As lágrimas de Lula e o riso de Bolsonaro

Àqueles a quem é negado o luto, em geral, se dirige também o riso de escárnio, a violência zombeteira que nega a humanidade dos humilhados e agredidos

Por André Rodrigues e Andrés Del Río, no A Terra é Redonda

O riso e o choro são expressões humanas repletas de conteúdo moral. O que é motivo de riso e o que é digno de luto e lágrimas são mais que produto do juízo ou das paixões, são assunto de vida e morte. Dos sentidos da vida e da morte. O riso é festa, mas pode ser instrumento de morte. Em todos os processos de extermínio, há quadros específicos do riso e do choro. Àqueles a quem é negado o luto, em geral, se dirige também o riso de escárnio, a violência zombeteira que nega a humanidade dos humilhados e agredidos. Nas memórias mais dolorosas, muitas vezes reside o riso debochado dos que olham de cima, dos que espoliam, ultrajam, violam, exploram, escravizam. O riso que é festa é sempre coletivo. O riso que violenta é narcísico ou bajulador. O violento é, salvo raras exceções caricatas, um risonho.

Em um sermão sobre as lágrimas de Heráclito e o riso de Demócrito, padre Antonio Vieira disse o seguinte: “Quem conhece verdadeiramente o mundo, precisamente há de chorar; e quem ri, ou não chora, não o conhece”. Ele argumenta, por isso, que tinha mais razão Heráclito por chorar, do que Demócrito por rir. O choro que é conhecimento do mundo ocorre pela dor compartilhada. As dores mais intensas não provocam lágrimas, quando estamos em completa solidão. Lágrimas secas. Mas se alguém – um amigo, um irmão, um amor, até um bicho (“Nada / é tão rude bastante / que nunca se apiede / e se furte a viver em nossa companhia”, escreveu Drummond), se compadece de nós, o choro desaba.

Os que choram por autocomiseração são narcisistas e raramente se furtam de gargalhar do primeiro que cruze seu caminho com dor maior ou menor que a sua. Vieira defende, ainda, que o riso de Demócrito era, na verdade, o mais desesperado choro, aquele que, de tão extremo, não se expressa pelas lágrimas, mas pelo riso constante. Considera, portanto, que há riso que é, na verdade, choro. Mas, acrescentamos, há também choro que é, na verdade, riso. Chorar de alegria é uma experiência corriqueira. Mas o choro que é riso, como tal, pode ser também gargalhada de escárnio.

Nas últimas semanas, vimos Lula e Bolsonaro chorarem em ocasiões públicas. Um chorou porque, como disse Vieira, “conhece verdadeiramente o mundo”. Choro sem imposturas e artifícios. O outro chorou porque despreza o mundo e quer dobrá-lo à sua vontade de tirano. Um choro de ódio, de frustração, de mal perdedor. Assim, o choro de um é pelas dores de muitos. O choro do outro é farsa obscena de desprezo por tudo que não seja ele próprio.

Lula chorou na cerimônia de sua diplomação como presidente eleito no Tribunal Superior Eleitoral. Chorou as mesmas lágrimas vinte anos depois. Os olhos, como também define Vieira, são as portas da alma. E há dores que têm residência fixa em partes da alma que nunca cicatrizam. Em 2002, quando foi diplomado presidente eleito pela primeira vez, Lula chorou ao afirmar que aquele era o seu primeiro diploma.

O diploma de presidente da República era, então, oferecido pela “ousadia” (para usar o termo que o próprio Lula empregou) democrática de um povo que elegeu aquele que havia sido duramente atacado e humilhado por não ter formação superior. Choro é gesto. O que voz e lágrimas expressavam ali não era rancor, revanchismo, mas o conhecimento do mundo e o reconhecimento de que aquela dor era a dor de muitos. Um choro de visibilização, de dignidade coletiva, de superação. Depois do primeiro diploma de Lula, milhões de jovens pobres, negras e negros, historicamente impedidos de acessarem a educação superior, puderam chorar as mesmas lágrimas ao receberem seus diplomas e lembrarem dos seus semelhantes, de seus ancestrais humilhados, violentados e escravizados. Ao lembrar daquele trecho de seu discurso de 2002, Lula chorou novamente, na diplomação de 2022. Um choro de vitória coletiva.

Durante sua campanha, vimos Lula chorar algumas vezes, principalmente, em ocasiões em que ele falava dos mais de 33 milhões de brasileiros que, sob o governo de Jair Bolsonaro, foram empurrados para a fome e a miséria. Lula conhece o mundo, conhece a humilhação e a fome. E a fome, nos termos de Carolina Maria de Jesus, foi sua professora. Houve uma gente elitista e pateta que se queixou das lágrimas de Lula acerca da fome, sob acusações de populismo (esta ideia política vazia).

Mas isso é só o lamento das oligarquias decadentes, como aquelas das quais Lima Barreto extraía personagens que ele punha a revirar túmulos e tomar classes de javanês. Houve, antes, choro coletivo, como na apresentação do livro “Cartas de um presidente na prisão”. Um rio de lágrimas que lavava a alma de todos, com sabor a felicidade e tristeza, de resistência coletiva. Quem resiste a tantas emoções? Essas lágrimas pareceram um abraço coletivo, uma catarse amorosa depois da injustiça pérfida.

Depois de mais de quarenta dias em reclusão e silêncio conspiratórios, Jair Bolsonaro foi visto às lágrimas em uma cerimônia militar. Ao ser cumprimentado pela esposa de um oficial das Forças Armadas, ele deixou correr algumas lágrimas. Das poucas vezes que apareceu em público desde quando perdeu a eleição, em 30 de outubro de 2022, Jair Bolsonaro ostentou sempre um semblante abatido, choroso. Todas essas aparições ocorreram em cerimônias militares, na moldura do golpismo verde oliva de sempre. A covardia de reduzir a República a um quartel. Pior, a ilegalidade dos quartéis que anseiam ser a República. Enfim, como tudo em Jair Bolsonaro, um choro de pura farsa. A encenação na qual um derrotado em eleições legítimas, que buscou sabotar a ordem democrática desde a primeira hora em que chegou ao poder, tenta emplacar o personagem do injustiçado por um sistema corrompido.

Os cumprimentos do casal militar no cerimonial desabotoou as tramas do jogo cênico no qual o vazio personagem encontrou os fios para fazer as lágrimas escorrerem pela máscara torpe. Os ferozes, quando vêm o poder lhes escapar por entre os dedos, emulam os gestos dos mansos. Vestem as peles dos cordeiros que mataram na véspera. A farsa é também escárnio porque não tem nenhuma preocupação com a verossimilhança. Jair Bolsonaro sempre foi um Antônio Salieri de cabotagem. O sujeito desumano que, em breve, será despejado do Planalto sempre zombou da dor alheia. O culto à tortura e aos torturadores são uma marca de sua desumanidade. Quando votou a favor do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff no plenário da Câmara dos Deputados, fez questão de exaltar a memória de Ustra, torturador nefasto que ele próprio definiu como “o terror de Dilma Rousseff”.

Não bastasse elogiar o torturador, ele o fez ao agredir a honra da mulher por ele torturada. Fez tudo com um largo sorriso no rosto, demonstrando sua pequenez. Assim são os violentos. Diante das quase 700 mil mortes pela pandemia de coronavírus, mortes que ele mesmo empregou esforços em promover, e pelas quais precisa responder nos bancos dos tribunais, ele não derramou uma lágrima. Um sádico. Às suas vítimas e às vítimas da pandemia, ele dedicou sempre o riso de escárnio e o desaforo agressivo, como quando mandou interlocutores comprarem vacinas “na casa da sua mãe”, ou quando imitou pessoas os doentes de COVID-19 sufocando.

O choro de Jair Bolsonaro na cerimônia militar não é sequer de autocomiseração, defeito dos de baixo caráter. É a farsa golpista dos desalmados. É leite podre servido quente aos bajuladores. É uma gargalhada de escárnio que tenta agredir mais uma vez os que sofreram sob seus atos de brutalidade e desumanidade. Tenta nos agredir, mas falha miseravelmente. Porque nós o derrotamos. E nós riremos por último, porque, daqui para frente, será como nos versos de Chico Buarque: “Você vai pagar e é dobrado / Cada lágrima rolada nesse meu penar”.

*André Rodrigues é professor de ciência política na Universidade Federal Fluminense (UFF).

*Andrés Del Río é professor de ciência política na Universidade Federal Fluminense (UFF).

Reprodução da obra “Bolsonaro”, do alemão Frank Hoppmann, publicado originalmente no jornal Paradox, de Israel, e um dos vencedores do concurso internacional de caricaturas, cartum editorial e desenhos de humor da World Press Cartoon (WPC)

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