Com Nísia Trindade enfim nomeada, abre-se espaço para novo momento de reconstrução do SUS – essa é a avaliação de sanitaristas, entidades e profissionais da saúde. A primeira mulher a ocupar o cargo tem a “tenacidade de unir ciência, gestão e cuidado”
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Lula encerrou a semana que antecedeu o Natal com 14 nomeações aos ministérios que comporão seu governo a partir de janeiro. Em meio à euforia e esperança que embalam o movimento político que o elegeu, causava tensão a nomeação para a Saúde. Mas o novo presidente anunciou para a pasta Nísia Trindade de Lima, presidente da Fiocruz, e confirmou uma importante vitória do movimento sanitarista e “SUSista” brasileiro.
“A indicação de Nísia Trindade como ministra da Saúde tem um especial significado neste momento, pois encerra um período obscurantista no governo federal, em que a ciência foi negada, e passa a operar uma agenda positiva de valorização do conhecimento científico, para respaldar as ações de proteção da saúde e defesa da vida. É especialmente importante ser a primeira mulher a ocupar o cargo, aumentando a representatividade das mulheres na definição da política de saúde no país”, comentou ao Outra Saúde Tulio Batista Franco, diretor do Instituto de Saúde Coletiva da UFF e integrante da Frente pela Vida.
A nomeação de alguém deste perfil parecia líquida e certa. Até candidaturas à presidência de outros espectros políticos e ideológicos fizeram discursos em favor da defesa e expansão do SUS. No entanto, ao perceber a diminuição de seu espaço de manobra, Arthur Lira, sabe-se lá até que ponto plantando notícias pela mídia, passou a se movimentar para levar pasta da Saúde. Seu lado não representava “apenas” os velhos interesses fisiológicos, mas também setores que blindaram um governo de atuação criminosa na área. Com a manutenção de generosas emendas na mão dos deputados, a chantagem refluiu e Lula enfim pode mostrar ao Brasil o perfil de seu governo.
“O Cebes aplaude e saúda a indicação da Nísia Trindade como ministra da Saúde e tem a certeza de que o Brasil vai retomar a valorização da ciência e de um SUS 100% público”, comemorou o Centro de Estudos Brasileiros de Saúde (Cebes). “A indicação da ministra da Saúde do novo governo renova a esperança do povo brasileiro no fortalecimento do SUS”, afirmou Fernando Pigatto, presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), órgão oficial de Estado.
Militantes e entidades conectadas à defesa do SUS são unânimes na aprovação de Nísia. Em nota, a Frente Pela Vida afirmou que “a indicação de Nísia Trindade se alinha às nossas lutas e valores. Saudamos a primeira mulher ministra da Saúde, conhecemos sua competência ética, científica e política! Uma profissional à altura dos desafios do momento, imprescindíveis para a criação de um país mais justo e equitativo. A capacidade técnica de Nísia e sua imensa vocação de negociação política serão muito relevantes no difícil momento atual, quando o cenário apontado é de terra arrasada”.
Curiosamente, a Rede de Médicos e Médicas Populares saudou sua nomeação, inclusive pelo fato de a sanitarista não ser médica. Talvez em recado direto à postura absurda – e também criminosa – do CFM hegemonizado pelo bolsonarismo e alguns profissionais que não tiveram vergonha em vender farsas no combate à covid-19, como a cloroquina.
“A indicação Nísia Trindade reforça o compromisso do novo governo com o SUS e a virtude de não ter cedido às chantagens. Pesquisadora na área da saúde é autora de diversos artigos e livros. Em seus mandatos à frente da Fiocruz Nísia firmou diversas parcerias internacionais e a instituição atuou fortemente no combate à pandemia, produzindo a vacina contra a covid-19, Oxford/ AstraZeneca, que contou com transferência de tecnologia para produção”, postaram os Médicos Populares em seu Instagram.
A Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) engrossou os elogios à sua atuação na Fundação. “Na liderança da Fiocruz durante os períodos mais tortuosos de uma pandemia de covid-19 que ainda não acabou, Nísia teve a tenacidade de unir ciência, gestão e cuidado ao liderar um grandioso número de pesquisadores e funcionários, das mais diferentes áreas, na produção de uma pronta e rápida resposta ao Sars-CoV-2, tanto na aquisição de tecnologia junto à Universidade de Oxford para a produção nacional da vacina anti-covid-19, na abertura de unidades de saúde e treinamento de profissionais no país inteiro para o manejo e cuidado das pessoas acometidas com a doença, como na produção de conhecimento técnico, científico e humano, que reafirmou o papel do SUS como o principal patrimônio público brasileiro”.
Num dia marcado por nomeações de pessoas comprometidas com o bem-estar e a igualdade social, a exemplo de Anielle Franco, Silvio Almeida, Esther Dweck e Luciana Santos (que falou em reajustar bolsas para a pesquisa científica), não há como evitar certa euforia. Foi, de fato, um dia de vitória para os defensores do SUS e da democracia à luz da Carta de 1988. Até o diretor da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, parabenizou Nísia em seu twitter.
Agora, começa a fileira de desafios. “Nísia tem a oportunidade de transformar o que é um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo, o SUS, em também um dos melhores”, analisou Tulio Batista Franco. “A atual precariedade da política de saúde e frágil gestão do SUS pode ser vista como oportunidade para uma retomada com mudanças significativas na gestão e inovações no modelo produtivo da saúde. Nessa perspectiva, é importante investir em serviços de referência territorial, implementar inovações como os cuidados intermediários muito incipientes no Brasil, que têm baixo custo e alto impacto no cuidado. Isto tornaria muito mais robusta a Rede Básica, consolidando um vínculo e referência segura da população usuária do SUS.”
Isso porque ter o maior orçamento de todos os ministérios e a PEC de transição permitir a recomposição mínima das necessidades da Saúde não são garantias de facilidade na condução das tarefas de Nísia. Valorizar profissionais superexigidos no período recente e que seguirão sob fortes jornadas de trabalho e potencializar o setor de saúde para além da prestação de serviço, a exemplo do que soube fazer na Fiocruz, serão questões essenciais.
“É necessário transformar o complexo econômico da Saúde em poderoso dispositivo de desenvolvimento, capaz de reverter em ganhos de qualidade dos serviços de saúde, e resolver o provimento de médicos e outros profissionais à rede de saúde em todo o país, inclusive estabelecendo um Plano de Carreiras que garanta o vínculo, estabilidade e perspectiva profissional no SUS. É prioridade retomar o financiamento da saúde nos padrões internacionais de 6% do PIB, associado à discussão do modelo de assistência, que garanta a qualificação do gasto, e que ele seja convertido em melhoria real na eficácia e eficiência da rede de saúde”, ponderou Túlio.
É certo que tais tarefas são transversais a toda a equipe de governo e devem conectar diferentes ministros em favor de um projeto de reconstrução do país, de maneira palpável a uma população que viu a vida se precarizar.
“Mas, para as mudanças necessárias, é preciso formar redes de apoio às políticas de saúde, que começam pela valorização do controle social, através dos Conselhos de Saúde e Conferências, bem como será importante consolidar uma base social e popular que tenha protagonismo na definição e implementação de políticas. É fundamental para a garantia da governabilidade e sucesso da nova gestão do Ministério da Saúde”, finaliza Túlio.
A hora chegou.
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No início da pandemia, o Brasil era o país da América Latina com melhores condições para enfrentar o coronavírus, muito graças à estrutura do Sistema Nacional de Saúde (SUS), mas o governo conseguiu boicotar deliberadamente o sistema de saúde, como demonstrou um estudo feito pela Universidade de Michigan e pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Por Matheus Miguel (@poesianasestrelas) / Design Ativista / 2020