As nações indígenas no Brasil que renasce. Por José Ribamar Bessa Freire

No TaquiPraTi

O Palácio da Alvorada ficou entregue às baratas: o mofo deu nas paredes, com infiltrações, vidros quebrados, sofás rasgados, mesa despedaçada, carpetes rotos. E muito lixo: farelo de biscoito no chão, leite derramado e outras imundices deixadas por seu ocupante, que fugiu para Miami, valhacouto de gusanos e vermes. Essas imagens retratadas pela jornalista Natuza Nery são apenas uma pequena amostra do dano causado ao patrimônio público nacional nos últimos quatro anos. É o símbolo do país destruído.

No entanto, a subida da rampa por Lula e Janja ao lado de representantes dos deserdados, entre eles o cacique Raoni, é também emblemática do novo Brasil que agora renasce.  O poder político levou mais de cinco séculos para reconhecer, enfim, o valor e o protagonismo dos povos originários, que tiveram as terras usurpadas, as línguas decepadas, as culturas discriminadas.

A criação do Ministério dos Povos Indígenas, a nomeação de Sônia Guajajara para comandá-lo e de Eloy Terena como seu secretário executivo, a escolha de Joênia Wapichana para presidir a Funai e de Ricardo Weibe Tapeba para a Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai) nos convidam a historicizar o debate sobre a autodeterminação das nações indígenas, tema que desagrada profundamente os militares.

Confesso o prazer inenarrável de incomodar generais, especialmente aqueles com salários astronômicos, empanturrados de picanha, leite condensado, cloroquina, viagra e que, por coincidência são os mesmos que se opõem à demarcação das terras indígenas, sob a infundada alegação de que isso ameaça a soberania nacional. Por isso, retomo aqui a polêmica sobre as nacionalidades indígenas que, no Amazonas, promovemos a partir de 1979.

Questão nacional

Em dezembro daquele ano, dois amazonenses – Aloysio Nogueira e este locutor que vos fala – foram a São Bernardo (SP) discutir a fundação do PT. Deixamos com Lula, então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, exemplares do Porantim, jornal “em defesa da causa indígena”, editado em Manaus pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI)Queríamos que o partido que estava nascendo assumisse as lutas indígenas.

O exemplar nº 10 de agosto de 1979 traz entrevista com o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, anunciando no título que “A Luta dos Operários é a Luta dos índios”. Outra matéria noticiava a aprovação pelo grupo de Antropologia da Universidade do Amazonas do relatório enviado à Comissão Interministerial criada para definir a política florestal, cujo representante era o professor Frederico Arruda. O documento recomendava:

– Sugerimos o “tombamento” da floresta como patrimônio do povo brasileiro, a imediata retirada de todas as empresas que a devastam e o engavetamento de qualquer projeto novo. A floresta amazônica deve ser considerada intocável, enquanto as nações indígenas não forem reconhecidas como tais, com a consequente garantia de inviolabilidade do seu território e do direito à soberania e à autodeterminação.

Essa provocação foi retomada nas “Perguntas sobre a Questão Nacional Hoje” em artigo que escrevi no nº 14 do Porantim, também entregue a Lula naquela ocasião, com indagações, umas óbvias e outras “desóbvias” como quer minha neta. Em que medida podemos falar de nações indígenas no Brasil? Temos tantas nações quantos línguas indígenas? O critério demográfico é indispensável para definir uma nação? Qual a situação dos Juma reduzidos a 9 pessoas depois do massacre de 1964?

Uma questão menor

Evidentemente na época, Lula não deve ter tido tempo de ler o jornal, que folheou em nossa presença. De qualquer forma, no encontro estadual do PT-AM discutimos e aprovamos proposta escrita a quatro mãos por mim e por Márcio Souza intitulada “O PT e a questão indígena”, que no ano seguinte, por iniciativa de Felipe Lindoso, foi publicado pela editora Marco Zero com o título “Os índios vão à luta”, ao lado de textos de Mário Juruna, Megaron e Marcos Terena.

Levamos a proposta do PT-Am para dois encontros nacionais em São Paulo: um no Colégio Sion, em fevereiro de 1980, quando assinamos o manifesto. O outro, em junho, no Instituto Sedes Sapientiae, quando votamos programa, estatuto e plano de ação do partido, que acabou incorporando, no seu último item, dois pontos cruciais: demarcação dos territórios e autodeterminação dos povos indígenas. Faltava definir o que entendíamos por autodeterminação.

No encontro de junho, quando me deram a palavra por três minutos concedidos para cada intervenção, expliquei que era tempo insuficiente para expor questão tão complexa.  Os integrantes da mesa cochicharam e abriram uma exceção:

– Excepcionalmente, o companheiro do Amazonas tem seis minutos para sua intervenção.

Falei oito minutos. Quando terminei, alguém sentado a meu lado, bem intencionado, mas mal informado, falou:

– Companheiro, se perdermos tempo com essas questões menores, não vamos avançar.

Essa era uma questão menor para muitos brasileiros. Não convenci quase ninguém, comprovando minha “extraordinária capacidade argumentativa”. Mas o registro de tais lembranças permite reconstruir parte da trajetória do PT na relação com os povos indígenas.

Partidos políticos

No número de junho de 1980 do Porantim publicamos uma matéria sobre Os Partidos Políticos e a questão indígena. Entrevistamos os dirigentes locais do PDS, PMDB, PTB e PP, além de reproduzir trechos do “Informe dos núcleos do Amazonas à Comissão Nacional do PT sobre a questão indígena”, de 24 páginas, levado para o Instituto Sedes Sapientiae. 

– “O PT lutará por um estado brasileiro plurinacional que reconheça juridicamente as nações indígenas como nações”. Por sugestão de José Ibrahim da Comissão Nacional, esse ponto da tese do Amazonas não foi aprovado, nem rejeitado, já que se admitiu a necessidade de aprofundá-lo mais em outro momento.

De qualquer forma, os povos indígenas não faziam parte do programa dos partidos políticos. O senador biônico Raimundo Parente, presidente do PDS-Am – o partido da ditadura, reconheceu sua condição de latifundiário e disse que os interesses coletivos deviam prevalecer sobre os direitos dos indígenas. Confundiu os interesses de uma classe social específica com os do conjunto da população brasileira.

O vereador Fábio Lucena definiu alguns pontos do programa do PMDB e criticou a Funai, cujo presidente, general Ismarth de Oliveira, reconheceu no plenário da Câmara Municipal de Manaus, que a instituição que presidiu durante cinco anos não realizara qualquer levantamento da realidade indígena da Amazônia. Nos últimos dias de sua administração os Xavante acusaram de corrupção os militares que lá atuavam.

O ex-deputado Arlindo Porto, reorganizador no Amazonas do PTB de Ivete Vargas, condenou a “dizimação genocida de gigantescas nações indígenas”. E o coordenador do Partido Popular (PP), Dantas Brito, foi lacônico e não disse coisa-com-coisa.

Nação rubronegra

Muitos anos depois, em 2008, participei do programa Faixa Livre da Rádio Band, comandado pelo radialista Paulo Passarinho, num debate com o fotógrafo Milton Guran e o General Nery, que foi logo criticando o uso por mim do termo “nações indígenas”, porque, segundo ele, “podia dividir o Brasil em vários países”.

– General – eu disse – parece que há certa confusão com as definições de “estado” e de “nação”. A Bélgica e a Suíça são países que abrigam várias nações, com várias línguas reconhecidas e nem por isso esses estados plurinacionais capitalistas tiveram sua soberania ameaçada.

O general, que era inteligente, retrucou que sabia muito bem a diferença entre Estado e Nação. Ele tinha um ponto a seu favor que merecia nossa simpatia: havia sido esculhambado por Olavo de Carvalho, que seria endeusado depois como o guru de Bolsonaro. Argumentei, então, que na documentação colonial os portugueses se referiam às “tribos” como “nações” e que o termo era usado no sentido de “nações camponesas”, de acordo com a definição do teórico holandês Anton Pannekoek. Designava uma coletividade. Citei a brincadeira de crianças em Portugal, que cantavam:

– “Aranha, aranhão, sapo, sapão, bicho de toda nação”

Mas o general insistia que a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, tema do debate radiofônico, “poderia decepar um pedaço do território brasileiro” se “os índios fossem considerados como nações”. Objetei que me parecia disparatado o medo de uma palavra e indaguei: em que medida a nação rubro-negra ameaçava à integridade do Brasil com seus milhões de torcedores?

– Só quem não confia nas Forças Armadas tem medo de que indígenas, que amam o Brasil, possam ameaçar a soberania nacional com arcos e flechas contra canhões, aviões, submarinos e armas pesadas. Confio nas Forças Armadas, general – eu disse. Disse sim. Disse mesmo, citando Rondon, corajoso, sensível e inteligente, defensor dos povos indígenas. Quem não confia nas Forças Armadas é o general Heleno de Tróia. Ou finge não confiar para poder atacar os direitos constitucionais dos povos indígenas.

Talvez essa seja a hora de voltar a incomodar os generais e de convencê-los a confiar nas Forças Armadas, acatando a soberania dos povos originários.  Quem sabe o Ministério dos Povos Indígenas e a Funai organizam um debate sobre esse tema?

Referências dos textos citados:

  1. Nações Indígenas. Nações? Porantim. Manaus. Ano II. Nº 10, agosto de 1979. Editorial. Pg. 2
  2. A Universidade do Amazonas sugere que o Estado reconheça grupos indígenas como nações. Porantim. Manaus. Ano II. Nº 10, agosto de 1979. Pg. 15
  3. Bessa, José Ribamar Perguntas sobre a questão nacional hoje. Porantim. Manaus. Ano II, nº 14, dezembro de 1979.
  4. Os Partidos Políticos e a questão indígena. Porantim. Manaus. Ano III, nº 19/20 de junho de 1980.
  5. A questão indígena Brasileira. Cadernos do PT-AM nº 01 julho de 1980.
  6. Márcio Souza, Ribamar Bessa, Mário Juruna, Megaron e Marcos Terena. Os índios vão à luta. Rio. Editora Marco Zero. 1981

P.S. A coluna Taquiprati registra adeus saudoso ao nosso Joaquim Melo. Conheci-o no módulo que ministrei no curso de especialização em Historiografia da Amazônia. Historiador e proprietário da banca de livros do Largo de São Sebastião, “ele não é apenas um livreiro que vende livros, mas um assíduo leitor dos livros que vende”, escreveu Elvira França, que dele se despediu em belo artigo no Portal da Agência de Notícias Amazônia Real.

– “Ele foi um polo de resistência em defesa da Amazônia, contra as trevas da ignorância, da alienação, do negacionismo e do fascismo. Manaus, que perde muito, se encontra em luto” registrou a historiadora Gleice Oliveira. Joaquim, generoso, selecionou “Rio Babel – a história das línguas na Amazônia” como um dos dez livros necessários para entender a nossa região. Que descanse em paz!

 

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