O pesquisador da ENSP, Paulo Amarante, um dos protagonista do movimento pela Reforma Psiquiátrica, relembra seus primórdios e escreve: “Para retomá-la, não basta revogar os atos do pesadelo – é preciso construir um país que saiba defender-se dos fascistas. Isso se dará agindo com a sociedade e não para ela”.
Confira, abaixo, o texto na íntegra, publicado nesta segunda-feira (30/1), no site Outra Saúde.
Por Paulo Amarante*, no Informe Ensp
Neste momento de retomada da reforma psiquiátrica antimanicomial no Brasil, está se lutando para anular e revogar as iniciativas de desmonte de tudo o que foi feito em mais de 40 anos de processo de defesa e realização de direitos, autonomia, emancipação, despatologização e tratamento em liberdade das pessoas identificadas como “usuárias” de serviços de saúde mental ou portadoras de uma experiência de sofrimento mental. Porém, mais que isso, se luta para avançar ainda mais na medida em que foi possível identificar os alvos e objetivos dos setores fascistas, conservadores, reacionários.
A partir de seus ataques medicalizantes, invasivos, antidemocráticos, proibicionistas, racistas, colonialistas, patriarcais e tantos outros, se faz necessário e importante reconhecer a relevância, a originalidade e a ousadia dos ditos “mentaleiros” (expressão ao mesmo tempo afetiva e pejorativa com a qual alguns companheiros e companheiras se referiam aos ativistas de reforma psiquiátrica antimanicomial).
Hoje, no alvorecer dos novos tempos no Brasil, existe grande expectativa quanto ao protagonismo social no sentido de participação dos sujeitos coletivos no processo de reconstrução e inovação no campo das políticas de saúde mental e reforma psiquiátrica. E no sentido de avançar ainda mais, é preciso perceber que não basta escutar a sociedade para saber suas opiniões, seus projetos e tendências, mas, sim, envolvê-la no fazer, permanentemente, o novo cenário. Não é “fazer para” mas “fazer com”! Esse parece ser o grande desafio.
No início do processo, o recém-criado Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) protagonizou, no final dos anos 70, a primeira greve nacional no período da ditadura (antecedendo a histórica greve dos metalúrgicos do ABC), que foi a primeira greve no serviço público, uma prática proibida pelo governo autoritário. Mas a greve foi feita, durou meses e desencadeou a greve dos residentes de medicina.
Por ocasião da I Conferência Nacional de Saúde Mental, em 1987, a Coordenação Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde, que era contrária à reforma psiquiátrica e aos princípios antimanicomiais, se posicionou contra à realização da conferência. No entanto, como era decisão do ministério realizá-la, tentou forjar uma espécie de congresso de psiquiatria, com convidados conferencistas, sem o processo participativo que viria a caracterizar a importância do controle social no SUS. O MSTM não aceitou o golpe e, literalmente, virou a mesa! Assumiu a coordenação e realizou a histórica conferência que, além de tudo, possibilitou uma assembleia nacional de ativistas de todo o país, donde surgiu a proposta de um encontro nacional em Bauru, em dezembro daquele mesmo ano.
Assim, no Encontro Nacional do MTSM em Bauru, a partir de uma análise de conjuntura e uma profunda autocrítica, o movimento produziu rupturas radicais em sua composição, sua finalidade e suas estratégias. Passou a ser denominado movimento Por Uma Sociedade sem Manicômios, o que se refletiu na participação de usuários, familiares, militantes de movimentos de direitos humanos, e passou a vislumbrar uma sociedade sem violências, sem exclusão.
A concepção de manicômio passou a significar, claramente, não apenas o prédio do hospício ou de outras instituições de reclusão e repressão, mas as práticas e mentalidades sociais de opressão, de ausência de solidariedade, empatia e reconhecimento da diferença e da diversidade. Ainda neste encontro, foi instituído o Dia Nacional da Luta Antimanicomial (18 de maio), criado de baixo para cima, que se tornou uma data comemorada nacionalmente com eventos plurais, iniciativas e atos políticos, culturais, acadêmicos. Depois, se transformaria na Semana da Luta Antimanicomial e, posteriormente, no mês. Maio é o Mês da Luta Antimanicomial!
Diferentemente de muitos dias ou datas comemorativas, o dia da luta antimanicomial foi se tornando uma referência ética e política que passaria a significar “todo dia é dia de luta antimanicomial, de reforma psiquiátrica, de cuidado solidário e em liberdade”! Em 1993 ocorreu o primeiro Encontro Nacional da Luta Antimanicomial, ao qual se seguiram muitos outros. Poucos eventos no país, especialmente pelo fato de serem autônomos, organizados não pelo Estado, mas por movimentos sociais, tiveram (e têm) tanta regularidade e importância quanto estes encontros.