‘O peixe ficou analfabeto de rio’

Desde que a Norte Energia, a dona de Belo Monte, fez do Xingu sua caixa-d’água particular, o rio se tornou imprevisível, com grande impacto no cotidiano dos moradores humanos e não humanos. Indígenas, pescadores e ribeirinhos passaram então a monitorar o comportamento do Xingu todos os dias para ajudar o Ibama a tomar a melhor decisão sobre a renovação da licença de operação da hidrelétrica

por HELENA PALMQUIST, ALTAMIRA/PARÁ, em Sumaúma

O caminho até a piracema é longo e tortuoso. A mata de igapó não está alagada, mas muito úmida. O solo, recoberto por folhas, fica escorregadio e é preciso atenção para subir e descer os pequenos barrancos onde as águas do rio Xingu recortam o terreno em dezenas de pequenos córregos, que na Amazônia são chamados de igarapés. Raimundo da Cruz e Silva, de 47 anos, faz esse percurso todos os dias para verificar se a água subiu ou desceu e se os peixes estão se reproduzindo. Ele confere a altura das águas em réguas instaladas no perímetro, faz fotos e grava vídeos e áudios daquela que chama de “minha piracema”. Raimundo é um dos 12 pesquisadores ribeirinhos e indígenas que monitoram os impactos da hidrelétrica de Belo Monte sobre os ecossistemas do rio. Ao lado de pesquisadores acadêmicos de várias universidades brasileiras, eles integram o Observatório da Volta Grande do Xingu, um trabalho independente que tem produzido a análise ambiental mais acurada dos impactos da usina sobre a vida no rio.

A missão do Observatório da Volta Grande do Xingu é produzir dados, informações e análises científicas que são apresentados tanto ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) quanto ao Ministério Público Federal (MPF) para embasar pareceres técnicos e ações judiciais.

A piracema merece uma pausa: o cientista Jansen Zuanon, um dos maiores especialistas em ictiologia amazônica, professor aposentado do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e integrante do observatório, explica qual é o conceito de piracema para os povos-floresta da Volta Grande do Xingu, como é chamado o trecho de 130 quilômetros do rio que tem cerca de 70% de suas águas desviadas para alimentar as turbinas de Belo Monte. Ali, a piracema vai além da descrição usual, a do movimento ascendente que os peixes fazem para desovar nas cabeceiras dos rios. “No caso do Xingu, no trecho que tem muitas corredeiras e cachoeiras, os peixes estão o tempo todo em movimento, e de fato os ribeirinhos se referem às piracemas como uma combinação de espaço e tempo. É um momento em que as águas sobem, e os peixes fazem esse movimento de subida. Mas não em direção às cabeceiras do rio, e sim à procura desses locais recentemente inundados, perfeitos para a desova”, diz o cientista.

Todos os dias um grupo de WhatsApp é abastecido com fotos e vídeos enviados de vários pontos da Volta Grande do Xingu. Cada imagem registra as coordenadas do local e o nome da piracema visitada. O grupo do observatório é formado por 40 pessoas, entre pesquisadores de várias áreas e universidades brasileiras, ribeirinhos, indígenas e pescadores. Foi a forma encontrada para assegurar a coleta de informações diárias sobre os impactos de Belo Monte na realidade cotidiana da vida. As fotos e os vídeos mostram réguas que medem a subida e a descida das águas em áreas que deveriam estar alagadas, mas não estão; frutas que seriam alimento para os peixes, mas que agora caem no chão seco das ilhas; e peixes quase sempre muito magros e com ovas mortas dentro da barriga. Com base nesses dados, o Monitoramento Ambiental e Territorial Independente da Volta Grande do Xingu (Mati-VGX) pretende, até abril deste ano, fazer uma análise científica do material e apresentar um panorama dos danos provocados pelas barragens no rio.

O principal coordenador desse trabalho incansável é Josiel Yudjá (Juruna), de 26 anos, morador da Terra Indígena Paquiçamba e grande conhecedor dos ciclos de vida da região. Como parte do povo Yudjá/Juruna, Josiel é um dos “donos do rio” – um dos sentidos atribuídos pelos indígenas ao nome de sua etnia. Cresceu banhando-se e pescando no Xingu e, junto a outros moradores da Volta Grande, viu seu mundo acabar em 2016, quando tinha apenas 20 anos e testemunhou a enxurrada artificial e sem aviso prévio provocada por Belo Monte. Viu também o comportamento do rio mudar por causa do funcionamento da usina – o Xingu, pai e mãe das comunidades tradicionais, se tornou imprevisível.

“É muito triste ver o que está acontecendo hoje na Volta Grande”, diz Josiel em um vídeo enviado para SUMAÚMA direto da piracema do Zé Maria, monitorada diariamente por ele desde 2019. “Estou aqui, na Ilha do Zé Maria. Hoje é 27 de janeiro de 2023. O que está acontecendo aqui na Volta Grande do Xingu é que o rio é controlado pela hidrelétrica de Belo Monte. Às vezes ele tá cheio, às vezes ele tá seco, tem dias que o rio sobe rapidamente, tem dias que ele seca muito rápido. Isso confunde os peixes. Tem áreas de sarobais [locais de alimentação e reprodução de espécies aquáticas] que alagam. Os peixes ficam confusos, porque pensam que ainda é o ciclo natural, mas hoje não é, porque é controlado pela barragem de Belo Monte. […] A Ilha do Zé Maria era um berçário de peixes que se alimentam aqui nessa ilha. Aqui, nesta piracema, o curimatá, o piau, o trairão, várias espécies entravam para desovar e precisam de uma quantidade de água razoavelmente grande que inunde uma parte da ilha. Mas, desde que eu comecei a monitorar essa piracema, eu nunca mais vi os peixes entrando para desovar. A época deles estarem com ovas […] é final de janeiro para fevereiro. Mas como agora a água só chega em abril, porque quem controla é a barragem de Belo Monte, os peixes não conseguem, porque em abril os peixes já estão com as ovas secas dentro deles.”

Sebastião Bezerra Lima, de 51 anos, costuma dizer que “o peixe ficou analfabeto de rio” porque agora é Belo Monte que controla a água e o rio se tornou inconstante. Ele também trabalha no monitoramento independente das piracemas da Volta Grande. A reportagem de SUMAÚMA pôde testemunhar que é impossível que moradores e peixes tenham alguma segurança sobre a quantidade de água liberada. No intervalo de uma semana, os ribeirinhos receberam, por WhatsApp, três comunicados consecutivos da Norte Energia: no primeiro, a empresa disse que a água iria baixar; no segundo, que iria subir; no terceiro, o aviso era de nova subida na vazão do rio. As condições para o uso das águas estão definidas na “outorga” – autorização para a utilização da água para a geração de energia – concedida pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). SUMAÚMA procurou a ANA, mas não recebeu nenhuma resposta até o fechamento desta reportagem.

Os comunicados sobre a redução ou o aumento da vazão de água pela Norte Energia, a dona de Belo Monte, passaram a ser enviados aos moradores após muita pressão deles e de autoridades da região. A ideia é ao menos evitar o que aconteceu na enxurrada de 2016, quando ninguém foi informado da liberação repentina da água, o que só não causou uma tragédia maior por ter ocorrido no início da noite, quando os moradores já tinham se recolhido a suas casas. Para muitas famílias, no entanto, esses avisos nunca chegam, porque elas não têm telefone nem internet, o que aumenta muito seus riscos de sofrer uma inundação súbita.

No dia 8 de janeiro, uma subida repentina das águas alagou o barco de Sebastião. A embarcação ficou destruída. Ele também perdeu 40 litros de gasolina, todos os apetrechos de pesca e os alimentos que levava para casa. Depois de recorrer aos vizinhos, conseguiu convencer a Norte Energia a enviar homens para resgatar seu barco – meio de transporte e instrumento de trabalho. Mas os funcionários da empresa apenas levaram a embarcação para a ilha onde Sebastião mora, sem sinalização de conserto, embora ela seja essencial para a vida dele. “É uma injustiça o que fazem com os ribeirinhos e pescadores. Eles não olham pra gente. Era dever deles fazer manutenção, consertar, compensar”, indigna-se. Sebastião, tão perto daquela que é chamada de maior usina hidrelétrica do Brasil, tem sua vida atingida por Belo Monte de muitas maneiras. Mas vive em uma região sem energia elétrica. “Queria só uma placa solar, para carregar o celular”, diz o pescador.

Sebastião batizou de Catitu a piracema que ele monitora porque um dia chegou lá e viu uma sucuri devorando um catitu [um tipo de porco selvagem muito popular na Amazônia]. “Piracema nós podemos esquecer, porque não vai ter mais. Eles soltam uma aguazinha. Não é como era, que a água vinha enchendo aos poucos, aí os peixes compreendiam, eles sabiam que iam reproduzir. O peixe é assim, eu sou pescador e eu sei. O peixe entrava no igarapé e desovava. Com 24 horas, você olhava e já tinha aquele olhozinho nas ovas. Do jeito que está a situação, os peixes não compreendem, porque antes deles chegarem no local a água já seca e volta”, conta, ao lado da régua que assinala todos os centímetros que a água deveria ter subido. Em alguns locais, ela teria de marcar 2 a 3 metros naquele momento, mas a água não chegava a 1 metro.

A ciência de quem sabe ler o rio Xingu

O que Sebastião explica com a ciência dele, de pescador e ribeirinho, o cientista Jansen Zuanon chama de “sinal ambiental”, do qual as espécies aquáticas dependem para dar início ao processo anual de reprodução: “Os peixes e outros organismos vivos precisam de uma resposta do ambiente, um sinal ambiental seguro, confiável, que se manifesta normalmente por uma sequência longa. O volume de água sobe a cada dia, a enchente vai progredir gradualmente, e aí há um sinal claro. Isso evita que os peixes entrem, por exemplo, em uma área que vai secar repentinamente. Ou que desovem, desperdiçando uma energia que acumularam ao longo do ciclo de um ano inteiro”.

Quando o equilíbrio do ecossistema é brutalmente atingido, conta o pesquisador, toda a lógica da vida natural é traída. “O que tem mais valor para o indivíduo de uma espécie é deixar descendentes. Se o peixe desovar numa área que vai secar, ele jogou fora a oportunidade da reprodução. Morrer sem deixar descendentes é o pior caminho para um indivíduo de qualquer espécie do planeta. Quando começa esse vai e vem, motivado lá pelas torneiras de Belo Monte, todo esse equilíbrio é destruído”, explica.

A imagem das torneiras de Belo Monte controlando as águas do rio faz sentido. Um dos grandes símbolos da apropriação é a Volta Grande do Xingu, que até de nome mudou nos documentos oficiais, passando a ser burocraticamente chamada de “Trecho de Vazão Reduzida”. O controle sobre o rio também se afirma de maneira explícita no Sistema de Transposição de Embarcações, operado por uma terceirizada da Norte Energia. Feito sob pressão dos moradores, sem ele não seria possível alcançar a cidade de Altamira depois que a usina foi construída. Ao perceberem que o caminho também seria barrado, os moradores lutaram para incluir a transposição no processo de licenciamento de Belo Monte. Ainda assim, essa é uma rotina humilhante para quem antes tinha seu direito integral de ir e vir pelo rio garantido. Hoje, todos que pretendem chegar ou sair da Volta Grande precisam parar suas embarcações ao se aproximar da barragem de Pimental. Os pilotos devem preencher uma ficha informando o motivo pelo qual estão navegando; enquanto os passageiros sobem em uma van, o barco é levado por um trator até o outro lado do barramento, para então seguirem viagem. Precisam dar explicações sobre seu movimento no rio como se a empresa fosse um posto de fronteira do Estado, uma espécie de outro país.

Jansen considera fundamental que o trabalho dos monitores ambientais independentes seja levado em conta pelo Ibama na análise da renovação da licença de operação da usina. Ele explica que a empresa Norte Energia é obrigada, pelos órgãos licenciadores e fiscalizadores, a fazer seu próprio monitoramento. No entanto, esse monitoramento tradicional, por ser periódico e fazer a coleta por amostragem nos quatro períodos do ano – enchente, cheia, vazante e seca –, oferece médias do nível do rio que não são mensurações precisas do que ocorre no dia a dia do Xingu. “Você imagina assim: o rio subiu, baixou, subiu, baixou, mas na média geral ele acabou subindo. Aí você pode dizer que está tudo bem. Mas, para o peixe que estava dentro da água, ele ficou recebendo esses sinais contraditórios o tempo inteiro. Então, na metodologia tradicional de coleta de dados por amostragem, você não consegue verificar esse tipo de problema”, afirma Jansen.

Nesse sentido, o monitoramento feito pelos próprios moradores se apresenta como uma solução simples, barata e sobretudo eficiente porque leva em consideração o conhecimento de quem entende muito mais o rio do que qualquer outro pesquisador. “Eles [técnicos] não estão olhando para os peixes como os ribeirinhos fazem todos os dias. Os monitores locais têm uma visão muito mais refinada do processo e em tempo real. Por que eles não são incluídos no licenciamento? Por que não são ouvidos pelo Ibama? Nosso esforço agora é justamente para isso”, diz Jansen. “É um embate. A própria empresa concessionária fica monitorando seus impactos, e é claro que o interesse é dizer que está tudo bem. Então é uma diferença de perspectiva absurda. O que a gente propõe é que as populações conduzam e estejam diretamente envolvidas no processo de monitoramento ambiental. É bom para todo mundo.” É bom, principalmente, para o Xingu e a floresta, para a natureza e para a saúde do planeta e de seus habitantes.

Na Volta Grande do Xingu, antes de Belo Monte existir, os peixes faziam festas de reprodução nas centenas ou milhares de piracemas que se estendem ao longo de 130 quilômetros. A família de Rosilene Souza dos Santos sabe disso. Conhece. Ela mora desde a década de 1980 na comunidade Goianinho, num sítio muito perto de uma piracema chamada assim mesmo, só “piracema”. Testemunhou todas as mudanças provocadas pelo barramento do Xingu por Belo Monte. A piracema nunca mais encheu, e os peixes escasseiam. Quando levou a equipe de SUMAÚMA para visitar o lugar que se tornou um não lugar, Rosilene, com a mão no peito, disse baixinho: “A gente que se criou aqui, quando entra na piracema, chega dói”.

As alegações da Norte Energia

Em nota, a empresa concessionária de Belo Monte afirma desconhecer “dados realmente científicos sobre danos e suas causas” e diz que não tem “conhecimento de crise humanitária sobre a população da sua área de influência direta, em razão da operação da usina”. Assim respondeu às perguntas de SUMAÚMA:

“A matriz de impactos gerada por ocasião dos estudos ambientais prévios da UHE Belo Monte indicou o que poderia afetar as atividades socioeconômicas das populações que vivem às margens do Trecho de Vazão Reduzida (TVR), bem como a flora e a fauna da Volta Grande do Xingu nesse segmento de 100 km. Por isso, foram previstos seis anos de testes do hidrograma, e estão em execução o Plano de Gerenciamento Integrado da Volta Grande do Xingu (PGIVGX), que compõe o Projeto Básico Ambiental (PBA), e projetos específicos no TVR, incluídos aqueles do componente indígena (PBA-Componente Indígena). Essas foram medidas previstas para monitorar e mitigar a ocorrência de tais impactos, junto com a participação e orientação do órgão ambiental competente, que fiscaliza e acompanha, bem como direciona a forma de implementação dos projetos e medidas de mitigação e compensação. A empresa desconhece dados realmente científicos sobre danos e suas causas, e não tem conhecimento de crise humanitária sobre a população da sua área de influência direta, em razão da operação da Usina.

“Ao longo de 2022, a Norte Energia manteve tais medidas de mitigação em desenvolvimento na região por meio do Termo de Compromisso Ambiental firmado com o Ibama, além de manter o diálogo continuado com as comunidades ribeirinhas e povos indígenas da Volta Grande do Xingu, no sentido de trabalharem em conjunto as questões de mitigação e compensação frente aos impactos por meio de monitoramentos participativos, ações voltadas a melhorias das condições a acesso à água, esgotamento sanitário, atividades produtivas de piscicultura, plantio de cacau e alimentos, melhorias no sistema de saúde e acessos terrestres, além de priorizar medidas de apoio à navegação na região. A Norte Energia também fortaleceu seu processo de escuta ativa com as comunidades, estudando e compartilhando com ribeirinhos e povos indígenas da Volta Grande do Xingu novas propostas de medidas para assegurar a melhoria das condições de biodiversidade da região”.

PARA O PESCADOR SEBASTIÃO BEZERRA LIMA, QUE TRABALHA NO MONITORAMENTO INDEPENDENTE DAS PIRACEMAS NA VOLTA GRANDE DO XINGU, “O PEIXE FICOU ANALFABETO DE RIO”. FOTO DE 14 DE JANEIRO DE 2023: SOLL SOUZA/SUMAÚMA

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