Por Tiago Angelo, na Conjur
O Supremo Tribunal Federal retomou, nesta quinta-feira (2/3), o julgamento que define se o chamado “perfilamento racial” invalida provas colhidas durante abordagens policiais. Até o momento, os ministros avaliaram que o Judiciário deve fixar entendimento para proibir que agentes de segurança atuem de forma discriminatória. Porém, três magistrados opinaram que não houve racismo no caso concreto. O relator, Edson Fachin, interpretou que houve e votou para anular as provas decorrentes da ação policial.
O perfilamento acontece quando as buscas pessoais não são feitas a partir de evidências objetivas que apontem uma atitude suspeita, mas com base na raça, cor, descendência, nacionalidade ou etnicidade do alvo da abordagem.
O caso concreto que motivou o julgamento envolve um homem negro condenado a quase 8 anos de prisão por tráfico de drogas depois de ser flagrado com 1,53 grama de cocaína. Embora a análise se dê em um habeas corpus, a decisão pode servir como um importante precedente sobre o tema.
Por enquanto, o placar está em 3 a 1 em favor da divergência aberta pelo ministro André Mendonça. Para ele, embora provas colhidas em abordagens discriminatórias não devam ser admitidas, não há indicativo de que houve perfilamento racial no caso concreto. O magistrado foi acompanhado por Alexandre de Moraes e Dias Toffoli.
Já Edson Fachin, relator do caso, considerou que houve perfilamento, o que invalida as provas colhidas pela polícia. O magistrado não conheceu do HC, mas voto pelo trancamento, de ofício, da ação penal. O julgamento será retomado na próxima quarta-feira (8/1).
Voto relator
Segundo Edson Fachin, o Código de Processo Penal define que a busca pessoal só pode ser feita quando houver “fundada suspeita”. Assim, não se pode admitir abordagens policiais fundamentadas só em critérios de raça, cor ou aparência física.
“Ademais, o fato de a busca pessoal resultar em objetos ilícitos ou que constituam o corpo de delito não torna a revista lícita. O resultado da busca pessoal nesse sentido é irrelevante para a caracterização de sua licitude. O necessário para conferir legitimidade à busca pessoal é a existência de justa causa anteriormente à realização da medida, ainda que essa resulte infrutífera”, disse.
O relator também disse que é papel da sociedade, do sistema de Justiça e das forças policiais barrar comportamentos que, consciente ou inconscientemente, atribuem a pessoas negras sentidos negativos baseados em estereótipos “que os situam como sujeitos supostamente criminosos”.
“O sistema de Justiça ainda não deu mostras de que desativou a rede de estereótipos que atribui aos corpos negros sentidos sociais negativos que legitimam violências, inclusive estatais, como é o caso inequivocamente do encarceramento em massa de pessoas negras. É preciso fazer o registro de que o elemento raça acaba sendo, nesse contexto perverso, utilizado para a distinção dos sujeitos vítimas da letalidade das atividades policiais”, apontou.
O ministro propôs a fixação da seguinte tese:
A busca pessoal, independentemente de mandado judicial, deve estar fundada em elementos concretos e objetivos de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não sendo lícita a realização de medida com base na raça, cor da pele ou aparência física;
A busca pessoal sem mandado judicial reclama urgência para a qual não se pode aguardar uma ordem judicial;
Os requisitos para a busca pessoal devem estar presentes anteriormente à realização do ato e devem ser devidamente justificados pelo executor da medida para ulterior controle do Poder Judiciário.
Como a corte julga um Habeas Corpus, se vencer o posicionamento de Fachin a tese servirá como precedente, mas não terá que ser obrigatoriamente seguido em todas as instâncias do Judiciário.
Votos divergentes
Ao abrir a divergência, André Mendonça afirmou que provas obtidas por meio do perfilamento racial não devem ser admitidas. No entanto, disse que não há indícios de abordagem discriminatória no caso concreto, já que a busca pessoal supostamente ocorreu em um lugar conhecido por ser um ponto de tráfico de drogas.
“Tínhamos um local público e notoriamente conhecido como de tráfico de drogas. Eles estavam a uma distância, deram uma sirene, ao darem a sirene os indivíduos tentam se evadir. Efetivamente encontram drogas com o paciente. Ele tenta ainda ocultar uma quantidade, além da que foi apreendida. Ou seja, no caso concreto, eu não entendo haver razões ao paciente”, afirmou.
Mendonça, no entanto, se disse “aberto” à fixação de uma tese sobre o tema, mesmo votando contra a concessão do Habeas Corpus.
“Temos no CPP o artigo 244, que é o que nos atribui às autoridades de atuar e fazer uma abordagem mediante uma fundada suspeita. A fundada suspeita tem que ter, para a sua caracterização, elementos os mais objetivos possíveis, ainda que alguma subjetivação possa ser considerada”, ressaltou.
Ao acompanhar a divergência, Alexandre de Moraes também afirmou que o local em que houve a abordagem é conhecido por ser um ponto de tráfico. Assim, não seria possível caracterizar o caso como de perfilamento racial.
“Existe perfilamento em várias operações? Existe. Mas, nesse caso, há provas de que ocorreu? Não é um bom caso para se extrair essa tese”, afirmou Alexandre.
O ministro, no entanto, pontuou que o perfilamento é uma forma de racismo e deve ser combatido pelo Judiciário por meio de interpretações constitucionais em acordo às previsões da Constituição e da legislação brasileira.
“Não basta só a previsão, se não houver interpretação constitucional por todo o Judiciário e principalmente pelo STF que venha a permitir o efetivo e pleno combate ao racismo. Somente essa interpretação de efetivação das normas de combate ao racismo permitirá a erradicação. Uma forma grave de perpetuação do racismo estrutural é exatamente o perfilamento racial de pessoas afrodescendentes”, afirmou.
Julgamento do STJ
O caso foi analisado pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça antes de ir ao Supremo. Na ocasião, a Defensoria não citou o perfilamento racial. Em vez disso, pediu a aplicação do princípio da insignificância por causa da pouca quantidade de droga encontrada com o réu.
Quem levantou o tema do perfilamento racial foi o ministro Sebastião Reis Júnior, relator da matéria no STJ. Ele afirmou que, ao que tudo indicava, a “fundada suspeita” dos policiais militares que fizeram a abordagem foi só a cor da pele do suspeito.
“Não se falou de altura, de fisionomia, se tinha cabelo, se tinha barba. A única referência era a pele negra. E a situação era de uma pessoa parada do lado de um carro”, afirmou ele. “Para mim, ficou claro que o motivo da aproximação foi por se tratar de pessoa negra. Não tenho a menor dúvida disso.”
Com base nesse argumento, o magistrado propôs que a abordagem fosse reconhecida, de ofício, como nula, uma vez que haveria manifesta ausência de fundada suspeita para justificar o procedimento. Consequentemente, os elementos probatórios cairiam também, levando à absolvição do réu.
A proposta, no entanto, não convenceu os demais ministros da 6ª Turma. Eles disseram que não era possível saber se a abordagem se deu exclusivamente em razão da cor da pele do réu.
Ao levar o caso ao Supremo, a Defensoria mudou o enquadramento: em vez de pedir somente a aplicação da insignificância, introduziu os argumentos levantados por Sebastião Reis Júnior na análise da 6ª Turma.
“Como bem percebido pelo ministro Sebastião Reis Júnior, a ‘fundada suspeita’ para a abordagem policial que deu azo à revista corporal e à apreensão da droga foi fundada essencialmente na cor da pele negra do suspeito, o que configura perfeito exemplo de perfilamento racial”, diz o Pedro Henrique Lima.
HC 208.240
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Desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo, à esquerda, e presos após uma rebelião em Lucélia (SP), à direita | Crédito: Divulgação e Ponte