Pessoas atingidas pela Vale relatam dificuldades no acesso ao Programa de Transferência de Renda

Documentação exigida foge da realidade de alguns territórios atingidos, segundo relatos. 

Instituto Guaicuy

Pessoas atingidas de várias comunidades se organizam para realizar manifestação na sede da Fundação Getúlio Vargas, em Pompéu, nesta sexta-feira.

Após mais de quatro anos do rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho, e dois do firmamento do acordo judicial que instituiu o Programa de Transferência de Renda (PTR), milhares de pessoas atingidas pelo desastre-crime permanecem sem o auxílio financeiro mensal estabelecido judicialmente. O programa surgiu em substituição ao pagamento emergencial como medida mitigatória para garantir condições materiais para as populações que vivem nas comunidades delimitadas como atingidas, enquanto aguardam pela reparação integral dos danos causados pela mineradora. A duração prevista é de aproximadamente quatro anos.

Kelly Tainara Aparecida, moradora de Buritizinho de 21 anos, é lavradora e viu a dinâmica de sua comunidade mudar radicalmente depois do rompimento da barragem. “Nossa renda vinha do turismo, das pessoas que passavam por aqui e compravam nosso queijo, nosso frango, nossas hortaliças. E agora não existe mais isso. O que existe é a desconfiança sobre a contaminação dos produtos por conta da lama que desceu o Paraopeba”.

Desde junho de 2022, quando começaram os cadastros para o PTR pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), Kelly tenta garantir o auxílio. Mas o pedido já foi negado três vezes pela falta de reconhecimento de Buritizinho nos critérios definidos pelas Instituições de Justiça (Defensoria Pública de Minas Gerais, Ministério Público de Minas Gerais e Ministério Público Federal). “A comunicação com a FGV é difícil, a gente fica sem entender os motivos da nossa comunidade não ser incluída. Não temos respostas e isso desgasta a gente, porque é um dinheiro que faria muita diferença pra quem não consegue mais vender nada, para quem foi indiscutivelmente atingido pelo crime da Vale. Já passamos por tantos problemas e temos que sempre esperar e esperar, enquanto isso, a vida passa”, desabafa.

Já Wellington Nunes, dono de uma casa em Novilha Brava, comunidade de Pompéu, conseguiu cadastrar o filho, menor de idade, mas não teve as aprovações em seu nome e de sua esposa para o recebimento do auxílio. “A documentação usada foi exatamente a mesma. Ninguém me dá explicação nenhuma para isso”, relata. De acordo com ele, o que é observado entre seus vizinhos é que ainda que  a pessoa faça tudo certo, o caminho para uma resposta de deferimento do pedido é longo ou às vezes não acontece. “Vemos diversas situações de erros do sistema, documentos que não constam lá, embora anexados pelos próprios analistas da FGV”.

A falta de documentação também tem sido um desafio para as pessoas atingidas em áreas pesqueiras. É o caso de quem mora em Paraíso, comunidade às margens da Represa de Três Marias, no município de Felixlândia. Mesmo atendendo aos critérios para serem consideradas como atingidas, essas pessoas não conseguem as comprovações exigidas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) para receber o Programa de Transferência de Renda (PTR).

“Eu acho que não precisava de você ter um documento quase impossível, que é o que estão exigindo. Como você vai ter um documento de um terreno que não é seu? Você mora ali de favor… você não tem água. Lá nós não temos água encanada, nós não temos energia. Como você vai comprovar que você mora ali?”, desabafa a pescadora Geralda Oliveira, que vive na comunidade.

Quem pode receber o PTR? 

O ingresso no PTR depende da comprovação de que no dia 25 de janeiro de 2019 a pessoa cumpria algum desses quatro critérios:

  • Território Atingido: Ser residente (ou pessoa possuidora, arrendatária, parceira ou meeira que residia ou trabalhava em imóvel) da área delimitada como atingida;

  • Povos e Comunidades Tradicionais (pertencer a algum povo ou comunidade tradicional da área atingida);

  • Residente na Zona Quente (residente das localidades do Córrego do Feijão, Tejuco, Parque da Cachoeira e Cantagalo, Parque do Lago, Alberto Flores, Pires, Monte Cristo/Córrego do Barro, Córrego Fundo, Assentamento Pastorinhas)

  • Familiares de vítimas fatais (pais, cônjuge, filho (a) ou irmão (a).

Em outubro de 2022, a FGV divulgou as primeiras 15 primeiras áreas (poligonais), entre os 27 municípios atingidos, aprovadas até o momento pelas Instituições de Justiça como territórios considerados nos critérios para receber o auxílio. As poligonais indicam os limites de comunidades que têm parte do seu território dentro do critério de 01 km da margem do Rio Paraopeba e da Represa de Três Marias, ou seja, são linhas que ligam pontos, formando o limite de uma comunidade conforme exemplo:

As imposições necessárias para o cadastramento no programa se tornaram um problema para diversas pessoas que vivenciam o processo de reparação.  “É necessário que as exigências para o cadastro sejam de acordo com a realidade dos territórios atingidos. Quem tem abastecimento por cisterna não tem conta de água, conforme a FGV pede. Quem vive em regiões com questões fundiárias não tem comprovante de endereço, documentos de cartório. Isso tudo deveria ser considerado”, avalia Marcus Vinícius Polignano, diretor do Instituto Guaicuy. A entidade presta assessoria técnica independente para as pessoas atingidas pela Vale nas regiões 4 (Curvelo e Pompéu) e 5 (região da represa de Três Marias e comunidades do São Francisco localizadas nos municípios de São Gonçalo do Abaeté e Três Marias).

Manifestação

Nesta sexta-feira (10), pessoas atingidas de comunidades na região de Pompéu se reuniram em frente à sede da Fundação Getúlio Vargas na cidade para reclamar seus direitos no acesso ao Programa de Transferência de Renda. “O que acontece é que as pessoas fazem o cadastro e não passam, vivem aguardando, e enquanto isso se endividam. As poligonais não são aprovadas, tem comunidades que fizeram cadastro sete vezes e nada. Por isso vamos fazer esse ato”, explica Tatiane Menezes, moradora do assentamento Queima-Fogo, comunidade de Pompéu.

O Queima-Fogo é uma das poucas comunidades que já tiveram a sua poligonal reconhecida e Tatiane é uma das moradoras que conseguiram ter acesso ao Programa de Transferência de Renda, a partir da transição do  antigo pagamento emergencial. , determinado pela Justiça em 2019. Mas ela conta que essa não é a realidade de todas as pessoas atingidas que vivem por lá. “Muitas pessoas estão se endividando, pois perderam a renda total e dependem desse dinheiro. São famílias que estão em situação de vulnerabilidade”, conta.

A ideia das organizadoras é que os protestos se repitam em outras sedes da FGV nas regiões do Baixo Paraopeba e do entorno do reservatório de Três Marias. As próximas datas ainda não foram definidas.

Sobre o Instituto Guaicuy

Criado no ano 2000 por pesquisadores, professores e ativistas sociais que atuavam no projeto Manuelzão (UFMG), o Instituto Guaicuy é uma entidade não governamental associativa, cultural e técnico-científica sem fins lucrativos. Seu trabalho é desenvolver ações socioambientais, culturais e educativas voltadas para a preservação e recuperação ambiental, para a promoção da saúde e da cidadania.

Atualmente, o Guaicuy acompanha o processo de levantamento de danos e reparação das regiões 4 (Curvelo e Pompéu, na Bacia do Paraopeba) e 5 (região da represa de Três Marias: Abaeté, Biquinhas, Felixlândia, Martinho Campos, Morada Nova de Minas, Paineiras, São Gonçalo do Abaeté, Três Marias), afetadas pelo rompimento da barragem da Vale em Brumadinho. O objetivo principal das Assessorias Técnicas Independentes é garantir o acesso à informação e auxiliar as pessoas atingidas a participar de maneira adequada no processo de reparação dos danos que sofreram.

O instituto também presta assessoria técnica para a comunidade de Antônio Pereira (distrito de Ouro Preto), que convive nos últimos anos com o risco de rompimento da barragem de Doutor, também pertencente à Vale. Além disso, o Guaicuy conduz o Cultivando Águas, projeto que tem objetivo de divulgar tecnologias sociais de captação de água da chuva (construção de cisternas de uso coletivo).

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