Pedro não gosta de frio, mas encasacou-se por alguns anos em Chicago. Voltou doutor em economia e foi esquentar-se em São Paulo. Não teve dificuldades para conseguir trabalho mesmo depois de tanto tempo longe. Bom currículo, juventude e o mais importante: contatos. Muitos contatos. Ou, como se diz na língua do mercado, networking. Para ele, as relações sociais e profissionais se misturam. Desde pequeno andava pelos poucos lugares das poucas pessoas que faziam e fazem o mercado. Festas nos clubes, jantares, namoros, tudo na sua vida foi e é mercado. Vive a indistinção entre público e privado, profissional e pessoal, exibição e intimidade numa vida em que nenhum destes contrários parece existir realmente. Onde nada é cem por cento, exceto o dinheiro. Money é a única coisa concreta, distinta e significativa em seu mundo.
Os amigos não o chamam de Pedro, mas de Doca. Apelido que ninguém sabe ou se importa de onde veio. Diz-se apenas que é coisa de família, como quem diz: não lhe interessa. É, geralmente, cordial. Daquela cordialidade sorridente em alinhados dentes brancos que cumprimenta desconhecidos sem, ao mesmo tempo, dar-lhes real atenção. O apelido ajuda a iludir sobre a existência de uma intimidade qualquer, tanto para com gente de fora do mercado quanto para as outras Betes, Dudas, Linos que vivem as mesmas relações que Doca. Tudo no mercado é troca. Com o apelido, troca-se uma falsa intimidade por networking.
Das casas que frequenta, a que lhe causa mais desconforto é a de Cidinha. Ela vem da mesma gente de mercado que Doca, mas gosta de coisas e pessoas diferentes das que Doca gosta. Cidinha ama arte e cultura. Enche sua casa de escritores, pintores, escultores, cantores e suas obras. Suas festas são as mais heterogêneas da sociedade. A proximidade sorridente entre endinheirados do mercado e artistas descapitalizados permite que os artistas se sintam menos pobres e os ricos menos incultos. É a troca que se faz estando ali. Para Doca, apesar das conversas que lhe parecem chatas, as festas de Cidinha agregam valor ao seu networking.
Numa delas, percebeu-se solitário, acomodado num canto com um copo de caipivodka de lichia na mão. Isto era ruim para seu networking. Pensariam que ele é desinteressante ou pouco enturmado. Tratou de se meter na primeira conversa que encontrou. Falavam das pinturas de Sofia, de suas cores fortes e seus temas impactantes. Sofia nasceu rica como Doca, estudou em outro país como Doca, viajou por todo o mundo como Doca, mas esteve em inúmeros lugares em que Doca nunca esteve. Sofia pinta as cenas de pessoas simples e lugares pobres que visita. Destaca em cores o que sente. Quer transmitir sentimentos de compadecimento por uma gente que dá duro na vida. Tenta fazer um networking sentimental entre a gente do mercado e a gente que é mercadoria.
Doca ouvia quieto. Não entendia os sentimentos das telas de Sofia. Entende de números, porque para o mercado tudo é número, a economia é número, a vida é número. Mas gente não é número. Imaginou aquela conversa como equações pintadas em cores fortes. Não era a sua língua. Não era o seu mundo. Não era a sua realidade e tampouco seus sentimentos. Sentia apenas um enorme medo daquela conversa. Medo de perceberem que dela não entendia nada. Medo de não ter o que falar para pavonear-se como sábio do mercado. Medo de comprometer seu networking.
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Ilustração: Dali