No Terapia Política
O amigo chegou atrasado, como sempre. Não reclamou porque atraso era hábito comum entre os dois. São donos do seu tempo. Fazem como querem no tempo que querem. São vencedores. Pessoas de valor, como se diz hoje em dia com alguma pedância e a breguice dos modismos linguísticos.
-A Su vai bem?
-Sim! E a Rê? Pensei que ela viesse também.
-Não. Ela preferiu fazer compras. Sabe como ela é.
-Verdade, fui ingênuo em imaginá-la aqui. As mulheres não conseguem acompanhar nossas conversas – Disse com o sorriso que ninguém conseguia saber ao certo se era forçado ou genuíno. Menos ainda o que significava – Vinho?
-Claro! Sempre!
-Onde está o garçom? Ele ainda não veio?
-Claro que não! Sabe como essa gente é. Desqualificada e preguiçosa – disse já movendo a cabeça e dirigindo um olhar firme entre os tensos músculos da face do garçom que os observava atento.
-Boa noite, senhores. Sejam bem-vindos! – Disse o garçom com muita sobriedade.
-Pode chamar o sommelier?
-Eu sou o sommelier, senhor.
Não escondeu o olhar de surpresa. Olhou de alto a baixo, como quem avalia a carcaça da mercadoria em busca de defeitos e qualidades para avaliar se vale o preço. Entre indignação e resignação, concentrou-se na carta de vinhos. Debateu com o amigo sabores e abstrações em busca de uma harmonia entre refeição, assunto, ambiente e, claro, o vinho. As sugestões do sommelier foram ignoradas como se fossem apenas os ruídos das mesas em volta. Escolheram.
-Boa escolha, senhores! – Disse o sommelier ao sair em direção à adega.
-Viu?
-Claro! Sommelier! É cada uma… Veja se alguém assim pode ser sommelier. Essa gente sem estofo, coitada, mal serve para carregar pedras, imagine se é capaz de alguma sofisticação!
-Mas hoje em dia, não tem jeito. Está tudo assim. É essa gente diferenciada em todos os ambientes. E como é difícil encontrar quem trabalhe direito!
-Lá na empresa é a mesma coisa. O problema é que se juntou a preguiça natural da gentalha a essas políticas sociais que dão bolsa isso, bolsa aquilo. Agora, só querem saber de ficar acomodados, de fazer festas e por aí vai. Com trabalho mesmo, ninguém quer nada.
-E ainda são impertinentes! Mês passado, percebi que nos meus mercados, os operadores de caixa demoravam muito no banheiro. Alguns ficavam mais de dois, três minutos sem trabalhar. Sabe como é, inventam modos para ganhar sem trabalhar. O que eu fiz? Proibi usarem os banheiros. Claro que, às vezes, um ou outro precisa fazer suas necessidades, como todo animal, por isso mandei usarem fraldas geriátricas. Acredita que alguns não gostaram? Olharam de cara feia e agora falam em chamar o sindicato, aquele antro de vagabundagem. É, meu amigo, a vida de quem produz e dá empregos não é fácil…
-Verdade. A gente, praticamente, se esforça sozinho. Eu, por exemplo, faço academia todos os dias pela manhã e boxe no final da tarde. E ainda tenho disposição para, às vezes, nadar à tarde no club. Precisa ter disciplina e determinação para isso, coisa que essa gente não tem. Nem sabem o que é isso!
À chegada do vinho, ambos foram servidos para a prova. Discutiram o bouquet. Bochecharam e o engoliram abrindo a boca em estalos ao final.
-Tem taninos acentuados.
-Percebi. Também, tons de carvalho e uma mineralidade singular.
-Sim. E um retrogosto ferruginoso, algo como…
–Sangue.
-Isso! Sangue. Muito bom! Pode servir.
–
Ilustração: Mihai Cauli