Ativista Neide Abati, de 84 anos, narra resistência nas periferias desde a ditadura
Por Nathallia Fonseca, Agência Pública
Democratizar o acesso à educação, saúde e alimentação adequada foram três sonhos que impulsionaram a vida política de Neide Abati, de 84 anos, fundadora da União Popular de Mulheres do Campo Limpo, movimento que promove a autonomia e oferece acolhimento a mulheres na periferia de São Paulo. Técnica de enfermagem aposentada, ela é uma das muitas mulheres que atuaram nas bases da luta feminista no Brasil no que hoje é entendido como feminismo periférico ou decolonial, mas que para Neide significa de fato olhar – e lutar – pelas necessidades das mulheres da sua região.
Durante os anos de ditadura, Neide somou à luta por creche e saúde integral da mulher, além do que ela chama de “trabalho nos bastidores”, ajudando presos políticos com alimentação, cuidados médicos e mais tarde sendo ela própria perseguida por alfabetizar famílias da região do Campo Limpo e Capão Redondo, na Zona Sul paulistana. A região pertence à subprefeitura mais populosa de São Paulo, com três distritos e 650 mil habitantes.
O nascimento oficial da União Popular de Mulheres (UPM) do Campo Limpo e Adjacências ocorreu depois, em 1987. O movimento, segundo as diretoras, atua em “todas as frentes necessárias” e atualmente administra também uma casa de acolhimento de curta duração para mulheres que sofrem violência doméstica.
Ela diz que foram as especificidades das demandas, muitas vezes aliadas à falta de acesso que, para ela, até hoje constitui o problema social mais grave das periferias brasileiras, que levaram à criação do coletivo. “Existia a União de Mulheres de São Paulo, começamos a participar dos encontros, mas lá a gente ficava à margem nas reuniões, tudo que a gente falava, sempre à margem. Foi quando entendemos que era importante criar a nossa”, diz Neide ao lembrar que a região do Capão Redondo à época da criação da UPM era um “caos”.
“Eram muitos casos de estupro, mulheres violentadas, meninas violentadas. Faltava ambulância, faltava maternidade”, diz. “Às vezes uma mulher era estuprada e quando ia denunciar, era acusada de usar uma roupa curta demais. Então ela nem ia no delegado mais, para não ser humilhada. Ela falava com a gente e no dia seguinte íamos lá, 30, 40 mulheres na porta da delegacia para denunciar juntas”, diz.
Neide é uma mulher pequena e de sorriso fácil. Ao falar de política, porém, sua postura assume uma dureza imediata. É com esse tom que ela critica uma negligência na segurança pública. “A gente já pedia uma delegacia especializada na defesa da mulher naquela época. Até hoje não tem. Faz 36 anos que a gente pede”. A única Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) ativa na Zona Sul da capital paulista está localizada na Vila Clementino, um bairro nobre próximo ao Parque Ibirapuera, a cerca de 15 quilômetros da região do Campo Limpo.
Junto à UPM, a ativista participou mais tarde do Conselho Nacional que discutiu a criação do Sistema Único de Saúde, no qual lutou pela promoção da saúde integral da mulher. “Foi um debate que envolveu o Brasil inteiro e nós estávamos lá”, diz. Ela também destaca a luta por creches, iniciada ainda durante a ditadura, como um marcador de conquistas. “Ter um lugar seguro para deixar as crianças é principalmente sobre a mulher poder trabalhar e estudar com tranquilidade. A conquista da autonomia que a gente tanto fala e tanto quer. Nós brigamos por isso”.
Hoje, a sede do movimento abriga a diretoria, composta por voluntárias, e espaços onde ocorrem aulas de costura e oficinas sazonais; um núcleo do Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (MOVA), criado pelo educador Paulo Freire – cuja foto ocupa uma das prateleiras na recepção da sede – e mantido pela gestão municipal de São Paulo, além de distribuição semanal de leite pelo projeto VivaLeite, do governo do estado.
O espaço físico, porém, enfrenta problemas estruturais e financeiros para manter os projetos em funcionamento, problema que permeia toda a história do movimento. Atualmente, a UPM movimenta uma vaquinha online para custear a troca do telhado, que cedeu com as chuvas fortes desta época do ano.
Na entrada da casa, um bazar ajuda na captação de recursos com a venda de peças doadas por valores entre R$ 5 e R$ 10. “Mas também serve para trazer mulheres de um jeito mais discreto. Muitas chegam olhando roupas, como se fosse só isso, e depois pedem minha ajuda no balcão. É por aqui que a maioria delas chega”, conta Matilde Gesteira, uma das responsáveis pelas vendas. “Não estou falando de uma ou duas mulheres por mês, não. Tô falando que todo dia isso acontece”.
“Pensar no grupo é o único jeito de fazer política de verdade. A gente não faz opção por partidos, a gente olha para essas ações. Me machuca muito uma política que não ouve, não considera as mulheres. Porque a gente fala. As mulheres não estão caladas, elas lutam há muito tempo, falam muito, falam alto. O problema é que não querem nos escutar”, diz Neide.
A sociedade da gente não ajuda quem está à margem
Antes do pensamento coletivo, porém, Neide ressalta que suas reivindicações por direitos básicos eram demandas de sobrevivência. “Em vários momentos eu não aprendia na escola porque ia estudar com fome”, conta a aposentada, num tom de voz mais baixo. No quintal de casa, uma horta com legumes, hortaliças e ervas – muitas vezes doadas à vizinhança – e até um pequeno criatório de abelhas demonstram o valor que ela dá ao alimento. “Isso tudo é o tesouro que eu tenho”, diz.
A primeira etapa de sua educação formal ocorreu na escola improvisada criada pelo pai, João Martins, um dos primeiros moradores do Campo Limpo. Foi a primeira tentativa da família de trazer melhorias para o entorno. Sem auxílio do governo, porém, as aulas não puderam continuar. Neide então foi morar na casa dos avós para concluir a alfabetização, mais próxima ao centro da cidade, onde teoricamente o acesso à escola ficaria mais fácil, mas os recursos mais escassos.
A ativista conta que anos mais tarde se apaixonou pelas ideias do educador Paulo Freire ao ver uma relação com a própria vida. E foi essa a memória – de ir à aula sem direito à merenda, que deveria ser levada de casa – o principal ponto de identificação. “Isso tudo fazia com que eu fosse uma aluna muito fraca na escola, por muitos motivos, inclusive a fome. A professora não gostava de mim, as crianças não faziam amizade. A sociedade da gente não ajuda quem está à margem”. Ela diz ainda ter, vívida na memória, lembrança do cheiro de uma sopa específica que era servida às crianças órfãs da escola, mas não a ela.
Com ainda mais seriedade, ela fala do momento posterior, quando novamente precisou se afastar da periferia e morar na casa de uma tia para concluir os estudos, entre os 11 e 12 anos de idade. “O marido dessa tia era um homem… Eu tenho que pensar bem no adjetivo para que ele não seja cortado da matéria”. Após a minha confirmação de que a palavra correta seria publicada, mas com desconforto, Neide descreve: “abusador”.
A formação profissional na saúde, área com o qual sonhou desde a infância, aconteceu anos depois, como assistente na Santa Casa de Misericórdia, em São Paulo, em 1957, após o falecimento do pai. “Passei na prova, mas não queriam me admitir porque eu não enxergo de um dos olhos e não passei no exame de vista. Eu implorei. O médico que concordou que eu ficasse se chamava Marcos e esse também é o nome do meu primeiro filho. Disse lá naquele dia mesmo que faria essa homenagem”. Até então, Neide dava aula aos fins de semana sobre verminoses na igreja da comunidade. “Naquela região não tinha água encanada, um esgoto. Morria gente demais”, diz.
“Trabalhava nos bastidores da luta contra a ditadura”
Foi na Santa Casa que ela conseguiu, com ajuda dos colegas e de “uma chefe alemã, que todo mundo dizia que era comunista”, custear um curso técnico em enfermagem na Cruz Vermelha de São Paulo. “Essa mulher foi suspensa por 15 dias, sem receber salário, por mudar a minha escala para que eu pudesse estudar”, recorda, emocionada. Neide participou mais tarde do primeiro transplante cardíaco da América Latina, em 1968, sendo instrumentadora e única mulher no campo cirúrgico.
Já existiam, a essa altura da ditadura militar, pacientes que chegavam até ela com sinais de tortura. “Quanta gente chegava com queimadura de cigarro, com o ouvido estuporado. Quanta gente morreu com outro nome, ou nos falou o nome verdadeiro em segredo pedindo que a gente buscasse a família. A gente ia denunciar para Dom Paulo [Evaristo Arns], mas tinha que ter um esquema, porque às vezes nós éramos seguidos”, diz. “A gente já sabia quais médicos tinham o coração aberto e quais poderiam denunciar, tinha que fazer tudo com muito cuidado”.
“Eu nunca me furtei de ajudar ninguém, de me engajar na política, porque tudo aquilo que meu pai falava e que eu passei ainda estava acontecendo”, diz a ativista, cujo irmão mais novo foi perseguido e torturado pelos militares por dirigir um carro que carregava um mimeógrafo. “Ele nem sabia que estava fazendo algo político. Isso afetou minha família inteira”, lamenta, escolhendo não entrar em detalhes.
Também foi nessa época que ela conheceu Abel, um padre missionário vindo de Santa Catarina que compartilhava dos seus valores políticos. “Ele ajudou meu irmão sem sequer saber que ele tinha ligação comigo”, conta. “Depois que a gente se conheceu, batemos várias histórias em que estávamos no mesmo lugar ou fazendo a mesma coisa, mas como era tudo escondido, a gente não sabia”.
Há 34 anos, Abel foi autorizado a deixar a batina para casar-se com Neide, com quem vive desde então. Em 2021, o casal, que hoje mora em Campinas, afastou-se pela primeira vez do Campo Limpo. “Construíram três espigões ao nosso redor. Não queria vender a casa, mas fomos perdendo a privacidade, depois o sol que batia no quintal, depois o silêncio…”, conta Abel.
Nos anos seguintes, Neide seguiu empenhada em ações pela defesa dos direitos humanos, entre as quais um projeto de alfabetização na comunidade. “A gente tinha a convicção de que só resolveria os problemas se tivesse mais gente junto. Aquela história de que nenhum homem é uma ilha… Essa consciência do coletivo ficou muito forte em mim e na Anna, minha irmã”, diz.
“Paulo Freire estava começando a fazer aquele estudo para acabar com o analfabetismo no Brasil. É lindo. Eu nunca fiz faculdade, mas eu mergulhava nesse universo e nós resolvemos que íamos alfabetizar o Campo Limpo e uma parte do Capão Redondo”. A irmã a quem Neide se refere é Anna Martins, ex-vereadora e ex-deputada pelo PCdoB em São Paulo, que exerceu o último mandato em 2002.
O projeto de alfabetização acontecia durante à noite, no bairro sem energia elétrica, em segredo. “Se alguém soubesse, a gente ia presa”, diz. As irmãs passavam de casa em casa com ajuda de uma lamparina a gás para iluminação. “Tinha um grupo pessoal do Centro Educacional Paula Souza. Não sei se eles têm isso escrito, mas eram eles. Criaram núcleos de alfabetização em toda a São Paulo, alguns vingaram, outros não”, explica. Anna – que após a ditadura seguiu com o projeto por mais 20 anos –, coordenava o núcleo da Zona Sul, onde criaram oito grupos de alfabetização. “Um dia ela foi entregar o relatório na Paula Souza, do nosso trabalho, e tinha um aviso sobre o AI5. Disseram ‘peguem os materiais, dá um jeito. Mandaram recolher tudo por causa de uma lei mais perigosa’. E nós saímos de noite pra panfletar e avisar que agora o Brasil estava perigoso ainda. E morreu nossa escola Paulo Freire naquele momento”, diz.
Mais de cinco décadas depois do Ato Institucional mais punitivo da ditadura brasileira, a ativista usa o exemplo para defender o acesso à sala de aula, unida às experiências em comunidade, como motor para a promoção dos direitos humanos e da própria democracia. “Anote aí, gostaria que você colocasse desse jeitinho: ‘tudo junto e misturado’, porque essa é a única forma que eu vejo de fazer a coisa funcionar. Quando a universidade e a periferia trabalham juntas, compartilhando as ideias de uma e a vivência da outra”, diz.
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Foto: Neide Abati, de 84 anos, fundadora da União Popular de Mulheres do Campo Limpo – Keiny Andrade/Agência Pública