Índios do deserto: um fragmento de tempos vividos. Por José Ribamar Bessa Freire

No TaquiPraTi

“Peuple Sahraoui, oui oui oui.
Ronald Reagan, non, non, non”.
(Frente Polisário. 1982.)

Ainda não tive o prazer de ler “Fragmentos de Tempos Vividos” lançado por sua autora, Marilza de Mello Foucher, no Instituto Geográfico Histórico do Amazonas, em Manaus, na terça (7). Espero obter um exemplar na noite de autógrafos sábado (18) na Blooks Livraria no Espaço Itaú de Cinema do Rio. Depois, dou notícias.

A escritora, prima do poeta Thiago de Mello, reside em Paris há mais de 40 anos, desde quando foi fazer seu doutorado em Economia. Lá tivemos uma convivência diária, na época em que cursava eu o doutorado em História. Juntos participamos de vários movimentos, entre eles do Comitê Internacional pela Defesa da Amazônia (CIDA), que editava o boletim Sauve qui peut… l´Amazonie”, para o qual contribuímos com vários artigos, incluindo uma crítica ao primeiro projeto legislativo da Assembleia Provincial do Amazonas, de 1852, que permitia o uso compulsório da força de trabalho indígena (pgs. 12 a 15).

Testemunha de muitas de suas andanças, morro de curiosidade de ler o livro, especialmente a parte do seu trabalho internacional para a Amazônia como técnica do Comitê Católico contra a Fome e pelo Desenvolvimento (CCFD). Apoiou projetos, entre eles a Criação de uma Rede Autônoma de Saúde Indígena (RASI), em parceria com a FOIRN – Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, a Universidade do Amazonas e a Funasa.

O RASI visava a participação ativa dos índios na instalação de um sistema de saúde adequado às suas necessidades e especificidades socioculturais, devendo atender 15 mil Tukano, Maku, Yanomami e outros de línguas Aruak. A ideia era formar agentes indígenas de saúde através do diálogo entre saberes milenares tradicionais e conhecimentos das ciências médicas, que não são excludentes, mas complementares.

Povo Sahraoui

Não acompanhei os resultados desse projeto. Nem o da criação no Acre, da casa de farinha de folha de mandioca, jerimum, farelo de pupunha, batata doce, arroz e grãos para atender 18 mil crianças, citados em crônica que escrevi, em 1995, publicada em um jornal de Manaus. Certamente, ambos devem estar lá no livro. (https://www.taquiprati.com.br/cronica/465-a-saude-a-fome-e-o-ccfd).

Quem o leu, como a filósofa e crítica literária Márcia Tiburi, achou o livro “encantador”. Contém “registros históricos abordados com leveza” – confirma a socióloga Marilene Corrêa, além de alguns “deliciosos relatos com as peripécias vividas pela autora, que trocou o mundo da canoa pelo mundo do metrô”, revela a jornalista Rosa Freire Furtado.

Não sei se o livro narra a manifestação de 150 mil pessoas, em junho de 1982, quando desfilamos da Bastilha até a Place de la Republique, numa gigantesca passeata para protestar contra a visita do presidente dos EUA, Ronald Reagan, que participava da Reunião de Cúpula dos Sete Países Industrializados. Entre os manifestantes, no cordão dos imigrantes, estávamos nós, um grupo de brasileiros, entre eles o escritor Márcio Souza, de passagem por Paris.

Havia comunistas, trotskistas de variadas tendência, militantes de diversas centrais sindicais – CGT, CFTC, Force Ouvrière e…, cada grupo separado dos demais por um cordão, gritando palavras de ordem de acordo com seus interesses e ideologias, mas todos ali unidos contra a “Doutrina Reagan”, que apoiava grupos anticomunistas em todo o mundo. Foi ali que nasceu a curiosidade pelo povo Sahraoui.

No meio da multidão, havia dois, apenas dois, não mais que dois jovens da Frente Polisário, um movimento de libertação nacional, que lutava pela autodeterminação do povo Sahraoui, cujo território no Saara Ocidental havia sido invadido por forças de ocupação estrangeira do Marrocos. Cada um segurava a ponta de uma faixa com dizeres contra o colonialismo, simbolizado na figura de Reagan.

Índios do deserto

Vítimas do jogo geopolítico internacional de grandes potências, lá estavam no meio da multidão os dois, apenas dois, não mais que dois militantes da Frente Polisário. Os dois sussurravam palavras de ordem, que ninguém ouvia e que se perdia entre gritos de numerosos militantes de outras organizações. Nós, brasileiros, xingávamos o general Figueiredo, ditador do Brasil e a Elf Aquitaine, empresa francesa que explorava petróleo em território Sateré-Mawé.

Afinal, ao contrário do ditado, quem tem pescoço francês não tem medo, abaixo o Figueiredo. Foi aí que nos aproximamos e ouvimos o tímido e quase inaudível clamor dos dois:

Peuple Sahroui, oui, oui, oui. Ronald Reagan, non, non, non.

Decidimos, então, dar um descanso ao general e à petroleira, para dar uma força à luta do povo Sahraoui, que quer dizer em árabe “originário do deserto”. Reproduzimos em um berro uníssono a plenos pulmões aquelas palavras, que acabaram contagiando os manifestantes de outras organizações e explodiram, ecoando em toda a passeata:

PEUPLE SAHROUI, OUI, OU, OUI. RONALD REAGAN, NON, NON, NON.

De repente, parecia que a reivindicação Sahraoui, era o objetivo principal daquela manifestação. Nossa simpatia por eles aumentou, quando soubemos que Saharaoui é uma espécie de guarda-chuva que abriga várias tribos seminômades e grupos étnicos, criadores de camelos, que compartilham um idioma comum, o hassaniva, da família linguística árabe beduína. Ou seja, os Saharaoui, os “índios do deserto”, somos todos nós.

Te convido, leitora (o), hoje mais do que nunca, a gritar comigo, Marilza, Márcio Souza, Marilene Corrêa, Edneia Mascarenhas, Zé Ricardo e toda a galera antiimperialista:

PEUPLE SAHROUI, OUI, OU, OUI. RONALD REAGAN, NON, NON, NON.

P.S. Se a autora não lembrou do povo Sahroui, sugiro que seja incluído na segunda edição do livro, que está vendendo como pão quente, graças aos flyers bem transados produzidos por Pascal Foucher, o amoreco.

 

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