Ilude-se quem considerar que, superada a intentona, a democracia venceu
No Opera Mundi
A intentona golpista do dia 8 de janeiro não representou um plano de tomada imediata do poder. Tampouco se resumiu a um putsch de bolsonaristas lunáticos.
Mais razoável entender esse acontecimento no bojo do processo decorrente da vitória eleitoral do presidente Lula, com a formação de acampamentos nas cercanias das instalações militares. Ali começa um movimento cujo objetivo era provocar caos e desordem, levando a operações de GLO (Garantia da Lei e da Ordem).
Essa aposta poderia ter vários desdobramentos: um dos quais a intervenção das Forças Armadas, a derrubada da administração petista e o retorno à ditadura.
A invasão dos Palácios foi um capítulo desse roteiro. Ilude-se quem considerar que, superado esse episódio, “a democracia venceu”. Não basta a prisão da raia-miúda e seus padrinhos no governo do Distrito Federal. Ou se chegar nos financiadores. Nem mesmo a eventual responsabilização política e criminal de Jair Bolsonaro permitirá virar essa página.
Para não se embriagar no autoengano, basta listar os fatos principais. A nota dos três ex-comandantes militares, abençoando os protestos bolsonaristas, ainda em novembro. Os longos e organizados acampamentos próximos às casernas. A paralisia do Batalhão da Guarda Presidencial frente aos invasores do palácio. A postura do comando militar no QG do Exército, na noite do levante, impedindo a ação da PM de Brasília e facilitando a fuga de sediciosos.
Marcelo Camargo/Agência Brasil
‘Sem anistia, gritam as ruas, com sabedoria’
A conclusão é óbvia. A moradia da hidra golpista está nas Forças Armadas, que exercem tutela sobre o Estado desde a Guerra do Paraguai. Essa instituição passou ao controle de fardados sequiosos em reassumir a direção do Estado, agora por via institucional, associando-se a um mequetrefe apaixonado pela ditadura dos generais.
Para implantar um programa ultraliberal, refazer o realinhamento com os Estados Unidos e embolsar gordos privilégios, altos oficiais se envolveram, direta ou indiretamente, em ataques à Constituição.
O presidente Lula tentou apaziguá-los, indicando um ministro da Defesa dócil ao partido militar, capaz de caracterizar atividades golpistas como “manifestações democráticas”, e indicando novos comandantes por critério de antiguidade. Mas bastaram sete dias para que fracassasse a política da pacificação.
Ainda assim, o líder petista teve firmeza e habilidade para debelar o motim, revertendo parcialmente falhas de Ministérios.
A verdade, contudo, é que apenas haverá estabilidade quando o ninho de serpentes for varrido dos quartéis. Outros chefes, de promoção mais recente e leais à autoridade presidencial, deveriam ser nomeados para as três armas, passando à reserva compulsória os oficiais mais próximos do bolsonarismo.
Novas regras para promoção e formação teriam que ser adotadas para combater a cultura antidemocrática. Com a abertura de inquéritos disciplinares, militares vinculados à sedição poderiam ser afastados, processados e julgados, limpando as Forças Armadas de seus piores elementos.
O fiasco da intentona, por fim, com ampla reação dentro e fora do país, concede ao presidente a melhor oportunidade, desde a transição dos anos 80, para desmontar a tutela militar, abrindo caminho para a refundação do Estado brasileiro.
“Sem anistia”, gritam as ruas, com sabedoria.
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(*) Breno Altman é jornalista e fundador do site Opera Mundi.
Texto publicado originalmente em Folha de S. Paulo
Imagem: Pieter Paul Rubens, Cabeça de Medusa (1616-17)