Derivada do grego kakistos (superlativo de “mau”) e kratos (“poder”), a palavra significa “o governo dos piores”. Inventada no século XVII para descrever a ascensão política de cidadãos menos qualificados ou menos escrupulosos, ela ganhou um novo fôlego com as eleições de Donald Trump e Jair Bolsonaro
Stanley Hoffmann acreditava que a melhor explicação para o início da Segunda Guerra Mundial podia ser encontrada em O rinoceronte, a peça de Eugène Ionesco. Para o eminente acadêmico norte-americano, o absurdo da peça “capta melhor do que qualquer trabalho de História ou de Ciências Sociais todos os absurdos e tragédias dessa longa descida ao inferno”.1 A alegoria, que trata da transformação de toda a população (exceto um homem) em rinoceronte, ilustra a dinâmica de um totalitarismo que consegue conquistar até as mentes menos dóceis.
É frequentemente por meio do registro satírico que os artistas enfrentam os grandes problemas de seu tempo. Em O grande ditador, dirigido em 1940, Charlie Chaplin interpreta dois papéis: o do ditador Adenoid Hynkel, obviamente inspirado em Adolf Hitler, e o de um pobre barbeiro judeu submetido às perseguições. Em suas cenas mais memoráveis, o trágico se desenha por trás do burlesco. Tudo que precisa ser dito está ali, no ditador que se aproxima de um globo terrestre e, após acariciá-lo, apanha-o como se fosse uma bola (que logo murchará) e começa animadamente a jogá-lo para lá e para cá, imaginando-se “imperador do mundo”. Ou quando recebe seu colega Benzino Napoleoni, sósia de Benito Mussolini, em um salão de cabeleireiro, e ambos se mostram preocupados com a altura de seus respectivos assentos.
Em 1997, o Prêmio Nobel de Literatura foi concedido a Dario Fo, dramaturgo, ator e diretor italiano, por ter, “na tradição dos mágicos medievais, fustigado o poder e restaurado a dignidade dos humilhados”. Sua peça mais famosa, Morte acidental de um anarquista, é inspirada em uma famosa notícia da década de 1960. Assassinato, suicídio ou apenas acidente? Um louco, fugido de um hospital psiquiátrico, pega o caso e finge ser o juiz. Segue-se uma investigação delirante, que semeia a confusão entre os policiais.
Desde Aristófanes, a sátira dos poderosos sempre rendeu. A bufonaria permite levantar o véu do indizível. Os comediantes às vezes se mostram tentados pelo exercício do poder; alguns caem na tentação. Nas eleições presidenciais francesas de 1981, o comediante Coluche inseriu-se brevemente na campanha. Seu slogan: “A França está rachada ao meio; comigo, vai rachar o bico”. Com a perda de crédito das elites no poder desde a crise financeira e política de 2008, os humoristas seguem de vento em popa. Na Itália, em 2009, a criação do Movimento Cinco Estrelas pelo comediante Beppe Grillo mudou o jogo político. O ucraniano Volodymyr Zelensky, um perfeito neófito na política, era conhecido por seu papel em uma série televisiva chamada Servo do povo. Ele interpretava um professor de História levado à presidência para acabar com a corrupção no país. Em 2019, o ator candidatou-se à eleição presidencial ucraniana. E teve uma vitória esmagadora.
Sem saber, Alfred Jarry (1873-1907) criou, na peça Ubu Rei, o arquétipo do tirano ganancioso e sanguinário. Durante sua primeira (e última) apresentação no Théâtre de l’Oeuvre, em 10 de dezembro de 1896, a farsa causou escândalo em razão da vulgaridade de sua linguagem e de seu tema ultrajante. “Primo patafísico” de Macbeth, de Shakespeare, Ubu assassina Venceslau, rei da Polônia, e toma seu lugar. Mas, uma vez no poder, ele manda matar tanta gente que seus apoiadores o abandonam e, com a ajuda do czar da Rússia, o derrubam. Ubu então embarca para a França.
Jarry havia compreendido a dimensão de um poder sem limites. Capaz de tudo, Ubu é uma “criança terrível” que “profere frases estúpidas com toda a autoridade de uma besta”. Ele é um ser grotesco e ignóbil – e não esconde isso. Chega a exibir certa transparência quando proclama enfaticamente seus projetos e seus métodos. Assim: “Tenho a honra de anunciar-lhes que, para enriquecer o reino, farei perecer todos os Nobres e tomarei seus bens”. Ou então: “Quero ficar rico, não desistirei de um centavo”. Ele afirma sua indiferença, quando não seu desprezo, em relação às regras que decreta e que infringe. Megalomaníaco e autoritário, fala de si mesmo na primeira pessoa do plural.
Ao longo de todo o século XX, não faltaram dirigentes ubuescos – fossem eles generais golpistas ou bufões sanguinários. Em Uganda, Idi Amin Dada, que esteve no poder entre 1971 e 1979, e tornou-se uma lenda, com sua tirania que fez centenas de milhares de vítimas.2 Na Romênia, Nicolae Ceausescu encarnou a loucura infantil do poder absoluto, construindo monumentos faraônicos em sua própria glória e concedendo a si mesmo os títulos de “Gênio dos Cárpatos” e “Danúbio do Pensamento”.
Com o novo milênio, surgiu um novo tipo de Ubu, na interseção entre a ideologia neoliberal e o crescente papel do dinheiro na política. Em 2002, Dario Fo já se preocupava com os excessos do primeiro-ministro italiano, o bilionário Silvio Berlusconi: “Estamos diante do paradoxo mais absurdo, digno do Ubu Rei, a farsa do impossível: fazemos as leis para o rei, escolhemos os ministros entre seus cortesãos, e eles defendem apenas seus próprios interesses. E o público aplaude. Na melhor das hipóteses, alguém solta um pequeno arroto de indignação. Tudo isso expressa que há, entre Il Cavaliere e seus subordinados, uma clara consciência de que eles têm todos os poderes nas mãos e gozam de total impunidade”.3
Essa tendência se acelerou com a eleição de Donald Trump, em 2016. O arquiteto de sua vitória, o diabólico Steve Bannon (depois expurgado), desde o início declarava seu grande projeto político: “Desconstruir o Estado administrativo”, isto é, desmontar as estruturas postas de pé pelo New Deal e consolidadas na década de 1960 com as reformas do programa Great Society. Em seu livro sobre o “quinto risco” (o dos perigos imprevisíveis que apenas agentes públicos experientes são capazes de gerir), o ensaísta Michael Lewis detalha os elementos dessa desconstrução:4 não preencher certas posições, ou fazê-lo apenas de maneira provisória; desmantelar as administrações existentes, esvaziá-las de sua substância, cortar seus recursos; desacreditar os especialistas e acusá-los dos projetos mais sombrios (foi assim que a estrutura encarregada de gerenciar uma possível pandemia foi extinta, há dois anos). Antes mesmo de assumir o cargo, o presidente eleito foi tomado de tremenda ira ao saber que uma arrecadação de fundos estava sendo organizada para financiar uma equipe de transição – que está, no entanto, prevista na lei (a qual dispõe que o financiamento pode vir tanto de fundos federais como de doações privadas). Ele então começou a gritar: “Estão roubando meu dinheiro! Estão roubando a porra do meu dinheiro!”.5
Tendo alcançado o mais alto escalão do Estado sem nenhuma experiência pretérita no serviço público, Trump não se cansa de exigir de funcionários e colaboradores provas de lealdade incondicional. Como a rainha de Alice no País das Maravilhas, ele reage às contrariedades com um “que lhe cortem a cabeça”. Seus expurgos são constantes e têm os mais diversos pretextos: ter sido nomeado por um governo anterior ou pertencer ao “Estado profundo” (deep state), que deseja impedi-lo de governar. E seus inimigos são alvo de tuítes mortais ou de humilhações diversas. Quando John Brennan teve sua prerrogativa de acesso a segredos de defesa revogada, o ex-chefe da CIA que se tornou comentarista político na televisão ressuscitou uma palavra havia muito esquecida, em resposta a um tuíte do presidente: “Sua caquistocracia está afundando”.6
Derivada do grego kakistos (superlativo de “mau”) e kratos (“poder”), a palavra significa “o governo dos piores”. Inventada no século XVII para descrever a ascensão política de cidadãos menos qualificados ou menos escrupulosos, ela ganhou um novo fôlego com as eleições de Donald Trump e Jair Bolsonaro. O jornalista Alexander Nazaryan analisou as qualificações dos membros do governo Trump. Temos ali uma galeria de personagens malucos, notáveis em primeiro lugar por seus conflitos de interesse e pela falta de competência para os cargos que ocupam – “uma orgia para cleptocratas de primeira classe”. Se, nas palavras do Grover Norquist, presidente de uma associação de ativistas contrários ao pagamento de impostos, a Americans for Tax Reform, o objetivo daqueles que zelam pelo mercado é reduzir o tamanho do Estado até que se possa “afogá-lo em uma banheira”, a incompetência pode ser até mesmo um desejo, pois contribui para desacreditar a ideia de serviço público. Às vésperas da Grande Depressão, as virtudes da caquistocracia chegaram a ser celebradas. Em 1928, por exemplo, Homer Ferguson, ex-presidente da Câmara de Comércio dos Estados Unidos, declarou: “O melhor servidor do Estado é o pior. Um homem de primeira classe no serviço público é corrosivo. Ele destrói nossas liberdades. Quanto melhor ele for e quanto mais tempo permanecer no poder, mais perigoso será”.7
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*Ibrahim Warde é professor associado da Universidade Tufts (Estados Unidos).
1 Stanley Hoffmann, “The Arrival of World War II: An Anticlimax” [A chegada da Segunda Guerra Mundial: um anticlímax], The New York Times, 1º set. 1989.
2 Entre os filmes que trataram dele: General Idi Amin Dada: un Auto-Portrait [General Idi Amin Dada: um autorretrato], de Barbet Shroeder (1974), e O último rei da Escócia, de Kevin Macdonald (2007).
3 Dario Fo, “Le nouveau fascisme est arrivé” [O novo fascismo chegou], Le Monde, 11 jan. 2002.
4 Michael Lewis, The Fifth Risk: Undoing Democracy [O quinto risco: desfazendo a democracia], W. W. Norton, Nova York, 2018.
5 Ibidem.
6 Avi Selk, “Kakistocracy, a 374-year-old word that means ‘government by the worst,’ just broke the dictionary” [“Caquistocracia”, uma palavra de 374 anos que significa “o governo dos piores”, acaba de quebrar o dicionário], The Washington Post, 13 abr. 2018.
7 Thomas Frank, The Wrecking Crew: How Conservatives Rule [Equipe de demolição: como os conservadores governam], Metropolitan Books, Nova York, 2008.
Ilustração: Paulo Ito
Enviada para Combate Racismo Ambiental por Isabel Carmi Trajber.