Então presidente do Conselho da Amazônia Legal citou demanda por ação de “grande envergadura”, mostram atas inéditas
Por Anna Beatriz Anjos, Agência Pública
Em uma reunião do Conselho Nacional da Amazônia Legal ocorrida em 30 de agosto de 2022, seu então presidente, o general da reserva Hamilton Mourão (Republicanos-RS), atual senador e ex-vice-presidente da República, admitiu que garimpeiros seguiam “invadindo a área Yanomami” e que, por esse motivo, havia a “necessidade de ser deflagrada uma operação de grande envergadura” no território, algo que não ocorreu durante todo o governo de Jair Bolsonaro. A fala está registrada nas atas dos encontros realizados pelo colegiado, que Agência Pública obteve via Lei de Acesso à Informação (LAI).
A liderança Yanomami Dario Kopenawa já havia afirmado ter conversado pessoalmente com Mourão pedindo “providências mais urgentes para retirar retirar os garimpeiros” do local. “Mas não aconteceu nada e não foram tomadas as providências que pedi”, contou Kopenawa em entrevista à TV Globo no fim de janeiro, quando a crise humanitária na maior terra indígena do país virou assunto nacional depois de uma visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao local. Em 20 de janeiro, o governo federal decretou emergência em saúde pública em decorrência de desassistência à população Yanomami, causada pela invasão de cerca de 20 mil garimpeiros ilegais no território, segundo entidades indígenas, o que fez o desmatamento decorrente do garimpo explodir em 309% por ali desde 2018, conforme levantamento da Hutukara Associação Yanomami (HAY).
Ao longo das dez reuniões ordinárias do Conselho, de fevereiro de 2020 até o fim do governo Bolsonaro, a invasão garimpeira no território Yanomami foi citada apenas em outra ocasião, além da rápida menção de Mourão em 30 de agosto do ano passado – e o intuito não era sequer propor medidas de enfrentamento ao problema.
Em 23 de novembro de 2021, durante o sétimo encontro do colegiado, o então ministro da Saúde Marcelo Queiroga criticou a criação de “narrativas” em relação à situação. Segundo o registro, ele afirmou que seu ministério tinha “atenção especial com os Yanomamis, onde existe um problema crônico há mais de três décadas”, e que “pessoas que nada têm de concreto em relação ao interesse da população indígena exploram esse fato para criar as mesmas narrativas de sempre, notadamente na região de Surucucu onde o crime organizado usa a populações indígena no garimpo ilegal”. No texto, Mourão aparece logo em seguida dizendo que o caso “vem sendo explorado de forma totalmente inverídica pela mídia”. Alguns dias antes, o Fantástico, da TV Globo, havia divulgado reportagem com imagens inéditas da crise sanitária na terra indígena, citando especificamente Surucucu, uma das áreas mais afetadas pelo garimpo na Terra Indígena Yanomami.
O Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL) foi retirado da estrutura do Ministério do Meio Ambiente e colocado por Jair Bolsonaro sob a alçada da Vice-Presidência da República em 11 de fevereiro de 2020. Hamilton Mourão se tornou presidente com a tarefa de “coordenar e integrar os esforços federais pela preservação, proteção, desenvolvimento da Amazônia brasileira e cooperação Amazônica”. Na prática, a principal ação do Conselho foi a viabilização de três Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GOLs) na Amazônia – Verde Brasil I e II e Samaúma –, criticadas pela inserção das Forças Armadas no combate a crimes ambientais e pela incapacidade de frear a alta do desmatamento no bioma, apesar de terem consumido R$550 milhões dos cofres públicos.
A 16 dias do fim da gestão Bolsonaro, em sua última reunião, o CNAL apresentou um plano para a Amazônia, chamado Plano Nossa Amazônia, com medidas que o próprio governo descumpriu e atacou durante seus quatro anos de duração, como “fortalecer órgãos de fiscalização e de combate aos ilícitos ambientais e fundiários” e “restabelecimento da governança Fundo Amazônia”, paralisado logo no início da gestão Bolsonaro.
‘Não liberar mineração em terras indígenas é “hipocrisia”’
Embora a crise humanitária provocada pelo garimpo ilegal entre os Yanomami tenha sido pouco abordada nas reuniões, a defesa da liberação da mineração em terras indígenas ocorreu em pelo menos duas reuniões do CNAL.
Hamilton Mourão se manifestou a favor da medida em mais de uma ocasião, como já fez também publicamente. Em uma delas, no dia 10 de fevereiro de 2021, no primeiro encontro do colegiado naquele ano e quarto no geral, o general da reserva chamou de “hipocrisia” a resistência à aprovação do Projeto de Lei 191/2020, que propõe, entre outros pontos, autorizar a pesquisa e lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos em territórios indígenas – a Constituição condiciona essa possibilidade à decisão do Congresso Nacional e à consulta às comunidades afetadas. “Tem ouro, o ouro está sendo explorado, e da forma que está sendo explorado devasta o meio ambiente, não paga imposto e não tem royalties para os indígenas que estão na região. Só tem prejuízo, mas a turma da hipocrisia levanta essa bandeira: ‘não, vai destruir, vai acabar com a cultura’. Não vai acontecer nada disso, muito pelo contrário”, afirmou, conforme o registro.
O então presidente do CNAL disse ainda ter “a esperança de que com as novas lideranças dentro do Congresso, com a nova maioria sendo composta, consigamos avançar na questão da regularização fundiária; a questão da mineração em terra indígena é algo que está 33 anos parado no Congresso para definir e não define”. Nove dias antes daquele encontro, em 1º de fevereiro, Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (PSD-MG) haviam sido eleitos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado pela primeira vez, ambos com o apoio de Bolsonaro e sua base parlamentar.
Naquela reunião, outros integrantes do governo se mostraram otimistas com a eleição de Lira e Pacheco. Então ministro do Meio Ambiente, o hoje deputado federal Ricardo Salles (PL-SP), declarou que “felizmente houve a mudança do cenário político” porque, de acordo com ele, era necessário “gastar um pouco da nossa energia este ano agora” para aprovar projetos de interesse que ainda não haviam saído, como o da mineração em terras indígenas. O general da reserva Augusto Heleno, à época ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), indicou ter a “impressão que o panorama político com essa eleição do Congresso melhorou, não sei quanto tempo esse ambiente vai perdurar, mas sentimos que desanuviaram essa carga que estava acontecendo” e que queria ver se era possível “desencravar algumas coisas que ficaram paradas lá”.
O PL 191/2020 não foi transformado em lei, tampouco o PL 2.633/2020, ao qual Mourão se referia quando citou a necessidade de avançar na “questão da regularização fundiária” – o projeto altera as regras de regularização fundiária das ocupações de terras públicas e, de acordo com especialistas, pode estimular invasões e desmatamento. Poucos dias depois da reunião, ainda em fevereiro de 2021, uma nova proposta (PL 510/2021) com a mesma finalidade foi apresentada pelo Senador Inará (PSD-TO). Ela tramita no Senado em conjunto ao PL 2.633/2020, aprovado na Câmara em agosto de 2021.
Em trechos dos registros dos encontros do Conselho Nacional da Amazônia Legal, as duas pautas são descritas como prioridade do governo Bolsonaro, sobretudo a regulação fundiária, mencionada em vários momentos. Também em 10 de fevereiro, o então secretário executivo adjunto da Secretária de Governo (Segov) da Presidência da República, general da reserva Mário Fernandes – número dois do à época ministro-chefe da Segov, Luiz Eduardo Ramos, extremamente próximo a Jair Bolsonaro – afirmou que a secretaria buscava se “articular junto ao Legislativo” para “combater o que se criou” em relação a esses e outros projetos de interesse do governo, “principalmente em torno da regularização fundiária”. Os PLs 2.633/2020 e 510/2021 foram apelidados de “PLs da grilagem” pela sociedade civil e especialistas, que se mobilizaram várias vezes nos últimos anos para evitar seu avanço das Casas.
Descontentamento com cobertura dos assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips
Ao longo das dez reuniões ordinárias do Conselho, eram recorrentes os ataques de integrantes do governo Bolsonaro ao trabalho da imprensa, refletindo um comportamento frequente do presidente Bolsonaro e seus aliados durante seus quatro anos na presidência.
Hamilton Mourão, além de endossar as críticas de Marcelo Queiroga sobre a suposta criação de “narrativas” em relação aos Yanomami em novembro de 2021, também se mostrou descontente com cobertura jornalística dos assassinatos do indigesta Bruno Pereira e do repórter britânico Dom Phillips, no início de junho do ano passado, no Vale do Javari, no Amazonas. Segundo a Polícia Federal, Bruno e Dom foram assassinados a mando de Ruben Dario da Silva Villar, conhecido como “Colômbia” e suspeito de chefiar um esquema de pesca ilegal na Terra Indígena (TI) Vale do Javari. Bruno, que trabalhava na União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), há meses denunciava e agia contra os crimes ambientais que acometiam o território, como a pesca e caça ilegais.
Em 30 de agosto de 2022, durante a nona e penúltima reunião do CNAL sob a presidência de Mourão, o general da reserva, de acordo com o registro, “citou que a mídia, se aproveitando das lamentáveis mortes do indigenista da Funai e do jornalista, ocorridos na região do Vale do Javari, explorou o fato de os ministérios envolvidos no combate às ilegalidades ambientais estarem enfrentando dificuldades para cumprir com suas atribuições, em face de restrições orçamentárias por parte do governo federal”. Essa é a única menção à situação na TI Vale do Javari, alvo de diversas pressões externas, denunciadas exaustivamente pela Univaja, e onde há a maior concentração de povos indígenas isolados do mundo. Nos registros não há referência a nenhuma discussão sobre o papel do Exército na região, uma vez que se trata de área de fronteira, o que envolve segurança nacional.
Em 10 de fevereiro de 2021, Mourão também criticou o trabalho da imprensa em relação à vacinação contra a Covid-19. À época, o então presidente Jair Bolsonaro dava diversas declarações públicas contrárias à vacinação – em dezembro de 2020, havia dito, por exemplo, que “a pressa da vacina não se justifica”. O Brasil engatinhava na imunização da população contra a Covid: a primeira dose de Coronavac havia sido aplicada na em São Paulo em 17 de fevereiro, menos de um mês antes da reunião.
Apesar da cruzada empreendida por Bolsonaro e seus aliados contra a vacinação, Mourão confessou naquela ocasião que a medida iria “minorar risco” da pandemia. “Nesta situação, temos ainda o enfrentamento da pandemia. A chegada das vacinas, pouco a pouco, vai minorar esse risco. E acho que todos aqui têm a consciência plena que o ‘Partido da Suprema Imprensa’ tem feito um trabalho péssimo na divulgação do que acontece no mundo em relação à vacina”, afirmou. ‘Está todo mundo se esfaqueando por vacina e ele continua a repetir aquela história que estamos atrasados. Pelo contrário, já ultrapassamos todos os países da Europa Ocidental. Só estão na nossa frente hoje os EUA, que tem vacina lá dentro.”
Em sua fala naquele dia, Augusto Heleno questionou agressivamente os órgãos de comunicação brasileiros que, de acordo com ele, “são completamente despreparados”. Heleno defendeu que o governo Bolsonaro perde “muito na narrativa” sobre a Amazônia, um problema “muito sério” que ele atribuiu a “uma imprensa completamente contaminada”.
“Eles nem percebem o quanto são comunizados. Não percebem que destruir o país como eles estão tentando, já anunciaram, eles têm que derrubar o Presidente da República em 2021”, declarou. “É um negócio assustador. É uma coisa assim que choca. Não conseguimos entender como é que uma pessoa… Aí vem o tal do pertencimento. A maioria dos nossos jornalistas não tem pertencimento de que são brasileiros. Eles não percebem que nasceram no Brasil, que eles precisam cuidar do seu país, vai cair nos filhos deles, nos netos deles. É um sintoma de imbecilidade.”
Trecho da ata do CNAL do dia 10 de fevereiro de 2021
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Foto: Victor Moryama /ISA