O Conselho Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Sul (CEDH–RS) e o o Conselho Estadual de Desenvolvimento e Participação da Comunidade Negra – CODENE/RS, vêm manifestar a sua solidariedade aos trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão na Serra Gaúcha/RS e repudiar os atos cometidos pelas vinícolas, outras empresas e propriedades envolvidas na prática deste crime. Na noite do último dia 22 de fevereiro, em uma operação conjunta da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) com o Ministério Público do Trabalho (MPT-RS), a Polícia Federal (PF) e a Polícia Rodoviária Federal resgataram 215 trabalhadores em situação análoga à escravidão que atuavam na colheita da uva e no abate de frangos em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha[1].
As pessoas foram aliciadas principalmente da Bahia, mas também foram encontradas, dentre elas, indígenas do próprio Rio Grande do Sul e argentinos, inclusive menores de 18 anos[2]. Conforme a matéria abaixo, as promessas não foram cumpridas desde o início:
Ainda na estrada, contaram os trabalhadores, começaram a notar que a realidade não seria como prometida. O gasto com comida nas paradas já estava sendo descontado do salário, e a promessa de banho quente e descanso ao chegar também não foi concretizada.
A pousada onde os trabalhadores estavam tem quatro andares de alojamento, com quantidade de camas que varia conforme o tamanho do quarto. A reportagem esteve no local e observou colchões e chão sujos, além de forte mau cheiro. Conforme relato dos trabalhadores, os lençóis não eram trocados. O local foi interditado na quarta-feira[3].
Havia tratamento degradante de diversas formas, de acordo com as denúncias, inclusive, atos de violência que podem ser enquadrados em lesão corporal (artigo 129, do Código Penal) e tortura (artigo 1º, da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes e artigo 1º, da Lei nº 9.455/1997), com choques elétricos e o uso de spray de pimenta4. Os trabalhadores baianos eram ameaçados se faltassem um dia, com a cobrança R$ 1.600,00, pela despesa com a viagem5. Ocorreu o caso de um que, com esta ameaça, teve crise de asma, e recusaram levá-lo ao hospital, configurando mais um crime, a omissão de socorro (artigo 135, do Código penal). Pelo que foi exposto à imprensa, essas pessoas eram exploradas pelas vinícolas Aurora, Salton e Garibaldi e mais 23 proprietários, os quais os nomes não foram divulgados ainda[5].
Os elementos conhecidos até o momento, já são suficientes, por si somente, para a caracterização de redução das trabalhadoras e trabalhadores resgatados à condição análoga de escravas e escravos. O Brasil, já há muito tempo ratificou e tem vigente em seu Território a Convenção sobre Escravatura de 1926 e a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura de 1956, a Convenção Americana de 1969 (Pacto de São José da Costa Rica) e o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional de 2002.
Com base nas disposições da Convenção Americana de 1969, o Brasil já foi condenado por infringência o artigo 6.1 c/c os artigos 1.1, 3, 5, 7, 11 e 22 , todos da Convenção Americana no caso TRABALHADORES DA FAZENDA BRASIL VERDE VS. BRASIL. Da sentença, conforme Resumo Oficial Emitido Pela Corte Interamericana, constou que:
“(…) o Estado não atuou com a devida diligência para prevenir adequadamente a forma contemporânea de escravidão constatada no presente caso e nãobuscou, de acordo com as circunstâncias do caso, por fim a esse tipo de violação. A Corte considera que esse descumprimento do dever de garantia é particularmente sério devido ao contexto conhecido pelo Estado e às obrigações impostas em virtude do artigo 6.1 da Convenção Americana. Em razão do exposto, o Tribunal conclui que o Estado violou o direito a não ser submetido à escravidão e ao tráfico de pessoas, previsto no artigo 6.1 da Convenção Americana, em relação aos artigos 1.1, 3, 5, 7, 11 e 22 do mesmo instrumento (…)
Como se observa, o Brasil prossegue sem ainda ter adotado as medidas necessárias para a extinção e prevenção das atuais formas de escravidão, em descumprimento à Sentença da CIDH, bem como em ofensa aos mesmos dispositivos convencionais apontados. Nesse sentido, impõe-se apontar também para a responsabilidade do Estado do Rio Grande do Sul e o Município de Bento Gonçalves, também por descumprimento dos deveres que lhes cabem no âmbito de suas respectivas competências, tendo pois sido corresponsáveis pelo acontecido, com especial relevo para a possível participação comissiva e omissiva de servidores públicos estaduais e municipais.
Nesse sentido, necessária também se faz a apuração de denúncias do envolvimento de agentes públicos nos crimes indicados. Há matérias[5] relatando que policiais militares estariam envolvidos em coações aos trabalhadores, cometendo atos comissivos e omissivos, acobertando e servindo aos interesses empresariais e se beneficiando do trabalho análogo ao escravo, naquela região do estado. O Governador do Estado, Eduardo Leite, afirmou em redes sociais que a Corregedoria da Brigada Militar apurará o eventual envolvimento de seus servidores. Estes Conselhos também buscarão acompanhar esta investigação.
Outra preocupação é com os desdobramentos e a efetividade dos termos de ajustamento de conduta do Ministério Público do Trabalho (MPT). Primeiramente, quer-se elogiar a operação realizada e os expedientes para garantir um apoio emergencial a estes trabalhadores. Todavia, o ponto 5 do termo aditivo ao Termo de Ajuste de Conduta Emergencial IC 000276.2015.04.006/6 abre mão de ação de dano moral coletivo se as empresas envolvidas custearem alojamento, alimentação e transporte de volta aos trabalhadores e pagarem devidamente as verbas rescisórias. E, tendo em vista o TAC nº 38/2021; o termo de aditamento 25/2016, ao TAC 130/2013; TAC nº 130/2013; o TAC proveniente do Procedimento Investigatório nº 919/03; percebe-se que estas empresas são reincidentes há muito tempo em irregularidades e desrespeito a direitos trabalhistas, cabendo uma ação mais contundente em relação a elas, como prevê o ordenamento jurídico, para que não valha a pena mais insistir nestas condutas. Assim, o CEDH – RS se soma a manifestação do Conselho Estadual de Desenvolvimento e Participação da Comunidade Negra – CODENE/RS, para que o MPT possa entrar com a devida ação civil pública e outras medidas judiciais cabíveis, sem prejuízo de outros TACs, desde que não estimulem os envolvidos a manter a postura criminosa.
O CEDH – RS e o CODENE – RS irão colher informações e acompanhar a atuação das instituições e órgãos competentes. Em um país que possui ainda problemas políticos e sociais devido a cerca de 300 anos de regime escravidão da população negra e indígena, estruturado, por isso, em cima da injustiça social, não pode tolerar práticas como estas. Fere-se a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da Constituição Federal), impedindo que se realizem os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, quais sejam: construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º, I, III e IV, da Constituição Federal). Como dito em nota pelas Defensorias Públicas da Bahia e do Rio Grande do Sul[6] é inadmissível a normalização do autoritarismo por meio de discurso de ódio, que buscam legitimar o crime aqui discutido, com preconceito, racismo, xenofobia, ou mesmo por defesas de negação a direitos, como quando se ataca programas sociais imprescindíveis num país tão desigual[7].
É preciso lembrar que a ordem econômica deve ter como princípios a função social da propriedade e a redução das desigualdades regionais e sociais (artigo 170, III e VII, da Constituição Federal). Por isso, após a devida apuração e processo legal, insta que os responsáveis identificados tenham a suas propriedades, que estejam envolvidas com o trabalho análogo ao escravo, expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei (artigo 243, da Constituição Federal com a redação dada pela – Emenda Constitucional (EC) nº 81/2014). Afinal, reduzir alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto, é crime (artigo 149, do Código Penal), e não pode ser de forma alguma admitido.
Com base no exposto, o CONSELHO ESTADUAL DE DIREITOS HUMANOS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL e o CONSELHO ESTADUAL DE PARTICIPAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DA COMUNIDADE NEGRA, ao mesmo tempo em que ora prestam sua solidariedade às trabalhadoras e trabalhadores efetivamente vitimizados, entendem como fundamental a cabal apuração de todos os fatos e responsabilidades, alertando que estes Colegiados não albergam o entendimento de que as empresas envolvidas e, muito menos o Município de Bento Gonçalves e o Estado do Rio Grande do Sul venham buscar escudar-se de suas responsabilidades civis – e penais, no que couber – sob argumento da atuação de empresa terceirizada.
MARCIO LUIS ROSA DE OLIVEIRA JÚLIO PICON ALT
Presidente do CODENE – RS Presidente do CEDH – RS
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[1] BRASIL DE FATO. Operação conjunta deflagra trabalho análogo à escravidão na colheita da uva no RS. Disponível em: https://www.brasildefators.com.br/2023/02/23/operacao–conjunta–deflagra–trabalhoanalogo–a–escravidao–na–colheita–da–uva–no–rs. Acesso em: 27 fev 2023.
[2] ANTONELLO, Lizie; LEITZKE, Vitória. Operação combate suposto trabalho análogo à escravidão na colheita da uva em Bento Gonçalves. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/pioneiro/geral/noticia/2023/02/operacao–combate–suposto–trabalhoanalogo–a–escravidao–na–colheita–da–uva–em–bento–goncalves–clegbbp6v00dk017lxhlpj6p6.html. Acesso em: 27 fev 2023. Publicado em: 22 fev 2023.
[3] SILVA, Rafael Dorneles. O que já se sabe sobre o caso de trabalhadores resgatados em condições análogas à escravidão em Bento Gonçalves. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/pioneiro/policia/noticia/2023/02/o–que–ja–se–sabe–sobre-o-caso–detrabalhadores–resgatados–em–condicoes–analogas–a–escravidao–em–bento–goncalvescleipkvpd0005016m8uuew3q6.html. Acesso em: 27 de fev 2023. Publicado em: 24 fev 2023. 4SUL21. Bancada negra propõe comissão para investigar combate ao trabalho escravo no RS. Disponível em: https://sul21.com.br/noticias/geral/2023/02/bancada–negra–propoe–comissao–parainvestigar–combate–ao–trabalho–escravo–no–rs/. Acesso em: 27 fev 2023. Publicado em: 27 fev 2023. 5VALLEDA, Luciano.Trabalho escravo em Bento: ‘Eles esperavam que eu ficasse vigiando e entregasse nomes’. Disponível em: https://sul21.com.br/noticias/geral/2023/02/trabalho–escravo–em–bento–elesesperavam–que–eu–ficasse–vigiando–e–entregasse–nomes/. Acesso em: 27 fev 2023. Publicado em: 25 fev 2023.
[4] SUL21. Trabalhadores resgatados em Bento Gonçalves terão verbas rescisórias garantidas. Disponível em: https://sul21.com.br/noticias/geral/2023/02/trabalhadores–resgatados–em–bento–goncalves–teraoverbas–rescisorias–garantidas/. Acesso em: 27 fev 2023. Publicado em: 25 fev 2023.
[5] JACOBSEN, Gabriel. Leite convoca reunião de emergência após denúncias de envolvimento de PMs em esquema de trabalho análogo à escravidão na Serra. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/pioneiro/geral/noticia/2023/02/leite–convoca–reuniao–de–emergenciaapos–denuncias–de–envolvimento–de–pms–em–esquema–de–trabalho–analogo–a–escravidao–na–serracleodz501004v016mjzovbe8o.html. Acesso em: 01 mar 2023. Publicado em: 28 fev 2023.
[6] https://www.instagram.com/p/CpOl_a6uIGv/?igshid=YmMyMTA2M2Y%3D
[7] https://www.instagram.com/p/CpFjth6uvZG/?igshid=OTA3YzJiYTA%3D
Enviada para Combate Racismo Ambiental por Rodrigo de Medeiros.
Qualquer forma de discriminação tem e será SEMPRE combatida é inaceitável que seres humanos ou qualquer ser vivo seja humilhado ou exposto à qualquer situação de degradação e não direito a VIDA E SAÚDE em sentido amplo!!