Como Sahrãzãde curou um fanático. Por Abrao Slavutzky

em Terapia Política

Nas noites das “Mil e uma noites”, brilhava a sensualidade astuta de Saharãzãde. O livro transcorre na cama: o erotismo, a relação sexual, depois as histórias excitantes até o amanhecer. O começo foi quando o sultão descobriu a traição da sua primeira esposa e concubinas. A partir daí, ele ficou fanático contra as mulheres, se casava, tinha uma relação sexual e mandava matar ao amanhecer.

Os crimes estavam exterminando as virgens do reino quando a filha do vizir anuncia a seu pai que irá se casar com o sultão. Seu pai se assustou, mas ela explicou que tinha um plano: levaria sua irmã com ela para viver no palácio. Ela lia desde criança na biblioteca do seu pai, sabia muitas histórias e ainda escutava os viajantes contadores de aventuras. Casa com o sultão e toda noite após a relação conjugal, a irmã pede a Saharãzãde para contar uma história – e ela sabia narrar, criar suspense e quando interromper, estimulando a curiosidade do sultão. São as famosas Aventuras do Ali Babá e os quarenta ladrões, o gênio da garrafa, Simbad, o marujo, Aladim e a lâmpada maravilhosa, histórias de amores, traições e mortes.

Quando criança, eu imaginava a montanha dos quarenta ladrões se abrindo com a frase: “Abre-te, Sésamo”, a ponto de um dia, diante de uma enorme rocha de granito, repeti a frase mágica. O livro “As mil e uma noites” estimulou a imaginação dos escritores, como Gabriel García Márquez, ainda criança, e foi determinante na sua obra. Já Walter Benjamin chamou atenção para o poder de cura das histórias que aplacaram a crueldade do sultão.

Fanatismo

Fanatismo é a paixão pela certeza, uma fé cega que permite contar só até UM. Não suporta o dois, o contraditório; detesta as perguntas, vive em guerra. Há diferentes fanatismos: religioso, político, esportivo, nacionalismo, machismo, e tantos mais. Um fanático se forma nas identificações. Um líder autoritário provoca esse entusiasmo nos ressentidos, estimulando o ódio e as armas. Um líder cruel divide uma família, um país, apregoa a guerra como salvação. As idealizações ocorrem como aprendeu Ingmar Bergman, aos 16 anos, em Weimar, Alemanha. O futuro diretor de cinema fora convidado por amigos a ir num comício de Adolf Hitler numa praça repleta de gente apaixonada. Relata no seu livro autobiográfico Lanterna mágica que naquele dia ele se tornou um jovem nazista, e depois se arrependeu. É animador quando um fanático se arrepende, e creio que é comum se viver fases de muita certeza, ainda mais na juventude. Já os mais velhos, quando se tornam fanáticos, sonham que se rejuvenescem e se imaginam heróis.

O fanatismo também está associado ao poder, à competição, à inveja: no casal, entre irmãos, no mundo. Ocorre quando a gente pensa sempre ter razão, ser superior, como acontece entre vizinhos ou cidades vizinhas. Também se mostra como o ódio entre as raças, como a dos brancos contra os negros, escravizando, matando, ou contra os indígenas, como o genocídio yanomami. Lembro o nazismo que gerou o “antissemitismo redentor”, em que era preciso matar os judeus para o bem da humanidade, como escreveu Saul Friedlander no premiado livro A Alemanha nazista e os judeus. Na raiz da crueldade está o narcisismo das pequenas diferenças, uma arrogância que faz do fanatismo uma arma política, uma estratégia de poder. A democracia é frágil, é ameaçada pelo extremismo sedutor, que se disfarça, mas é o inimigo íntimo da liberdade.

Saharãzãde e o Psicanalista

Saharãzãde contava histórias, enquanto o psicanalista escuta. São caminhos diferentes, capazes de ampliar a ótica com que a gente se vê a si, aos demais e ao mundo. Um mundo onde a realidade individual e a social se interpenetram. Freud construiu pontes entre a pessoa e a sociedade como ocorreu no seu estudo da psicologia das massas e análise do Eu. Estudo decorrente da Grande Guerra que mudou sua forma de pensar a condição humana. O fanatismo das massas dava seus primeiros passos na História. Uma massa encontra um líder que expressa seu ideal de Eu, com o qual as pessoas se identificam, empolgadas. O que aparenta ser a salvação termina na destruição, o fanatismo é o extremismo, a necropolítica. Quando as janelas e portas se encerram nas certezas, geram o mais cego dos mundos. Aos poucos, uma parte dos cegos está voltando a ver e precisam ser acolhidos. Não se combate o fanatismo com violência, mas com leis, programas instrutivos e conversas. É preciso ressuscitar a boa arte de conversar para diminuir o discurso de ódio.

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone 

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