Do Prouni ao Ministério da Justiça: Quem é Sheila de Carvalho

A advogada e ativista do movimento negro será figura central na pasta comandada por Flávio Dino

Por Igor Carvalho, no Brasil de Fato

No dia 16 de dezembro, quando foi anunciada presidenta do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) e assessora especial do ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, Sheila de Carvalho confirmou a ascensão projetada com políticas públicas implementadas há mais de uma década no país.

Mulher, negra, criada na periferia de São Paulo por um pai maranhense e uma mãe goiana, Sheila de Carvalho estudou em escolas públicas e recorreu ao Programa Universidade Para Todos (Prouni) em 2008 para cursar Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie, uma das mais caras universidades de São Paulo.

Foi dentro da universidade que passou a compreender que a diferença de tratamento que recebia de alunos, professores e direção tinha um nome: racismo. Foi em aula, também, que se descobriu mulher negra.

“Meu professor (que era negro) me encarou e disse que eu era uma mulher negra. Na hora, eu respondi: ‘Não, eu sou morena’”, lembra Carvalho. “Nós temos um apagamento da nossa identidade tão forte. Eu sentia o racismo, enxergava a diferença de tratamento por parte de alunos, direção e professores, mas não conseguia dar um nome para o que eu vivia. Foi o Edvaldo Brito que me abriu os olhos para a questão racial”, conta.

Quinze anos depois, a advogada ajudou a fundar dois dos movimentos mais importantes na resistência ao presidente Jair Bolsonaro (PL) e suas políticas de morte, o Grupo Prerrogativas e a Coalizão Negra por Direitos. Nos tribunais e nas ruas, passou a chamar a atenção da opinião pública e da esquerda.

Agora, no Ministério da Justiça, trabalhará na mediação da relação de Flávio Dino com os movimentos sociais e será a responsável por criar parâmetros para uma relação acolhedora do Brasil com refugiados.

Ao Brasil de Fato, Sheila de Carvalho celebrou a diversidade no Ministério da Justiça e pediu trabalho e empenho para que a equidade de gênero e racial esteja, também, no segundo e terceiro escalões do governo federal.

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Você faz parte da Uneafro, Grupo Prerrogativas e a Coalizão Negra por Direitos. São movimentos que trabalharam muito nesses últimos quatro anos, na defesa de Lula, no caso do Prerrogativas, e no combate ao bolsonarismo, no caso da Coalizão. Você acha que é isso que deu visibilidade ao seu trabalho?

Sheila de Carvalho: Com certeza, tanto a disputa no campo da Justiça, contra o lawfare, a luta contra a Operação Lava Jato e a prisão ilegal do presidente Lula, quanto a fundação da Coalizão foram fundamentais mesmo. Em 2018, o Lula foi preso. Naquele dia em que ele vai para o Sindicato dos Metalúrgicos (6 de abril de 2018), nós vamos juntos. Então, é montada uma sala de reunião com vários juristas, uma reunião da ABJD (Associação Brasileira de  pela Democracia) e começa a pegar juristas que estão passando pelo corredor. Ali, conheço o Marco Aurélio Carvalho, que é uma das pessoas que estava na linha de frente da defesa do Lula, e é um advogado que mobilizou muita gente em favor do presidente. Começa o Prerrogativas, que no princípio era um grupo de Whatsapp, que eu só encarava como grupo de conversa mesmo. Mas em seguida, fechamos apoio ao acampamento Lula Livre, lá em Curitiba, e nos empenharmos mesmo na liberdade do Lula e contra diversas arbitrariedades.

Passou 2018 e eu começo a participar mais ativamente do Prerrogativas e, nesse meio tempo, por coincidência, em março de 2019, a Bianca Santana e o Douglas Belchior estavam puxando uma reunião de lideranças do movimento negro em Brasília e eu estava lá, porque sempre atuei como advocacy no Congresso Nacional. Naquela reunião, começou a ideia da Coalizão Negra por Direitos.

Como estava o clima com a chegada do Bolsonaro ao poder?

Já naquela semana fizemos uma reunião com o Rodrigo Maia, que era presidente da Câmara na época. Lembro que havia um clima negativo em Brasília, o Bolsonaro havia tomado posse tinha pouco tempo e a perspectiva era péssima, sabíamos que nossas vidas negras estariam em risco, éramos o alvo preferencial desse governo e isso se confirmou durante os quatro anos. Naquela reunião, havia uma apreensão, tínhamos lideranças de diversos movimentos ligados ao movimento negro, e começamos a conversar e chegamos à conclusão de que precisávamos sobreviver ao governo Bolsonaro. Isso ficou muito forte na minha cabeça. Havia esse consenso de que Bolsonaro trabalharia, como trabalhou, para exterminar a vida do povo preto e pobre. Ali, começo a ficar mais próxima da Bianca Santana e do Douglas Belchior e, então, passo a contribuir com a parte jurídica da Coalizão Negra por Direitos. E, olha, a Coalizão foi fundamental nesses quatro anos, não apenas pelo que fez na seara da Justiça, mas também nas ruas, voltamos às ruas para nos manifestar, quando a esquerda ainda preferia ficar em casa, durante a pandemia.

Quais pontos você destacaria desse período?

Eu destacaria a luta pela liberdade do Lula, porque era uma luta contra-majoritária. Por exemplo, prisão em segunda instância, que foi julgada no STF após o trabalho intenso de muitos advogados e advogadas, que incluía o Grupo Prerrogativas. Na Coalizão, fizemos um trabalho especial durante a pandemia, porque sabíamos que ia matar mais pretos. Sabíamos que tínhamos que ir para a rua contra o Bolsonaro, fizemos isso com todos os cuidados, mas precisávamos disputar a rua com a direita e fazer reverberar as denúncias do descaso com a pandemia.

Sheila, você chegou ao Ministério da Justiça em duas funções. O que espera da sua rotina na pasta?

Eu estou esperando uma rotina insana (risos). Olha, atuarei nas agendas dos direitos humanos, que estão relacionadas com o Ministério da Justiça, e o diálogo com os movimentos sociais. Então, a ideia do ministro é que eu possa articular por ele nessas pontes e fazer com que as entidades da sociedade civil participem do processo de formulação de políticas de Justiça.

Além disso, há a agenda de antirracismo, que é sempre uma dificuldade de trabalhar no sistema de Justiça. Agora, nós temos um cenário no Conare que vai demandar muita atenção, pois é uma área que foi esquecida durante os últimos seis anos e temos crises humanitárias no nosso país, há um enorme número de pessoas que estão esperando uma resposta de refúgio. Nós teremos a criação da Política Nacional de Imigrantes e Refugiados, a lei que foi aprovada pelo Congresso Nacional não teve a regulamentação. Para melhorarmos o nosso atendimento a refugiados, precisamos regulamentar e criar parâmetros para acolher essas pessoas.

Sobre haitianos e africanos, devemos esperar uma atuação mais firme sua para que eles sejam melhores acolhidos no país?

Eu quero que consigamos superar os comportamentos xenofóbicos e racistas que temos nos processos de acolhida de refúgio e imigração. Nós temos vários decretos bem racistas que foram aprovados por Bolsonaro, que tem cunho xenofóbico também. Isso é aplicado com maior peso em países negros. No nosso diagnóstico, mapeamos que há uma diferença muito grande na forma como refugiados de países negros são tratados em relação a refugiados de outros países.

Muito tem se falado da expectativa de paridade racial e de gênero no governo de Lula. No Ministério da Justiça isso tem acontecido. Como tem visto a formação do ministério de Lula?

A agenda da paridade de raça e gênero será um desafio. Ainda é uma disputa na nossa sociedade, ainda não temos essa luta superada, ainda falta muita representação nos espaços de poder. Há pessoas com mais sensibilidade para isso, como o ministro Flávio Dino. É preciso um compromisso, não sei se acontecerá agora, mas precisa haver um projeto para um prazo curto, para que tenhamos paridade não apenas no primeiro escalão, mas também no segundo e terceiro escalões. Essa é uma luta que ainda teremos que nos empenhar muito.

Edição: Glauco Faria

 

 

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