Justiça. Por Julio Pompeu

No Teoria Política

A deusa assistiu a tudo com inesperado espanto. Há muito esperava algo assim. De passo em passo, viu que se afastavam dela. “O esperado não faz do acontecido algo menos triste”, pensou, “mas isto não deveria deixar espaço para o espanto”. Sabia que algo assim aconteceria cedo ou tarde. Achou até que aconteceu mais para tarde do que para cedo. O espanto não veio da afronta, do ato ou do seu tempo, mas da sua estética.

A Justiça é conhecida por seu temperamento severo e implacável, mas também belo e bom. É uma corretora do mundo. Não age, reage. Não faz do mundo o que ele é, mas se esforça por mantê-lo como era ou como deveria ser. Este é seu temperamento desde o início dos tempos. É sua sina e missão. Afeta aos homens do desejo de correção de si mesmos e do mundo a partir de seus afetos. Ela sabe que as cordas que manipulam os mortais, como marionetes, são seus afetos e não suas razões. É na alegria da bondade e no encantamento da beleza que a deusa da Justiça, como títere, provoca a razão dos homens a bolar meios de fazer-se no mundo. Sem estas cordas, entregam-se às feiuras e maldades das injustiças.

Por isso ela sabe que não foi por falta de razão ou racionalidade que aquela multidão se pôs a depredar da forma mais bárbara o Congresso e o STF. Foi por desafetos. Pela incapacidade de se afetarem de beleza e de alegria pelo bem. Marionetes mancas pela falta das cordas dos afetos sublimes. Sobram outras a lhes manipular. Cordas de outros afetos, de outras divindades. Não é à toa que no interior dos seus templos, logo atacaram as artes e tudo que havia de belo ao alcance das mãos ou do golpe de um tacape.

Foi interrompida em seus devaneios por Cila. “Está há muito por aqui?”, interrogou a deusa. “Não muito. Vim com a multidão.”. Cila é um monstro titânico. Um devorador de tudo e todos. Um destruidor caótico. Uma força de corrupção do mundo. Muitos dos esforços da Justiça são por amenizar os males de Cila e outras forças corruptoras. Ele age manipulando as cordas da vaidade, do ressentimento, do ódio, da brutalidade e da tristeza. Leva os homens à bestialidade e, no caso, a algumas patetices, posto que a razão processa mal estes afetos.

“Até onde você vai com isso?”, quis saber a Deusa. “Nobre Diké! – entidades titânicas como Cila, apesar de sua natureza e arte, respeitam os deuses olímpicos – Vim com estes homens, permanecerei com eles, irei quando se forem, é meu dever agir neles quando as leis não mais os protegem”. “As leis!”, pensou Justiça, “Elas existem para proteger os homens deles mesmos. Sem elas, como se protegerão da própria brutalidade e ambição?”. Cila calou-se. Não tinha o que dizer. Nada entendia de proteção.

Continuou a contemplar a depredação imaginando que outros homens reagirão a isso. Buscarão culpados. Talvez não consigam chegar aos filhos mais diletos de Cila. Não por falta de razão que os permita perceber quem são os humanos culpados por vacilarem em sua razão e entregarem-se aos afetos mais primitivos, mas pela falta dos afetos mais sublimes, por muitos abandonados.

“Já ouço ao longe, chamam por Nêmesis mais que por mim. Pobres homens…”

Ilustração: Mihai Cauli

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