Em uma sociedade capitalista como a nossa, a interpretação da dinâmica social segundo a perspectiva do materialismo histórico-dialético é algo imprescindível na construção de emancipação humana e tem como características os seguintes traços: “a crítica da causalidade linear e a absolutização da causalidade que exclui a participação de elementos aleatórios, caos e perturbações na definição dos rumos de processos de diferentes naturezas; impossibilidade de eliminar a influência do objeto de medição no objeto medido; relevância das qualidades de auto-organização no funcionamento de diferentes sistemas; importância das situações de incerteza e imprevisibilidade” (HERNÁNDEZ, 2005, p. 27).
Ao defender o princípio da complexidade, Edgar Morin (2004 e 2008) ensina que de toda parte surge a necessidade de um princípio de explicação mais rico do que o princípio de simplificação (separação/redução), princípio básico da ciência. Porém, ciente de que o paradigma da complexidade, proposto por Edgar Morin (2002) e outros, contribui para a superação de análises dualistas e dicotômicas, mas também ciente de que o paradigma da complexidade pode descambar para uma espécie de relativismo que ofusca a opressão de classe e a superexploração das classes trabalhadora e camponesa perpetrada pelo sistema do capital que, ao sequestrar os meios de produção e realizar o cativeiro da terra, superexplora a força de trabalho, gerando mais-valia e acumulando capital em uma progressão geométrica, não podemos ignorar o que há de bom no paradigma da complexidade. Segundo Ovidio Hernández, o paradigma da complexidade se sustenta em seis princípios: a) princípio dialógico, que é o elo entre os elementos antagônicos inseparáveis; b) princípio de recursividade organizacional, que afirma serem os efeitos eles mesmos produtores das causas; c) princípio hologramático, que afirma que não só a parte está no todo, mas que também o todo está na parte; d) princípio de adaptação e evolução conjunta, que diz que os processos de auto-organização de sistemas complexos se transformam em conjunto com o seu entorno; e) princípio da não proporcionalidade ou não linearidade da relação causa-efeito, que afirma que vitórias de caráter menor podem desenvolver processos de mudanças substanciais, “a força das pequenas vitórias”; f) princípio da sensibilidade às condições iniciais, o qual afirma que uma pequena mudança nas condições iniciais de surgimento e organização de um sistema complexo pode conduzir a resultados muito diferentes (Cf. HERNÁNDEZ, 2005, p. 28-29).
A luta pela terra, por território e por moradia se alimenta da força de pequenas vitórias. “São os pequenos tijolos que sustentam as grandes construções”, dizem muitos camponeses. Acreditar no pequeno, em si mesmo, no/a companheiro/a Sem Terra, Sem Teto, nos Povos Tradicionais e na luta: eis outro traço de emancipação humana presente nos Sem Terra que batalham na luta pela terra, nos Sem Teto que lutam pela moradia e nos Povos Originários que lutam pelo resgate de seus territórios. “O mistério da força e do crescimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) está justamente nas pequenas coisas, que as velhas estruturas nunca valorizaram, assim destruindo-se por terem asfixiado a capacidade de criar de seus integrantes. Os inimigos procuram nossas virtudes nas grandes coisas. Na verdade, estas são apenas a expressão da dedicação que cada Sem Terra tem ao fazer pequenas coisas acontecerem” (BOGO, 1999, p. 152). De fato, nas lutas por direitos, o que à primeira vista parece ser impossível conquistar, com a perseverança na luta, torna-se possível. Com a luta coletiva perseverante o impossível se torna possível.
Como se forma, enquanto construção histórico-cultural, a subjetividade dos sujeitos Sem Terra na luta pela terra, dos Sem Teto na luta pela moradia e dos Parentes Originários na luta pelo resgate de seus territórios? De acordo com a concepção original marxista, Ovidio Hernández afirma: “a subjetividade dos indivíduos é elaborada e ativada no conjunto de condições de sua existência material, de suas relações sociais de grupo e classe, de suas práticas cotidianas e das produções culturais que compõem a subjetividade social, das quais não pode ser deduzida, por outro lado, uma linearidade de determinações” (HERNÁNDEZ, 2005, p. 37).
A luta pela terra, pela moradia e por território em alguma medida tem a força de desencadear um processo revolucionário? Depende do que se entende por processo revolucionário, que para Ovidio Hernández trata-se de “um conjunto interativo de ações políticas coletivas que inclui ações populares, que impactam profundamente uma sociedade e nela introduzem mudanças em diversas áreas que estabelecem um antes e um depois, no que diz respeito à revolução, para indivíduos, grupos e sociedade como um todo” (HERNÁNDEZ, 2005, p. 37).
Na luta pela terra, os Sem Terra experimentam que o Estado não promove políticas para o bem comum, não apenas se omite ou é lento em realizar políticas públicas emancipatórias, mas, ao contrário, o Estado é violentador da dignidade humana, dos direitos sociais e, especificamente, do direito à terra. Em uma sociedade capitalista, o Estado se torna vassalo da reprodução do sistema e para isso mantém a terra em cativeiro, não se faz reforma agrária. Mas os Sem Terra na luta pela terra sabem que não basta tomar de assalto o poder político se apropriando do Estado, pois vale a análise feita por Michel Foucault sobre o Estado, o poder e caminho para a revolução, como segue: “Para evitar a experiência soviética e evitar que o processo revolucionário seja derrubado, uma das primeiras coisas a entender é que o poder não está localizado no aparato do Estado, e que nada na sociedade mudará se os mecanismos de poder não forem também transformados, os que funcionam fora, abaixo e nos aparelhos de Estado, ao nível da vida quotidiana, de cada minuto” (FOUCAULT, 1980, p. 60).
Portanto, deve-se usar o paradigma da complexidade para analisar as questões sociais, mas sem recair no complexíssimo paralisante e, acima de tudo, batalhar pelas pequenas mudanças que podem se tornar alavancas de grandes transformações.
Referência
BOGO, Ademar. Lições da luta pela terra. Salvador: Memorial das letras, 1999.
FOUCAULT, Michel. Power/Knowledge. New York: Pantheon Books, 1980.
HERNÁNDEZ, Ovidio S. D’Angelo. Autonomía integradora y transformación social: El desafío ético emancipatorio de la complejidad. La Habana: Publicaciones Acuario Centro Félix Varela, 2005.
MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Tradução: Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. Rio de Janeiro, 2008.
______. Saberes globais e saberes locais: o olhar transdisciplinar. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.
______. O problema epistemológico da complexidade. Portugal: Biblioteca Universitária, 2002.
24/01/2023
Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 – Esperar lutando por direitos humanos fundamentais: eis o caminho! Por frei Gilvander Moreira
https://www.youtube.com/watch?v=HuWxHTmFhQw
2 – Preservação INTEGRAL da Mata do Jd. América, em BH/MG, JÁ! Abraço à Mata. Fora, construtora Patrimar
https://www.youtube.com/watch?v=1toqr-S_n38
3 – MRS derrubou 47 casas em Ibirité/MG, INCLUSIVE a de uma mãe grávida de gêmeos, no Morada da Serra
https://www.youtube.com/watch?v=1IXXTcZo2hY
4 – “MRS usou CITAÇÃO para nos pressionar, COAGIR, dizendo q tínhamos q sair em 15 dias. Acordo injusto”
https://www.youtube.com/watch?v=E4Kpm6JMXXI
5 – “MRS Logística S/A no Morada da Serra, em Ibirité/MG, infernalizou nossa vida, com pressão e coação”
https://www.youtube.com/watch?v=od6wreppE04
6 – “21 casas não tinham necessidade de serem demolidas, no Jd. Ibirité/MG, pela MRS c acordos e coação”
https://www.youtube.com/watch?v=kA35fakHbhI
7 – Educação para prática de libertação! – Por frei Gilvander Moreira
https://www.youtube.com/watch?v=ovKBjGYy-ag
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*Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG.
Foto: Dom Pedro Casaldáliga