8 de janeiro: ameaças e oportunidades

Tentativa de golpe isolou o bolsonarismo, por enquanto. Mas além de puni-la, é preciso erradicar as bases que alimentam o caldo fascista. Isso requer ampliar a mobilização popular pelo resgate dos direitos perdidos e por novo horizonte político

Por Jorge Almeida, em Outras Palavras

Vamos pensar dialeticamente, conforme o ditado da sabedoria popular: “há males que vêm para o bem”.

O 8 de janeiro ficará marcado na história pelo inédito ataque aos chamados Três Poderes. Uma conspiração neofacista. Mas, também é uma oportunidade, sendo uma chance do próprio governo, da chamada esquerda em geral e de outros setores da sociedade compreenderem melhor o significado do bolsonarismo, inclusive dos setores mais extremos e nitidamente de caráter neofascista.

Foi também uma oportunidade para o governo e os movimentos populares tomarem iniciativas que visem uma limpeza da extrema direita dentro das instituições e reduzir sua influência na sociedade de modo geral.

Numa visão geral, em termos imediatos o governo agiu principalmente com acertos, dentro dos limites de medidas emergência que poderiam ser esperadas para um governo com os propósitos e alianças com setores burgueses liberais de direita (inclusive golpistas de 2016).

Mas, as respostas não podem se limitar ao imediato e ao âmbito institucional.

Uma conspiração

Foi um ato golpista neofascista, planejado por uma conspiração, que visava uma desestabilização institucional, feita por uma rede de grupos golpistas, articulados e com o objetivo comum de criar uma situação que justificasse uma intervenção militar e um golpe.

Uma conspiração que tem financiamentos de empresários e ramificações nas esferas do Estado, particularmente no aparelho coercitivo. E que contou, inclusive, com uma omissão das Forças Armadas, o que não significa que o comando das Forças Armadas, como tal, tenha participado diretamente da conspiração.

As investigações em curso ainda deixarão mais claro, pelo menos uma parte, do que aconteceu. Ou seja: a linha de organização e comando da conspiração, o seu grau de unidade, as articulações e hierarquias existentes. Quem estava presente na invasão disposto à violência e quem foi manipulado. Quem foi tropa de choque e quem foi fazer volume. Qual o grau de articulação entre vários grupos, identificando-os, inclusive suas ações Ilegais, organizadas e sistemáticas, assim como a participação de líderes políticos, policiais da ativa e aposentados e militares da ativa e reformados, membros de órgãos do Judiciário e do Ministério Público.

Deverá identificar os financiadores que devem ter uma punição material específica, tanto os que estavam presentes na ação como os que estavam por trás, na organização e na sombra.

Precisa investigar as ligações com as sabotagens a torres de transmissão de energia, bloqueios de refinarias, o ataque à PF do Distrito Federal (DF) em 12 de dezembro e a tentativa de explosão de uma bomba num caminhão tanque na véspera do Natal.

Identificar quem estava motivado ideologicamente, quem eram os mercenários e quem, eventualmente, foi “inocente útil”. Quem estava consciente do conjunto do objetivo da ação e quem foi manipulado. Qual a participação dos CACs (Caçadores, Atiradores e Colecionadores de armas), milicianos etc.

Entretanto, foi uma ação aventureira e voluntarista, na medida em que não há condições políticas para que um golpe vitorioso se efetive.

Uma ação voluntarista

Por que, no atual contexto, não há condições para a efetivação de um golpe militar no Brasil? Em primeiro lugar, não é a posição majoritária dentro das principais frações do grande capital nacional e internacional. Não tem apoio das forças do imperialismo histórico e de empresas monopolistas. Nem de Estados estrangeiros, especialmente dos Estados Unidos.

Não há apoio de comandos das Forças Armadas para um golpe (no sentido completo, de derrubada do governo). Eles sabem que não há condições políticas para isso. Não que eles sejam democratas e legalistas. Mas porque sabem que não há condições para a sua viabilização e eles não agem com voluntarismo.

Também não há apoio da grande mídia empresarial, nem da cúpula das instituições da democracia liberal representativa, nos chamados Três Poderes.

Isso é importante porque, em primeiro lugar, no Brasil, não há golpe violento sem a participação direta, em um momento decisivo, das Forças Armadas. Portanto, apenas grupos civis, mesmo militarizados, não terão condições de efetivar esse tipo de ação se não contarem com apoio do aparelho coercitivo do Estado, seja policial, seja militar.

E, por outro lado, não há “golpe institucional” sem a participação do grande capital, da cúpula dos Três Poderes, do Ministério Público, da Polícia Federal (PF), e sem contar ao menos com o consenso da cúpula das Forças Armadas. Como foi o caso de 2016.

Hoje, não há condições para isso. Mas, há um movimento neofascista efetivo, organizado, com diversas ramificações na sociedade e no Estado (em especial, no aparelho coercitivo), que têm o objetivo de dar um golpe. Foi isso o que aconteceu e pode voltar a acontecer.

A repressão efetivou o fracasso imediato da tentativa golpista, mas não vai inibir totalmente o objetivo desses grupos.

Uma oportunidade

Com tudo isso, a ação golpista do 8 de janeiro acabou gerando um maior isolamento de Bolsonaro, pessoalmente, e do bolsonarismo mais extremo e organizado, porém minoritário, dentro de sua base de apoio mais ampla, política e eleitoral, na sociedade – bem ampla nas últimas eleições.

Portanto, abriu-se uma oportunidade para ampliar o isolamento do extremismo neofascista e o isolamento de Bolsonaro, num momento de fraqueza, desarticulação relativa e contradições do bolsonarismo. Tanto de seu setor organizado, como uma desorientação grande de sua base de apoio ativa e passiva (eleitoral) mais ampla.

Também ocorreu uma maior perda de apoio parlamentar a Bolsonaro no Centrão, viabilizado pela força demonstrada pelo governo nesta semana e pela caneta do clientelismo.

Os movimentos populares apoiaram ativamente um avanço dessas medidas, mas resta saber até onde estão dispostos a ir no aproveitamento dessa oportunidade política para fazer avançar a resistência popular.

Isso porque a limpeza do neofascismo e da extrema direita, dentro e fora do Estado, não será realizada apenas com medidas institucionais e, menos ainda, somente com repressão e sem grandes mobilizações.

O recuo do bolsonarismo no domingo e durante a semana está longe de significar uma retirada deles do campo de batalha.

Portanto, ações efetivas, incluindo a não anistia dos crimes que já tinham sido cometidos, tem um clima mais favorável na sociedade.

Ou seja, abriu-se uma oportunidade não somente de punir aqueles que estiveram diretamente envolvidos nas ações violentas e criminosas do domingo, mas também aqueles que estiveram envolvidos com o golpismo nos últimos quatro ou seis anos.

Esse avanço popular pode ajudar a fazer avançar também as mudanças e reivindicações do povo de modo geral, no que diz respeito à reconquista de direitos perdidos, o chamado “revogaço”.

O governo tomou medidas imediatas corretas

Foi correto chamar a Força Nacional para intervir na repressão assim como, por outro lado, não ter feito a convocação da GLO (Garantia da Lei e da Ordem), através das Forças Armadas, pois isso reforçaria uma maior dependência e tutela militar. O ministro da Defesa, José Múcio, propôs a GLO e as FFAA já estariam preparadas para agir. Aceitar isso seria assinar embaixo de uma tutela militar e era tudo o que os militares queriam. Esta questão é chave, pois existe e existirá, durante todo o governo Lula, uma disputa em torno da manutenção e do grau da tutela militar.

O presidente Lula recebeu o apoio imediato de inúmeros chefes de Estado e governo de todo o mundo. Mas foi correto o governo ter sido contrário a um apoio formal da OEA, tanto do ponto de vista mais geral como, especialmente, via forças de segurança externas. Pois isso enfraqueceria o governo e o Estado brasileiros e favoreceria um clima de instabilidade e imagem de fraqueza do governo para inibir e impedir as ações dos golpistas contando com as próprias forças nacionais.

Positivo o pronto retorno do presidente Lula a Brasília, ainda no domingo à noite, para a área do conflito, visitando o Palácio do Planalto e o STF, assim como o posicionamento uníssono das cúpulas dos Três Poderes, dos partidos políticos, de inúmeras instituições da sociedade civil e a reunião de Lula com quase todos os governadores, inclusive aqueles dos três principais estados da federação (SP, RJ e MG), que foram eleitos em alianças com Bolsonaro.

Correta também a intervenção na área de segurança de Brasília e a exoneração do secretário de Segurança bolsonarista do DF (Anderson Torres), feita, sob pressão, pelo governador também bolsonarista, pouco antes dele mesmo ser afastado por 90 dias por Alexandre de Moraes (seguida do endosso do pleno do STF). Acompanhada também da prisão do comandante da PM do DF e da prisão de Torres e das ações de busca e apreensão em sua residência, e de um pedido de impeachment do governador, que será analisado pela Câmara Distrital dos deputados do DF. Assim como a mudança no comando da PM do DF, pelo interventor federal. Pois a Secretaria de Segurança e a PM do Distrito Federal boicotaram ação policial contra os golpistas.

O ministro da Justiça, Flávio Dino, declarou que os financiadores, principalmente dos ônibus, alimentação, pagamento de diárias, etc estão principalmente no Sul e no Centro-Oeste do país e são principalmente empresários do agronegócio, do comércio e dos CACs.

Pelo menos 1.500 pessoas foram presas, entre os invasores dos prédios dos Três Poderes e aqueles que estavam no acampamento em frente ao QG (Quartel General) do Exército no DF.

Aproveitar as circunstâncias para fazer uma limpeza e acabar com todos os acampamentos golpistas ainda existentes na frente dos quartéis no país no dia seguinte, foi uma medida imediata correta para manter os comandos e bases bolsonaristas na defensiva e mostrar aos comandantes bolsonaristas nas polícias militares e civis, na PF e entre os militares, de que ações e omissões não continuarão impunes.

As Forças Armadas visaram demarcar posição quando impediram a retirada dos acampados pela PM na frente do QG do Exército de Brasília sem sua participação direta, no domingo à noite, para, em seguida, fazer um acordo com o interventor federal e a PM no sentido de fazer a retirada conjunta na segunda-feira de manhã. Assim, permitiu a fuga de uma parte dos acampados e, ao mesmo tempo, apareceu socialmente como partícipe do processo de retirada dos golpistas da frente da sua sede o que, depois das invasões do domingo na Praça dos Três Poderes, se tornou absolutamente insustentável.

Vídeos feitos pelos saqueadores golpistas durante o quebra-quebra expressam uma impressionante certeza de vitória, o apoio de policiais e militares e uma convicção de impunidade. Depois das prisões, os seus vídeos expressaram sentimentos de terem sido enganados pelos seus chefes e traídos pelo Exército.

Mas, erra o governo se colocar as FFAA para proteger prédios públicos, conforme declarou o ministro da Casa Civil, Rui Costa.

Impactos e limites da repressão

Ou seja, a repressão, além de um papel imediato, também pode influir em médio e longo prazos. Serviu como exemplo para militantes bolsonaristas em geral.

A detenção de lideranças, julgamentos, condenações, prisão, exonerações, demissões, retiradas de privilégios e aplicação de multas servem para desorganizar os grupos e as redes golpistas e também inibe outros pretendentes a novos atos golpistas violentos. A repressão à invasão e aos ataques serviram para recuperar o território material e simbólico principal das instituições estatais brasileiras. Mas serve também de exemplo para o futuro, mostrando que o tempo de grande conivência e impunidade com as ações golpistas violentas desse tipo “acabou”.

Parte disso, de acordo com declarações do Ministério da Justiça e do interventor na segurança do Distrito Federal, já está em curso.

É preciso também realizar uma limpeza no GSI (Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República), na Abin (Agência Brasileira de Inteligência) e no Batalhão da Guarda Presidencial e não temer a punição de altas patentes militares e das polícias envolvidas em atos criminosos e fazer as exonerações e substituições necessárias, inclusive no comando das Três Armas.

Neste sentido, o presidente Lula perdeu a oportunidade de exonerar o ministro da Defesa, José Múcio, que é uma espécie de delegado do comando militar dentro do governo, que visa acomodar a situação da tutela militar sobre o Estado e o governo.

Saldos políticos

O resultado do que aconteceu no domingo e durante a semana demonstrou que melhorou a força do presidente Lula dentro do governo e nas relações de força dentro das instituições estatais de modo geral. Assim como de sua imagem na sociedade civil dentro e fora do país, dando condições de avançar em novas medidas.

Porém, evidentemente, sem afetar a hegemonia burguesa, pois o conjunto de medidas institucionais tomadas e ações realizadas não vão resolver os problemas principais, que requerem acabar a tutela do “mercado”, que limita o conjunto do governo.

Lula precisa aproveitar o momento de apoio popular que está recebendo, além de praticamente quase todo o sistema político nacional e internacional, para avançar em medidas democratizantes, antifascistas e anti-tutela militar.

O papel de Alexandre de Moraes deve ser ressaltado ao ser duro contra a direita golpista. Saiu muito fortalecido como figura da direita liberal. Mas, as consequências disso, em médio e longo prazos, ainda estão por se manifestar.

A extrema direita bolsonarista ficou mais isolada. Mas isso não significa que deixou de ser uma ameaça. Parte deles pode recuar e desistir de conspirações. Outra parte pode tentar ações ainda mais violentas, inclusive atentados dirigidos individualmente contra a vida de lideranças políticas e militantes populares, ou mesmo atentados terroristas propriamente ditos (como a tentativa de explodir uma bomba num caminhão de combustíveis, na véspera do Natal, que visava atingir a população civil e criar um clima de terror na sociedade).

Numa situação como essa, nem tudo funciona dentro de uma racionalidade estratégica, que tenha condições reais de viabilizar o fim de derrubar o governo. Portanto, muita coisa pode acontecer.

As chantagens

O governo não pode confiar apenas no apoio das instituições, da sociedade civil liberal, da grande mídia empresarial, de setores ligados ao grande capital e em acordos com as Forças Armadas.

Isso porque se, por um lado, eles acabaram tomando uma posição mais ativa ou mais passiva (como no caso das Forças Armadas) contra as ações dos golpistas do domingo, vão continuar tentando usar esse clima de golpismo e de instabilidade para chantagear o governo por mais concessões liberais ao capital.

E os militares vão chantagear pela manutenção de a seus benefícios corporativos, seus cargos e, principalmente, da tutela militar que não estão dispostos a abrir mão, como demonstraram durante o período da transição, a primeira semana de governo e durante o próprio 8 de janeiro.

Além disso, também interessa à elite política direitista, corrupta e golpista (em 2016) chantagear para se beneficiar dessas circunstâncias para ganhar espaço no governo e no aparelho estatal, como sempre fizeram.

E Bolsonaro também não deixa de aproveitar para preparar sua tropa para resistir a uma possível prisão e para continuar disputando a liderança da oposição de direita.

Portanto, vão querer se aproveitar para manter e aprofundar a chantagem, no sentido de colocar o governo Lula mais dependente de acordos com eles.

Entretanto, a hegemonia burguesa e as políticas neoliberais não foram afetadas, pois, suas bases de sustentação nas instituições estatais, no controle capitalista monopolista dos meios de produção e na sociedade civil continuam intactas. O Exército e a PM ficam arranhadas com o acontecimento, mas as instituições estatais, a sociedade civil e a grande mídia burguesa saíram legitimadas.

É preciso eliminar as bases objetivas (materiais) e subjetivas presentes na sociedade e nas instituições estatais, que alimentam um caldo de cultura para a subsistência da hegemonia burguesa, do neofascismo e da direita em geral.

Além disso, nenhuma repressão, por si só, vai acabar com a extrema direita. Existem interesses materiais e políticos, contradições sociais profundas, um sistema político corrompido, concepções ideológicas, fanatismo religioso e uma mistura de tudo isso, que lhe alimenta.

Somente uma série de reformas profundas, antineoliberais e anti-imperialistas, de caráter popular e radicalmente democráticas, poderão enfrentar tudo isso resolutamente.

O governo Lula, no seu programa e nos objetivos que tem anunciado após a posse, não demonstrou que está determinado a isso. Há muita luta pela frente.

Exigências da situação

Responsabilizar, sim, todos os golpistas, inclusive os policiais e militares que, individualmente, cometeram crimes ao confraternizar, permitir, por incentivo ou omissão, as ações dos invasores. Mas isso não pode se sobrepor à responsabilização e punição de seus chefes, sem anistia.

A repressão, direta e preventiva, é necessária, mas não suficiente. É necessário combater o bolsonarismo neofascista e a extrema direita em geral, luta que não será resolvida em curto prazo. E é preciso a preparação para as ações da extrema direita que virão a partir do início dos inquéritos, processos e possíveis condenações e prisões de Bolsonaro e seus parentes e comparsas.

As manifestações antigolpistas na segunda-feira seguinte foram importantes como uma resposta imediata. Mas ainda é pouco diante do que a luta de classes, a luta social e política dos oprimidos em geral e pela soberania nacional exigem.

O movimento social e as organizações político-partidárias (partidos, organizações e correntes políticas) consideradas de esquerda precisam intervir em grandes manifestações. Não somente em defesa das conquistas democráticas e contra o golpismo e o neofascismo, mas também pela reconquista dos direitos. Pela retomada de conquistas perdidas, lutando pelo que está sendo chamado de “revogaço” das privatizações e quebra de direitos sociais e políticas públicas.

A resistência popular precisa aproveitar a oportunidade não somente para se defender de tentativas de golpe, mas para lutar, avançar, obter conquistas e acumular forças.

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