o Brasil desenvolveu uma política de prevenção e tratamento eficaz, com reconhecimento internacional. O primeiro aspecto bem sucedido da experiência foi a produção de medicamentos genéricos (de fórmulas registradas, mas não patenteadas), que garantiu maior acesso. “Um país de renda média, no chamado Sul Global, com um sistema de saúde universal e equitativo, conseguiu produzir e distribuir os medicamentos dentro desse sistema, garantindo uma queda de mortalidade muito acentuada na época”, explica Terto. O segundo aspecto foi o bom direcionamento das campanhas de conscientização e prevenção aos grupos mais vulneráveis.

Em 1996, passou a vigorar a Lei 9.279, que estabeleceu as patentes. A partir de então, o SUS passou a comprar medicamentos de laboratórios nacionais com licenciamentos ou da própria indústria farmacêutica. “Hoje, os medicamentos que podem ser produzidos como genéricos são mais antigos. Os novos chegam muito mais caros”, explica Terto. Um exemplo é o Cabotegravir, novo Profilaxia pré-Exposição (PreP) injetável, que apesar de ter sido testado clinicamente no Brasil, ainda não foi registrado na Anvisa e não há previsão para distribuição no SUS.

A falta de financiamento foi um dos motivos da diminuição das campanhas de prevenção contra a aids. E hoje, a doença está crescendo em jovens de 15 a 29 anos. O ano passado apresentou um aumento de 18,5% no número de casos, comparado a 2011.  Suleiman diz que, nesse cenário, não é relevante julgar as atividades sexuais dos jovens de forma moralista, mas sim entender a dinâmica das populações mais afetadas para que o ministério da Saúde possa criar campanhas de prevenção e cuidado mais eficazes. O infectologista cita um exemplo que presenciou na semana passada, de um jovem que não se identificava como gay ou bissexual, mas utilizava o OnlyFans – plataforma de comercialização de fotos e vídeos com teor sexual – e, em algumas situações, fazia sexo com alguns clientes. “Quando perguntei se ele transava com outros homens, ele disse que não”, contou Suleiman, “mudei a abordagem da pergunta, com uma linguagem mais pr

A dificuldade de aproximação com os grupos mais atingidos pela doença se soma a outros fatores, determinados pela desigualdade. No caso da população de pessoas transsexuais, muito vulneráveis à infecção pelo HIV e seu posterior desenvolvimento para a aids, está ligado a marginalização social, com a exclusão do mercado de trabalho formal – que muitas vezes leva à prostituição – e a falta de acesso a serviços de saúde – por discriminação, falta de informação ou dificuldade economica.

Garantir que crianças estejam na escola, combater a violência de gênero, apoiar organizações de mulheres e “combater a discriminação de relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo, profissionais do sexo e pessoas que usam drogas e investir em serviços liderados pela comunidade que permitam sua inclusão” foram algumas das ações concretas propostas por pela Unaids. A criação de políticas para garantir a equidade de acesso aos serviços de saúde e à medicina foi colocada como questão primordial para beneficiar grupos vulneráveis – e recolocar o mundo no caminho certo para atingir a meta da ONU até 2030.

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