Genocídio: existem mesmo esses Yanomami? Por José Ribamar Bessa Freire

No TaquPraTi

“Sabemos que os mortos vão se juntar aos espíritos de nossos antepassados
lá do outro lado do céu, onde a caça é abundante e as festas não acabam”.

(Davi Kopenawa. A Queda do Céu. 2010).

– Os Yanomami não existem, nunca existiram – afirmou o militar aposentado na fila de um banco, em Niterói, nessa sexta (27), enquanto o aparelho de TV da agência exibia cenas de horror protagonizadas por quem sonhava com festas e caça abundante do outro lado do céu. O milico queria convencer os demais clientes de que aquelas imagens hediondas eram falsas. “As provas do engano estão lá” – disse e citou Menna Barreto, autor de “A Farsa Ianomâmi”, editado com verbas públicas pela Biblioteca do Exército.

As “provas” fuleiras são as andanças do coronel Menna Barreto pela Amazônia. Comandante da Fronteira (1969-1971) e Secretário da Segurança (1985-1988) de Roraima, na sua estadia, não viu um só Yanomami, apenas indivíduos de “tribos de línguas diferentes”. Não foi só ele que “não viu”. Relatos de viajantes que por lá passaram desde o séc. XVIII não mencionam o etnônimo Yanomami. Tá vendo? Bem que ele disse! E de onde surgiram, então esses fantasmas chamados de Yanomami?

O fakebook

Quando o coronel Menna retornou à região, em 1985, aquelas “tribos de línguas diferentes” já eram identificadas com “a nova denominação inventada por ONGs interessadas em entregar a Amazônia a governos estrangeiros, portanto, não deveria existir demarcação de um território Ianomâmi” – concluiu, revelando que essa argumentação simplória escondia o projeto de negar terras garantidas pela Constituição aos seus milenares ocupantes.

Com um raciocínio digno de quem crê que a terra é plana e que a vacina causa AIDS, o coronel Menna Barreto, genocida de papel, matou 30.400 habitantes, que hoje vivem no Brasil em 386 comunidades dentro do território demarcado em 1992. Ele assegura no seu fake book que são povos diferentes, porque não falam a mesma língua.

Oxente! Téleso, é guri? Efetivamente, os Yanomami são falantes de seis línguas, mas que pertencem à mesma família linguística. Um indígena que usasse argumento tão primário, diante das inúmeras variedades dialetais do português faladas do Oiapoque ao Chuí, concluiria que não existe “brasileiro”, uma “invenção” que põe no mesmo saco gente de fala tão dessemelhante. Minha neta nascida em Natal (RN), achou estranho que no Rio se falasse “Eschtá ótchimo Fátichma”, para ela era “Tá ótmo Fátma”.

O livro contém argumentos falaciosos.  O autor ignora conceitos básicos das ciências sociais. Destila preconceitos por todas as páginas. Parte do princípio que considera os indígenas como “seres apáticos, subnutridos, preguiçosos e comedores de cadáveres”. Trata Margaret Mead como “charlatã, autora de uma antropologia maluca intoxicada do relativismo cultural” e o bispo conservador Aldo Mongiano como “famigerado comunista”. A revisão do texto parece feita por Sérgio Moro, o que fica visível  na emissão do cheque sem fundo de quem não sabe jogar xadrez:

– Muito além de uma questão indigenista, a criação das reservas em zona de fronteira coloca em cheque (sic) a questão da soberania brasileira na região.

O genocídio

O autor agride a nossa inteligência. Apresenta os codinomes de “vários padres russos ortodoxos que se infiltraram no Conselho Mundial das Igrejas (CMI)” e cita um pretenso documento da KGB de 1989 que anunciava: “Agora a agenda do CMI é também a nossa agenda”. Muitos fantasmas juntos.

O prefácio elogioso é do general Meira Mattos, comandante das tropas que a serviços dos EUA invadiram a República Dominicana, em 1965, contra o presidente eleito Juan Bosch. O “propósito velado da demarcação do território Yanomami é a internacionalização da Amazônia” diz o general, ele sim que, efetivamente, viveu “no mais baixo estágio de ignorância e primitivismo” .

Os Yanomami de carne e osso deformados no fake book do coronel ficaram conhecidos no mundo inteiro através de estudos antropológicos e linguísticos. Como teimam em existir, os negacionistas decidiram matá-los fisicamente com ajuda do garimpo invasor do território indígena. É aqui que entram o Brochável e seus seguidores.

Circulou nas redes sociais o texto “Como Bolsonaro planejou extinguir a reserva Yanomami” do jornalista Lira Neto, com o histórico da trajetória genocida. O coronel Menna deixou, ele sim, de existir em 1995, mas legou de herança seu livro funerário, que alimentou os projetos de extermínio do Brochável.

Enquanto o coronel Menna escrevia seu livro, seu amigo, o ex-capitão eleito deputado federal pelo partido do ilibado Maluf (PPR vixe vixe) apresentava projeto anulando o recém criado território Yanomami. Era tão sem sentido que foi arquivado. O Brochável insistiu e conseguiu desarquivá-lo cinco vezes, ao longo de várias legislaturas, em 1993, 1995, 1998, 2003 e 2007, quando foi engavetado definitivamente pela Câmara dos Deputados.

Pátria lesa

Mas o Coiso Brochável não desistiu. Eleito presidente, propôs em 2020 o Projeto de Lei do Genocídio como foi batizado pela oposição. Assinado por Sérgio Moro, seu ministro de estimação, autorizava o garimpo e o agronegócio em áreas indígenas. “Se a mineração nas nossas terras for legalizada, só assim iremos acabar” – disse Davi Kopenawa.

O projeto genocida era tão escandaloso que nem o Centrão o abraçou plenamente. Foi arquivado. O Governo Brochável, porém, ignorou ofícios com inúmeros pedidos de socorro dos Yanomami e desmontou os órgãos de fiscalização. Era o genocídio em marcha.

– Foi ele (Bolsonaro) que matou – denunciou Davi Kopenawa, para quem “os buracos abertos pelo garimpo são como feridas na terra, porque eles cortam a floresta e, ao cortar as árvores, essas feridas aparecem […] Essa terra que os brancos estragam, não pense que é terra vermelha como se fosse urucum. Não se engane! É seu sangue! É o sangue da terra escorrendo”.

O termo genocida às vezes não é usado com propriedade, mas como um palavrão para ofender alguém. Na realidade, genocídio é uma categoria que se refere a um crime contra a humanidade, cometido de forma sistemática e coordenada, para aniquilar seres humanos em conflitos étnicos, religiosos ou raciais. Foi o que ocorreu, segundo o professor de Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF), Gustavo Sampaio.

As imagens, que não temos estômago para reproduzir aqui, falam por si só: corpos esquálidos e cadavéricos de crianças, jovens, idosos. Elas percorreram o Brasil e o mundo, documentando mortes, miséria, fome, subnutrição, que nos envergonham como nação civilizada e nos fazem esquecer a Biafra dos anos 1970.

A Biblioteca do Exército, com o livro “A Farsa Ianomami”, encheu a cabeça da milicada de porcaria. Foi por isso que as portas dos quarteis, e não das universidades ou das igrejas, abrigaram os golpistas.

O Exército republicano é aquele que, mobilizado pelo atual governo, instalou hospitais de campanha e distribuiu alimentos, acolhendo integrantes da nação Yanomami. A Operação Lesa Pátria da Polícia Federal deve substituir a Operação Pátria Lesa do governo genocida do Brochável.

Referências:

Recomenda-se as inúmeras matérias publicadas sobre o tema em: Instituto Socioambiental (ISA), agência de jornalismo Amazônia Real, plataforma Sumaúma, Canal Causas da Vida, Revista Xapuri, Combate Racismo Ambiental, Pátria Latina, Saúde Indígena ICICT – Fiocruz, entre outras.  Além de:

      1. Carlos Alberto Lima Menna Barreto: A Farsa Ianomâmi. Rio. Biblioteca do Exército. 1995.
      2. Lira Neto: Como Bolsonaro planejou extinguir a reserva YanomamiDiário do Nordeste. Fortaleza, 24 de janeiro de 2023.
      3.  Davi Kopenawa Yanomami: Bolsonaro despejou os garimpeiros em nossa terraSumaúma. 13 setembro 2022.
      4. Felipe Medeiros. Foi ele (Bolsonaro) que matou”, denuncia Davi Kopenawa. Amazônia Real. 24/01/2023.
      5. Taquiprati / Diário do Amazonas / José R. Bessa:

 

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