Domingo de traumas. Por Abrao Slavutzky

em Terapia Política

Nesta semana, encontrei duas leitoras e logo perguntaram se nosso país enlouqueceu. Não, disse a elas, mas escrevo agora que um psicanalista de hoje entende e explica as questões individuais menos do que os antigos. E as questões sociais são ainda mais difíceis. Por isso só escrevi sexta pela manhã, pois passei a semana imaginando o que escrever – tudo me parecia já escrito. O caminho a seguir, em razão da complexidade, é lento, ainda mais diante do domingo, o histórico 8 de janeiro. Nunca os Três Poderes da Democracia – Executivo, Legislativo e Judiciário – tinham sido devastados por hordas raivosas. Quebraram obras de arte, urinaram, defecaram, arrasaram três dos mais belos palácios criados por Oscar Niemeyer e construídos com o suor dos trabalhadores. Provaram com seus atos que o problema não é a urna eletrônica, mas sim a derrota nas eleições, e reagem à derrota querendo golpe militar. 

O dia 8 de janeiro de 2023 não será esquecido: foi um dia de traumas. O povo brasileiro se chocou com as cenas de invasão e destruição. Tudo feito por gente disfarçada de verde e amarelo que, felizes e se sentindo como heróis, arrasaram as sedes da Democracia. No dia primeiro do ano ocorreu a posse do novo governo numa festa de amor entusiasmante feita por uma multidão. Uma semana depois, quatro milhares realizaram a festa do ódio à liberdade, ódio à maioria do povo que elegeu uma frente ampla para governar o país. 

Quando conversei com as duas leitoras, me referi aos traumas do dia e logo perguntaram o que são, exatamente, traumas. Trauma é um evento muito intenso, surpreendente, que não se consegue responder bem devido aos transtornos que provocam na realidade psíquica de cada um. 

Todas as pessoas já viveram e viverão traumas como perdas, separações, frustrações, derrotas ou até vitórias. O trauma é um grande afluxo de excitações que está acima da capacidade pessoal de dar conta, dominar psiquicamente tanta excitação surpreendente. 

O trauma pode ser pessoal, familiar, social ou mundial. Exemplo recente é a pandemia da Covid-19, que gerou um trauma mundial com efeitos pessoais. Cada ser humano reage ao trauma com sua personalidade. Há os que se desequilibram com o sofrimento e os que reagem e tomam providências objetivas. 

No dia 8 de janeiro, o Brasil ficou traumatizado e o mundo ficou impactado com o terrorismo que estuprou a Democracia. Há um Brasil que odeia o Brasil, se fantasia com o verde e amarelo, mas tem raiva de um país para todas e todos os brasileiros. Assim foi na nossa História, assim foi nas ditaduras, assim ocorre agora, quando uma parte da população passou mais de dois meses gritando para que os armados voltassem. Dizem que os armados adoraram serem chamados, lembrados, amados, seduzidos. As pessoas, cansadas de permanecer diante dos quartéis, decidiram, orientadas por líderes, radicalizar e assaltar Brasília. Viajaram apoiadas e guiadas por armados, empresas e empresários. 

O trauma é um choque violento, uma ruptura no conjunto de uma organização psíquica. Em pouco tempo, há um aumento de excitação psíquica sem possibilidade de elaborar, gerando angústias, desamparos e reações desconcertantes. 

Trauma diante de uma perda, por exemplo, como ocorreu comigo no dia 8 de janeiro à tarde, quando estudava desamparo. Que ironia! No meio do estudo, fui espiar o UOL, como faço às vezes, e li e vi a invasão e a destruição na capital federal. Não pude mais estudar, vivi um desamparo que me obrigou a ficar diante da TV até o fim do dia. Aliás, o trauma está ligado ao desamparo, pois o povo brasileiro, em sua imensa maioria, se sentiu desamparado, chocado com tanto ódio e crueldade. Os invasores terroristas, fantasiados de verde e amarelo, destruíram artes brasileiras, estocaram cinco vezes o painel “As Mulatas” de Di Cavalcanti. Aliás, nada me foi mais traumático que essas estocadas no mural, quanto ódio à arte, quanto ódio às Mulatas, que poder tem a arte para gerar tanta agressividade. “As Mulatas” VIVEM. 

Quando agora escrevo, percebo que passei toda a semana buscando caminhos de como escrever sobre as imagens da destruição de domingo. Criei títulos e desprezei, decidi não escrever, mas não me resignei. Diante dos traumas é preciso escrever, conversar e esboçar respostas. 

Por que tanta loucura brasileira, loucura humana, nossa loucura? Eis a questão. O Brasil é um país traumatizado pela escravidão de 350 anos e que segue no racismo estrutural. Vejam que foram “As Mulatas” que foram estocadas. O Brasil é traumatizado pelos assassinatos de jovens negros, de indígenas, de indianistas, de pobres. É um país traumatizado com a ditadura militar da tortura e dos desaparecidos sem julgamento. Por isso o ex-presidente, em pleno Congresso, em 2016, saudou o maior torturador brasileiro e ainda disse que ele foi o terror da presidente Dilma. 

O governo anterior não aceitou a derrota nas eleições, os armados e os poderes financeiros tampouco, são gente que deseja o golpe. Se esse golpe fracassou, outros podem ser tentados. Os últimos seis anos fizeram muito mal ao país, passamos da civilização a uma quase barbárie como se viu na pandemia, em que médicos desprezaram até as vacinas! 

Felizmente, vem nascendo há tempos um novo país, um novo Brasil. É difícil mudar a história do país já definido como da Casa Grande e Senzala, é um desafio para muitas gerações, muitas mesmo. Essa luta começou no distante passado com Zumbi, Dandara e milhares de negras, negros, indígenas, trabalhadores, estudantes, sonhadores de um Brasil para todas e todos. É urgente que os armados entendam que a guerra fria terminou, o comunismo definhou, estamos no século XXI, agora é a Democracia. Ah, os armados precisam estudar que eles não servem a um governo, mas servem sempre ao Estado, são pagos por todo o povo, devem respeito aos Três Poderes.  

O Brasil é um país traumatizado, pois boa parte do nosso povo não está no retrato e agora está começando a se fazer presente. No dia 11 de janeiro, houve a posse dos dois novos ministérios: o dos povos originários, com a ministra Sonia Guajajara, e o ministério da igualdade racial, com a ministra Anielle Franco. Aliás, ver, três dias depois do ataque a Brasília, as novas ministras assumindo novos ministérios foi um show. Show da Democracia, um show da justiça social, diminuindo assim o impacto traumático do dia 8. Viva as artes, as ciências, a cultura brasileira, o povo brasileiro. Democracia Sempre.

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone

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