A mudança de ano, baseada no giro do Planeta Terra em torno do Sol, não deixa de ser uma convenção humana, um modo de nos situarmos e relacionarmos como seres humanos vivos no complexo movimento do sistema natural planetário. O calendário que adotamos é um produto cultural dominante, eurocêntrico, que nos foi imposto como universal, fruto da expansão conquistadora colonial da Europa, que deu origem ao capitalismo. Muitos outros existiram e ainda existem como referências para culturas milenares, mas não têm a mesma amplitude. De todo modo, criamos calendários e acabamos subordinados ao ritmo ditado por eles, pois são uma necessidade humana, uma espécie de bem comum compartilhado, na relação entre nós mesmos e com a natureza.
Na verdade, lembro esta questão só porque está subjacente ao modo como vamos compartindo o viver em coletividade, de algum modo sincronizados, com horários, dias, semanas, luas, meses e anos, até com horóscopos, que nos fazem pensar em influências naturais em movimento sobre as quais não temos controle real, simplesmente acontecem. Mas inventamos muitos modos de celebrar momentos de tal movimento, sendo um dos mais simbólicos a passagem de ano, um que acaba e um novo que começa. Tende a ser um dia e uma noite cheia de magnetismo contagiante, pois nos leva a avaliar o que aconteceu no que está acabando e, sobretudo, tentar pensar na energia da esperança que o novo a começar pode trazer.
É em tal quadro que gostaria de situar uma pequena reflexão sobre o nosso lugar, como Brasil, no Planeta em movimento. Mas movimento ecossocial, dos sistemas naturais intrinsecamente permeados pelas contradições sociais internas e geopolíticas de sociedades e nações desiguais, atualmente dominadas pelos grandes corporações econômicas e financeiras capitalistas globalizadas, voltadas exclusivamente aos seus interesses de acumulação, com impacto sobre o futuro imediato de toda humanidade e do próprio Planeta.
No primeiro dia do ano, dia 1º de janeiro de 2023, Lula será empossado como o novo presidente do Brasil, para um mandato de quatro anos. É um momento de dupla renovação da esperança, pelo ano que começa e pelo mandato que se inicia com promessas de verdadeira reconstrução da democracia ecossocial transformadora e inclusiva. Apesar de fundados temores de algum ato terrorista, esperamos que o dia seja marcado pela celebração cívica da esperança de um refazer coletivo de outro Brasil, para nós e para o mundo.
A primeira e fundamental coisa que se espera é que o Brasil deixe de ocupar uma posição de país pária nas relações geopolíticas globais e possa recuperar uma posição ativa e altiva. Lula tem legitimidade e reconhecimento para isto, como foi demonstrado durante a COP 27 no Egito e, também, o que sinaliza a presença da delegação de mandatários de governos estrangeiros confirmados para a sua posse, a maior em toda a história do Brasil independente. Mas legitimidade e reconhecimento, por mais importantes que possam ser, não bastam num mundo ameaçado pela catástrofe climática e com um sistema econômico gerador de desigualdades extremas, exclusões e destruições sistemáticas, com guerras e fronteiras muradas, não importa para onde a gente olhe. Será preciso recuperar a capacidade de análise e propostas de nossa diplomacia, de um lado, e muita ousadia e determinação do próprio Lula. Além disto, é forçoso reconhecer que quatro anos de mandado já serão muito se conseguirem apontar novos rumos e caminhos, começando a trilhá-los.
Temos prioridades múltiplas que precisam ser encaradas como nossa responsabilidade primeira nas relações internacionais. De cara, devemos reconhecer que nos cabe gerir um imenso território, com grandes biomas e biodiversidade, cuja destruição extrativista sem limites impacta o sistema climático planetário. Somos a maior população nacional e a maior economia da América Latina. Mas como todos os países da região, além de compartir uma herança de colonialismo e escravidão, desigualdades e exclusões sociais, miséria e fome, em meio a uma relativa abundância, somos regulados por regras impostas de livre mercado a serviço de grandes corporações econômicas e financeiras, dependemos da exportação de commodities produzidas pelo extrativismo agromineral e continuamos a ser dominados e limitados pelas relações geopolíticas globais, hoje em acirrada disputa pela hegemonia entre USA, em decadência, e a China, em ascensão.
Mas sempre existem possibilidades de promover alternativas virtuosas em meio a estas múltiplas contradições. Olhando a realidade política dos países da América do Sul, é fácil reconhecer que não estamos no mesmo momento do início do século XXI, quando se gestou uma onda de governos de centro esquerda dispostos a conjuntamente desbravar novos caminhos, para além do mercado e da globalização imposta. O FSM nascido na região esteve de algum modo implicado no nascimento de tal processo de busca de outro modo de ser e viver no mundo. A derrota do projeto ALCA, de interesse dos USA, deu margem para a proposta concertada entre governos para formar a UNASUL, algo de maior integração, convergência de objetivos e convivência entre povos, com a potência que sua diversidade história pode representar quando compartilhada entre todos.
Com o fim da onda “progressista” e dos vários retrocessos acontecidos desde então, assistimos hoje a sinais de ressurgimento de nova esperança, ainda não com a mesma potência. A responsabilidade do governo do Brasil sob a liderança de Lula é enorme para que este momento nos leve a criar novas bases e nova inserção num mundo difícil. Ouso afirmar que um caminho possível, que terá impacto mundial, é transformar a Amazônia numa questão urgente, vital e de outro futuro para praticamente todos os países da América do Sul, como um comum compartilhado a ser cuidado para o bem da própria região e do planeta.
O bioma amazônico se espalha pelo Brasil, Colômbia, Peru, Equador, Venezuela, Bolívia, Guiana, Guiana Francesa e Suriname. Mas o sistema ecológico que regula as chuvas, águas e secas com os “rios voadores”, alimentados com a evaporação da Floresta do Amazonas, é fundamental para os países amazônicos e também o Paraguai, o Uruguai e a Argentina. Não tenho dúvidas, que este é um desafio primordial para as cidadanias ativas de todos os países da América do Sul, pois são exatamente as vozes da diversidade de sujeitos coletivas que mais claramente construíram e continuam a levantar a agenda da integridade dos biomas da região como vital para nós mesmos e o mundo. É um projeto ecossocial transformador, de economia de cuidado, convivência e compartilhamento. Não poderá ser enquadrado como um projeto com as mazelas de economia do mercado, mesmo com selo de economia verde, como algo a continuar sendo colonizado e explorado. É, acima de tudo, de vida para povos originários e tradicionais, assim como para nós todas e todos, e para futuras gerações. Um projeto regional com esta intencionalidade poderá se tornar a impactante contribuição do Brasil e da América do Sul para enfrentar a urgente questão da mudança climática. É difícil, mas não impossível.
Outra questão vital em termos de uma contribuição do Brasil sob liderança do Lula poderá ser a revitalização e alargamento da proposta dos BRICS, mesmo levando em consideração as tensões geopolíticas que a disputa de hegemonia mundial está provocando. Trata-se de um caminho com alguns acúmulos virtuosos, como o Banco dos BRICS. A seu modo, é algo desafiante, mas mereceu o descaso do governo de vocação autoritária do Brasil, que está acabando. No período dos dois governos anteriores de Lula e com continuidade no governo Dilma, além dos BRICS, abriu-se a agenda esperançosa das relações Sul-Sul, especialmente com os países da África, a quem devemos muito como Brasil, com a maior população negra fora do continente africano. Esta reconstrução tem implícita uma gigante tarefa democrática transformadora no próprio Brasil, enfrentando o racismo estrutural que carregamos na conformação da injusta e desigual sociedade que temos.
É claro que a nossa inserção no mundo não se limita às questões que levantei aqui. São muitas as agendas em que o Brasil pode ser ativo e altivo nas relações internacionais e geopolíticas, obtendo reconhecimento e legitimidade, tendo influência. Mas, volto a insistir, sem potentes iniciativas regionais e mundiais que não combinem com o enfrentamento de enormes desafios internos em busca de transformações democráticas ecossociais fundamentais, nossa inserção no mundo será pouco relevante. De qualquer forma, somos nós mesmos, cidadanias ativas a partir de nossos territórios que poderemos dar legitimidade para uma renovada inserção do Brasil no mundo sob liderança do Lula. “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.
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Comicio de Lula em Sergipe 18 de junho de 2022. Foto de Ricardo Stuckert.