A retomada do Mercosul. Por Paulo Kliass

em Terapia Política

O simbolismo da retomada das atividades proativas do governo brasileiro no campo da diplomacia foi muito forte. Lula decidiu realizar a sua primeira viagem ao exterior duas semanas após a posse e logo após ter encaminhado soluções para a crise provocada pelos atos golpistas do dia 8 de janeiro. Os países escolhidos como destino são nossos vizinhos e participam do Mercosul. A turnê teve início na Argentina. Para além da importância das relações comerciais, sociais, culturais e diplomáticas entre ambas as nações, a visita busca também restabelecer em termos civilizatórios os vínculos entre elas.

Afinal, o governo anterior do genocida não havia poupado críticas ao atual presidente Alberto Fernandez, assim como havia feito em relação à vice-presidente Cristina Kirchner. Em sua sanha contra os movimentos de integração regional, a orientação diplomática do desastre encerrado em 31 de dezembro passado procurou destruir o histórico de amizades entre os povos do continente sul-americano. Isso significou enfraquecer ao máximo as instâncias do Mercosul e promover o estrangulamento da Unasul. Lula reconheceu os erros grosseiros cometidos por seu antecessor e pediu desculpas em nome do povo brasileiro:

  • (…) “Eu estou na verdade pedindo desculpas ao povo argentino por todas grosseiras que o último presidente do Brasil, que eu o trato como genocida, pela falta de cuidado e de responsabilidade na pandemia, por todas as ofensas que fez ao Fernández” (…)

O encontro foi precedido pela divulgação nos órgãos de imprensa de um importante artigo assinado pelos dois chefes de Estado, onde estão registrados os elementos centrais da nova etapa das relações diplomáticas entre Brasil e Argentina. O título do documento expressa de forma objetiva as suas intenções: “Relançamento da aliança estratégica entre Argentina e Brasil”. O texto menciona aspectos como a necessidade da reindustrialização de ambos os países, a urgência de fortalecimento da infraestrutura, a questão da segurança alimentar e mesmo de cooperação na pesquisa nuclear para fins pacíficos. Além disso, reforça a importância do fortalecimento do Mercosul e da Unasul.

Pós genocida: fortalecer Mercosul e Unasul

No entanto, todos esses pontos terminaram por ficar ofuscados pelo tratamento viesado que terminou por ser oferecido pelos grandes meios de comunicação. O destaque acabou se concentrando em um ponto presente no documento que trata da criação de um grupo de trabalho para estudar medidas de agilização das trocas comerciais entre os dois países e no interior do próprio mercado comum. O texto menciona:

(…) “Pretendemos quebrar as barreiras em nossas trocas, simplificar e modernizar as regras e incentivar o uso de moedas locais. Também decidimos avançar nas discussões sobre uma moeda sul-americana comum que possa ser usada tanto para fluxos financeiros quanto comerciais, reduzindo custos operacionais e nossa vulnerabilidade externa.” (…) [GN]

A expressão “moeda comum” gerou um sem número de mal-entendidos e interpretações variadas ao longo do dia, em função do grau de indefinição da mesma. A primeira associação que foi realizada pelos analistas referia-se à experiência da criação da moeda comum da União Europeia, o euro. Aquele foi um processo longo e complexo, em que os Estados membros abriram mão de sua soberania monetária, abandonaram as próprias moedas com as quais operavam e passaram a utilizar exclusivamente a nova moeda em todas as suas funções e operações. Na verdade, foram quase quatro décadas de tratativas e negociações com a criação da Comunidade Econômica Europeia em 1957 até a adoção definitiva e impositiva do euro em 1998. Ele tornou-se uma “moeda única” para os países que aceitarem as condições da unificação monetária, algo bem mais limitador do que uma “moeda comum”. Não é o caso das necessidades que os países da nossa região enfrentam neste século.

Talvez seja essa a razão para que o texto da Declaração Conjunta dos dois presidentes, divulgada no dia seguinte à publicação do artigo, tenha relativizado um pouco a questão. O texto oferece destaque para a necessidade de mecanismos de integração financeira e ressalta a natureza de longo prazo do processo de criação da moeda única.

 (…) “Acordaram iniciar estudos técnicos, incluindo os países da região, sobre mecanismos para aprofundar a integração financeira e mitigar a escassez temporária de divisas, incluindo mecanismos a cargo dos bancos centrais. Compartilharam também a intenção de criar, no longo prazo, uma moeda de circulação sul-americana, com vistas a potencializar o comércio e a integração produtiva regional e aumentar a resiliência a choques internacionais” (…)  [GN]

Na verdade, o que interessa de forma mais imediata é a utilização de alguma outra referência de conta para a realização das trocas comerciais entre o Brasil e a Argentina, bem como entre os demais países do Mercosul. A utilização do dólar em tais operações tem sido muito criticada, mas já existe uma alternativa para denominar as exportações e importações entre os países do bloco econômico regional. Como muito bem apontado por David Deccache, trata-se do Sistema de Pagamentos em Moeda Local (SML), em operação desde 2008, e que permite a realização de operações de comércio exterior entre países do bloco sem a intermediação do dólar.

 (…) “O Sistema de Pagamentos em Moeda Local (SML) é um sistema de pagamento internacional administrado pelo Banco Central do Brasil em parceria com os bancos centrais da Argentina, Uruguai e Paraguai. Ele permite que pagamentos e recebimentos sejam efetuados diretamente em reais, sem a necessidade de moeda intermediária, como o dólar, dispensando, assim, o contrato de câmbio.” (…) (GN)

Apesar de todas as grandes mudanças na estrutura da geopolítica comercial, a Argentina se mantém ainda como um dos principais parceiros comerciais do Brasil, estando apenas atrás da China e dos Estados Unidos. Em 2022, observou-se uma recuperação das atividades comerciais realizadas entre o Brasil e seu vizinho. O total de exportações atingiu US$ 15,3 bi e as importações foram de US$ 13,1 bi. Assim, o total do fluxo comercial chegou a US$ 28,4 bi ao longo do ano passado, representando quase 5% do total das trocas comerciais realizadas pelo Brasil com o resto do mundo.

A importância estratégica da Argentina como parceira comercial do Brasil deve merecer todas as atenções do governo brasileiro para potencializar essa relação econômica e também oferecer as vantagens para que dela se beneficiem os demais membros do bloco comercial no interior da América do Sul. Afinal, as relações com a Argentina representam isoladamente 70% do total das trocas comerciais do Brasil com todo o Mercosul. No entanto, não se deve tirar o foco da busca por aperfeiçoamento dos mecanismos para incentivar e buscar garantias para o incremento das exportações e importações entre os dois países e também no interior do bloco.

“Moeda única” não ajuda o debate atual

Chamar a atenção no momento atual para a questão da moeda única não contribui para esse debate e colabora para a criação de obstáculos por meio dos “especialistas” da grande imprensa. Eles estão sempre à procura de algum detalhe marginal para conferir destaque e assim ofuscar os avanços representados pela inciativa proporcionada pelo governo Lula em sua estratégia do necessário fortalecimento da integração regional. A questão é tão complexa que qualquer ideia aparentemente inovadora cabe no modelo ainda indefinido. Tanto que o ex-ministro Paulo Guedes chegou a publicar um artigo em 2008, sugerindo a criação de uma moeda única latino-americana (sic), lastreada no peso argentino e no real brasileiro, como um caminho para o crescimento regional. O ex-superministro deve ter se arrependido do texto mencionado, mas isso serve como exemplo de que a moeda única não pode ser vista como panaceia e muito menos para desviar a atenção das tarefas fundamentais da atual conjuntura.

 

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