Essa gente. Por Julio Pompeu

No Terapia Política

Quinhentas e setenta crianças mortas.
Nem uma lágrima dessa gente.
Nem lamento.
Nem vergonha.
Nada dessa gente que poderia
ter feito alguma coisa
e escolheu deixar morrer
que é o mesmo que escolher matar.

Essa gente que assedia criança estuprada
para defender a vida do feto,
mas que se cala depois que o feto
nasce preto, pobre ou índio.
Porque ser preto, pobre ou índio
anula a criança.
Faz da criança carniça.
Resto de gente.
Que para essa gente,
não é gente que preste.
Ou que só presta calada,
calejada e dócil.
Perto do trabalho
que é pesado ou sujo demais
para a criança da gente de bem.
E até para a gente de bem.
Mas que cai bem para a criança
que tem a cor que tem,
que vem de onde vem.

E que vai rápido
para onde todo mundo vai
quando vai para longe deste mundo.
Que nunca foi seu,
que nunca deixam ser seu,
onde não pode ter nada seu.
Nem sua terra,
nem remédio,
nem médico,
nem comida,
nem corpo,
nem povo,
nem alma.
Só nada.

E toda gente sabe disso.
Todos sabem o que essa gente
quer daquela gente.
Sabem da dor daquela gente.
E da ambição dessa gente.
E todos agem como quem esquece.
Como quem não vê aquela gente
que essa gente não quer à vista.

E só quando a brutalidade dessa gente
aparece nos corpos sequelados
daquela gente
é que um monte de gente
fica indignada com o que essa gente
faz com aquela gente.
Mas depois esquece,
mesmo sem esquecer.
Age como quem esquece
porque dói lembrar do que viu.
Como dói saber da dor da morte
de crianças por fome, doença e veneno
de garimpo ilegal.

Porque dói ouvir as desculpas esfarrapadas
e as mentiras deslavadas
dessa gente desalmada
que parece burra de tão malvada,
mas que é só perversa e descarada
de um jeito que deixa a gente sem jeito.
Sem achar que esse mundo tem jeito.
Sem esperança de que as coisas se ajeitem.
Então, esquece-se.

Presta-se atenção a outras tristezas.
Menos tristes.
Mais banais.
Mais fáceis de engolir.
Mais fáceis de rir delas
Mais dignas de se esquecer
porque não são tão indignas
quanto as outras tantas indignidades
que essa gente é capaz de fazer.

Ah, essa gente de bem.
Que mata dizendo amém.
Que não vê no outro
quem a Bíblia diz ser seu irmão.
Essa gente que não quer o outro
por perto, e nem vivo.

Essa gente de bem
que não quer o bem da gente.
Só quer o seu,
tomado da vida daquela gente.
Dos corpos daquela gente.
Que só tolera a existência daquela gente
se for escravo.
Mesmo assim, longe.
Bem longe da gente de bem.
Bem longe de ser gente.
Bem longe de ser.

Os que sobreviverem ao genocídio contarão aos seus curumins a lenda de como o rio foi envenenado e salgado com as lágrimas de quem morre por força e obra de uma nação de gente de bem.

Ilustração: Mihai Cauli

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