Na SP de Tarcísio e Derrite é muito fácil ser golpista

PM paulista descumpre ordem de prisão de acampados golpistas e é leniente com agressores de jornalistas; repórter da Ponte foi ameaçada no acampamento bolsonarista do Ibirapuera

por Jeniffer Mendonça, na Ponte

Eram 13h30 de segunda-feira (9/1) quando cheguei na Rua Abílio Soares, no bairro do Ibirapuera, na zona sul da capital paulista. A Avenida Sargento Mario Kozel Filho, onde fica o quartel do Comando Militar do Sudeste do Exército, estava bloqueada tanto pelo acampamento de bolsonaristas golpistas quanto por faixas de isolamento. Uma viatura ficava no cruzamento enquanto um policial militar do 12º Batalhão de Polícia Militar (BPM/M) abordava qualquer pessoa que furasse o bloqueio. Quando disse que era jornalista e que iria cobrir a desocupação do acampamento, ele apenas pediu para mostrar minha identificação e me liberou.

Ali, enquanto caminhava, pude ver que o ambiente estava tranquilo. Diversas barracas de lona e com materiais de madeira estavam sendo desfeitos pelo grupo. Placas com dizeres “intervenção militar”, “71 dias” (em alusão ao tempo que estavam acampados), bandeiras do Brasil e cartazes estavam sendo retirados por pessoas vestidas com cores verde amarelo ou verde-oliva com tecido camuflado em alusão ao uniforme do Exército.

Alguns vestiam camiseta verde com a numeração 1964 em alusão ao ano que foi decretada a ditadura civil-militar no país. Vi que um fotógrafo estava registrando o movimento e me senti encorajada a também fazer os registros, já que o temor de agressões não é eufemismo. No domingo (8/1), durante os atos de vandalismo e violência contra os edifícios das sedes dos Três Poderes em Brasília, ao menos 12 profissionais da imprensa relataram ter sido agredidos, segundo o Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal.

No acampamento em frente ao Comando Militar do Sudeste, consegui apenas fazer duas fotos porque logo em seguida comecei a ouvir gritos de “não pode filmar” e “quem é essa aí?”. Me virei e vi o fotógrafo, que depois se identificou como Alf Ribeiro e que é freelancer, sendo puxado por um grupo de pessoas, alguns tentavam pegar sua câmera.

Alguns policiais se aproximaram e eu tentei registrar a ação, mas também fui impedida. Um homem passou a colocar a mão na frente do meu celular e quase me roubou. Ao fundo, ouvi alguém dizer “vai ser agredida”. Os policiais em questão acabaram levando o fotógrafo e eu para fora da faixa de isolamento da outra ponta da avenida, que faz cruzamento com a Rua Nábia Abdala Chohfi, onde estavam jornalistas, fotógrafos, cinegrafistas e alguns bolsonaristas do acampamento.

Passamos pela faixa laranja ouvindo gritos de “imprensa lixo”, “enviados do Alexandre de Moraes”. Uma mulher branca, loira, de blusa rosa ainda gritou “eu não disse que se você ficasse ia ser agredida? Tá saindo agora, né, coitadinha”. E ainda fez careta para mim. Alf me disse que é fotógrafo freelancer e que começou a ser hostilizado quando algumas pessoas se aproximaram e disseram que não poderia filmar.

“É um absurdo porque é via pública, a gente tem direito de registrar”, declarou ao mostrar o braço com um hematoma roxo. “O policial não me defendeu, eu me defendi sozinho. Se eu não tivesse defendido, eles iam tirar minha câmera”, prosseguiu, explicando que não deixou que os bolsonaristas levassem seu equipamento.

Eu contei seis viaturas da Força Tática: duas pela rua que eu entrei, na Abílio Soares, e outras quatro no cruzamento com a Nábia Abdala Chohfi. Parte dos PMs usava câmera na farda. Perguntei a um deles o motivo e ele me respondeu que os policiais escalados para trabalhar no dia usavam enquanto os que não utilizavam estavam trabalhando no dia de folga, ou seja, pelo sistema de Diária Especial por Jornada Extraordinária de Trabalho Policial Militar (DEJEM), também conhecido como “bico oficial”.

Ali, a mulher que me ameaçou continuou gerando tumulto. Minutos depois, Alf fez uma foto em direção ao acampamento e a ela e depois riu de um comentário feito por um outro fotógrafo. Ela se irritou e foi até ele questionando “tá rindo do quê?”. Começou uma discussão e ela gritava que não queria ser filmada e ameaçou jogar uma sacola preta que segurava com objetos em direção a ele. Ela só se afastou depois que outros bolsonaristas a levaram de volta e recomendavam não se exaltar.

Eu fiquei acompanhando de longe quando um homem veio ao meu lado e perguntou o que estava acontecendo. Respondi que era a desocupação do acampamento. “Foi o Alexandre de Moraes, né?”, questionou se referindo ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

Afirmei que foi ordem judicial proferida por ele, já que o ministro determinou, durante a madrugada, uma série de medidas após as invasões em Brasília, que inclui a dissolução e desocupação total dos acampamentos golpistas no prazo de 24 horas. “Agora a gente perdeu pro comunismo mesmo, você não acha?”, prosseguiu o homem. Não respondi e ele continuou: “os jornalistas tão tudo adorando, depois quando eles ficarem passando fome, não diga que eu não avisei”.

De outro lado, ouvi algumas idosas comentando sobre protestos que poderiam fazer nas ruas. “E se a gente fosse na sede da Globo?”, perguntou uma à outra.

Enquanto observava a movimentação, um idoso se aproximou e perguntou se era autorizado entrar no acampamento. Quando disse que a polícia não permitia a entrada, ele passou a me contar que é morador do bairro e visitava constantemente o local.

“Depois do que aconteceu em Brasília ontem, eu fiquei desolado, porque colocaram todo aquele vandalismo na conta da gente que estava aqui. Aqui não teve baderna, a gente fazia oração, cantava o hino nacional. Quem faz esse quebra-quebra é aqueles black bloc, é coisa de esquerdista”, delirou.

Ele, que se identificou como Gilberto Sacramento, aposentado de 78 anos, disse foi eleitor de Lula em 2002, mas se arrependeu depois que os escândalos de corrupção vieram à tona. Também declarou que era contra a ditadura, mas acabou mudando de ideia por conta do tempo que “a esquerda ficou no poder”. “Eu era muito jovem, mas hoje não tem outro jeito se não for intervenção militar”, disse. Ao contrário dos demais, ele repudiou as agressões e hostilizações contra a imprensa. “O pessoal tem que ser coerente, se pregam liberdade de expressão, não pode vir impedir quem vem registrar”, disse.

Enquanto eu conversava com Gilberto, o fotógrafo da Ponte Daniel Arroyo foi xingado por bolsonaristas quando registrava alguns grupos saindo do acampamento e cruzando a faixa da isolamento para deixar definitivamente o local. Uma mulher ainda mostrou o dedo do meio para Arroyo, umas gritavam para “esquerdistas não filmarem”. Outra mulher ainda dizia, em tom de ironia, “vocês tinham que filmar a sujeiraque a gente deixou que nem os esquerdistas fazem porque aqui a gente deixou tudo conservado, mas isso vocês não mostram”.

Depois, outra confusão. Um homem que se disse morador do bairro parou no local se dizendo aliviado de que o acampamento estava sendo desfeito: “acabou, porra!”. Começou uma discussão entre ele e bolsonaristas que estavam ali até que esse homem fez um “L” com a mão, sinal que ficou conhecido como referência a Lula durante as eleições de 2022, e começou a ser perseguido por alguns deles. Dois homens de físico avantajado correram atrás dele, mas depois desistiram e o morador sumiu. Alguns policiais correram alguns metros para observar a situação, mas retornaram em seguida.

Já no final da tarde, por volta das 17h15, caminhões da Autoridade Municipal de Limpeza Urbana (Amlurb), da Prefeitura, intensificaram a coleta de lixo e entulho. A Ponte não viu ninguém ser detido e o governo paulista também não explicou o porquê não prendeu os golpistas, já que a decisão de Moraes também prevê prisão em flagrante na “prática dos crimes previstos nos artigos 2ª, 3º, 5º e 6º (atos terroristas, inclusive preparatórios) da Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016 e nos artigos 288 (associação criminosa), 359-L (abolição violenta do Estado Democrático de Direito) e 359-M (golpe de Estado), 147 (ameaça), 147-A (perseguição), 286 (incitação ao crime)”.

Governo prometeu desocupação “pacífica”

Mais cedo, por volta das 11h, secretário de Segurança Pública de São Paulo, Capitão Guilherme Derrite, convocou uma coletiva de imprensa para detalhar a desmobilização dos acampamentos bolsonaristas no estado em virtude da decisão do STF.

O secretário informou que um gabinete de crise foi criado ainda na noite de domingo para monitorar a ação dos golpistas em 34 pontos acampamentos pelo estado. “Estávamos preocupados com desencadeamento das manifestações e possíveis atos que poderiam ocorrer aqui no estado de São Paulo”, disse.

Ele preferiu não se manifestar a respeito da condução da Polícia Militar do Distrito Federal contra a violência provocada pelos grupos cujo comportamento levou à exoneração do secretário de Segurança Pública Anderson Torres e um pedido público de desculpas do governador Ibaneis Rocha (MDB). O cenário levou o presidente Lula (PT) a decretar intervenção federal na segurança pública do DF até 31 de janeiro.

Durante o quebra-quebra em Brasília, bolsonaristas também fizeram protestos em São Paulo, como o trancamento na Avenida 23 de Maio, na capital, e bloqueio de vias em outras cidades.

Derrite não usou nenhum adjetivo de golpista contra os grupos e minimizou o impacto dos atos e acampamentos. “É importante frisar, de imediato, que as ações que aconteceram em Brasília não encontram similaridade com os manifestantes, com a manifestação aqui em São Paulo. Aqui em São Paulo, nós temos um cenário de tranquilidade”.

Ele declarou que houve reforço do policiamento em pontos-chaves do estado, como as rodovias Anhanguera e Castelo Branco, onde foi afetada, pela manhã, por um bloqueio de bolsonaristas que aconteceu na Marginal Tietê, o quartel do Comando Militar do Sudeste do Exército e os prédios da Assembleia Legislativa e do Tribunal de Justiça com equipes da Força Tática e o pelotão de Choque da PM. O foco principal é a capital por ter o maior número de grupos golpistas e fiscais da Prefeitura também estarão presentes. Em frente ao Comando Militar do Sudeste, não havia integrantes da Tropa de Choque.

Derrite afirmou que a ordem judicial do ministro será cumprida ao longo do dia “com uso escalonado da força”. “A gente vai, através do diálogo, informar para os manifestantes que existe uma ordem judicial de desmobilização dos acampamentos. Isso vai acontecer. Nós temos 24 horas para que essa decisão seja cumprida”, disse.

Questionado sobre possível resistência dos golpistas e qual será o comportamento da polícia, secretário reforçou que priorizaria uma ação pacífica. “A gente vai cumprir a decisão judicial, mas a maneira que a gente vai cumprir vai ser o diferencial aqui em São Paulo. Não é a intenção das forças de segurança, é uma orientação do nosso governador que isso seja feita de maneira pacífica e eu entendo que assim será”, garantiu.

Protagonista de um impasse ao ser desautorizado pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) que disse que não iria mudar em nada o projeto de câmeras nas fardas um dia depois de ter declarado que a medida seria revista, Derrite ressaltou que as desocupações serão registradas pela polícia. “Colocamos os policiais para cumprirem essa decisão judicial, todos com equipamentos, serviços de inteligência vão filmar essas ações. A decisão judicial tem que ser cumprida”.

O secretário não deu detalhes sobre a apuração da Polícia Civil a respeito dos golpistas, apenas que estão buscando identificá-los, e que a investigação sobre possíveis financiadores dos protestos está a cargo da Polícia Federal.

Bolsonarista deixa acampamento em frente ao Comando Militar do Sudeste após PM liberar acesso | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

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