Red Pill. Por Julio Pompeu

No Terapia Política

Há muito tempo, num país distante, viviam pessoas que se gabavam de suas próprias virtudes. Orgulhosos, diziam de si mesmos pessoas de bem, gente de valor, que construíam com os próprios talentos sua riqueza, que amavam acima de tudo e de todos. Não a de espírito, como um desavisado poderia pensar, mas a material. Gabavam-se de suas conquistas como sendo o resultado de méritos exclusivamente pessoais. Toda bondade, talento, esforço, valores, tudo que dissesse respeito ao espírito ou à moral era, para eles, apenas o meio para o que constituía sua verdadeira riqueza: dinheiro e poder.

Lá, como em quase todos os outros lugares, poucos tinham muito e muitos tinham pouco, quase nada. Os pobres eram vistos como pessoas sem méritos. Culpados pela própria pobreza. De tal maneira que as pessoas de bem não precisavam se preocupar com elas para que continuassem pessoas de bem. O bem era, na verdade, o bom para si mesmo. Somente para si mesmo.

Acostumaram-se a viver assim e, como em qualquer cultura, o que poderia ser para um estrangeiro um absurdo, para eles era o normal. Anormal, insano, subversivo era quem pensasse diferente. Era o caso de Antenor. Sofria do que, ali, era um terrível desvio de caráter. Antenor era verdadeiramente bom. Não da bondade dali, mas de uma bondade daquelas em que se faz sacrifícios por quem nem se conhece. Sem nada ganhar ou sequer esperar ganhar em troca. Amava aos outros não por receber deles algo em troca, como os seus conterrâneos que amavam quem lhes desse prazeres e apenas enquanto desse prazeres. Antenor amava por empatia, por ver no outro um semelhante capaz de pensar e sofrer, assim como ele.

Tamanho desvio de caráter não lhe rendia vida fácil naquela terra de pessoas de bem. Alguns desconfiavam de suas atitudes e pensamentos como se tudo em Antenor não passasse de alguma artimanha estranha para lhes tomar alguma coisa. Outros, crendo na sinceridade insana de Antenor, viam nele apenas um inútil ou otário. Figura patética ou hipócrita, que esconderia por detrás de seu altruísmo pervertido sentimentos egoístas, alguém a ser ridicularizado ou hostilizado o que, muitas vezes, dava no mesmo.

Depois de uma benevolência em que denunciou a escravização de trabalhadores, acabou processado e preso. Os juízes viram nele mais um perturbado mental que um facínora. Deram-lhe uma escolha: tratamento ou morte. A decisão foi fácil. Um médico conseguiu que a justiça lhe desse Antenor como cobaia de seu novo remédio, a Red Pill. Comprimido que, tomado com regularidade, restabeleceria o bom senso em qualquer um. Se conseguisse curar um desviado como Antenor, seria riqueza na certa!

O remédio foi um sucesso! Em poucos dias o comportamento de Antenor já era outro. Tornou-se egoísta, insensível, violento, traidor e hipócrita como quase todos os seus conterrâneos. Tratou logo de comprar uma arma e começou os primeiros ganhos com ameaças e violências. Tornou-se o garoto propaganda do Red Pill e, rapidamente, saiu da infâmia.

Aproveitou-se da visibilidade para ganhar cada vez mais fama e admiração para si. Humilhava e desrespeitava mulheres, pobres, pretos e quaisquer outros dos muitos desempoderados de lá, ajudando a conservar os sagrados valores da opressão e dominação, pilares daquela sociedade. Chegou a ser eleito deputado, ministro e até presidente! Dos cargos públicos, tomou para si tudo que estava ao alcance das mãos: presentes, salários alheios, patrimônio público. Tornou-se um verdadeiro herói. Aclamado pela rua. Cultuado pelas igrejas como um novo salvador.

Mas no silêncio da intimidade, às escondidas, sofria terrivelmente. Era um dos efeitos colaterais do Red Pill, devidamente escondido do público em geral pela indústria farmacêutica e pela imprensa. Não era um sentimento moral, posto que deste estava a salvo pela química do remédio. Sofria porque, apesar de tudo o que tinha, queria ainda mais. Muito mais! Muito mais do que os seus braços poderiam alcançar.

Ilustração: Mihai Cauli

 

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